Os garotos do MPL reensinaram que a política é a arte do impossível, diferindo de uma esquerda que se conformou à estabilidade. Mas “autonomismo” ingênuo levou-os a se apaixonar por suas próprias fraquezas, e os impediu de ir além
Entre as múltiplas tendências que emergem em meio à crise civilizatória, ressurgiu nos últimos anos um interesse pelo marxismo. É cultivado em especial por parcelas da juventude. Ao contrário do que se dava em outras épocas, seu principal impulso não parece vir de partidos à esquerda, mas da busca por uma saída, que permita escapar do desencanto que vida e a política convencionais espalham.
Mas como enxergar, à luz das múltiplas tradições marxistas, os acontecimentos contemporâneos? É a este exercício que a coluna Marx Vivo, que Outras Palavras passa a publicar. Em textos quinzenais, Diogo Fagundes buscará lançar, a partir do marxismo, hipóteses sobre acontecimentos relevantes do Brasil e do mundo. Na estreia, ele olha para Junho de 2013, a partir de um ponto de vista não convencional.
Diogo tem 28 anos, é mestrando em Direito e graduando em Filosofia na USP. Atuou no movimento estudantil até 2019, em especial no DCE da USP e Centro Acadêmico XI de Agosto, além da União Estatual dos Estudantes (UEE) paulista. É estudioso profundo – e não dogmático – do marxismo. (Antonio Martins)
por Diogo Fagundes, em Outras Palavras
Quem vive no Brasil neste junho de 2023 está constrangido a ouvir, ler e pensar sobre um acontecimento que data já dez anos: as famosas jornadas de junho de 2013. Para alguns, signo precipitado de toda a barafunda que afundou o país a partir do golpe de Estado de 2015-16, sustentado por manifestações de massa com bandeiras e slogans conservadores – incluindo a defesa da ditadura militar –, algo inédito desde o advento da chamada Nova República. Para outros, traço irreversível de uma mudança histórica fundamental a respeito do Brasil, enterrando qualquer possibilidade de o Estado brasileiro voltar a funcionar “normalmente”. Mas é provável que esta alternativa entre duas posições puramente exteriores não seja um bom caminho. Precisamos de um pensamento dialético: entender o fenômeno a partir de sua divisão interna.
Não vale a pena entrar nos detalhes cronológicos e jornalísticos sobre o fato histórico. Afinal, todos sabem que junho conheceu etapas distintas, mais ou menos semelhantes em todo o território nacional.1 Há duas extremidades bem demarcadas: um início composto por atos não muito grandes, restritos à juventude militante que lutava contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, e um final heteróclito, com pautas diversas e dispersas, no qual predominava grande confusão política, marcado pela presença de um verde-amarelismo genérico contra o Estado e a corrupção – uma ideologia espontânea da classe média brasileira, favorecida pela tônica da oposição dos grupos empresariais de mídia ao petismo. Entre eles, a repressão selvagem da polícia militar, a teimosia obtusa das autoridades constituídas em não atenderem ao reclamo popular e uma explosão social de rara energia e contundência.
É difícil para muitos aceitarem, mas jovens constituídos em um pequeno, mas persistente durante muitos anos, coletivo chamado Movimento Passe Livre (MPL) dobraram e paralisaram as instituições políticas, criando uma divisão na opinião pública e na cena política através de palavras de ordem simples e eficazes em torno de um ponto sintomático dos absurdos do capitalismo contemporâneo: a ausência de mobilidade urbana. Em suma, fizeram política, que, ao contrário do que pregam os conformistas, não é a arte do possível, mas do impossível. Sim, aquela juventude fez o impossível próprio daquela conjuntura vir à torna, através unicamente do enfrentamento consequente e persistente de um ponto, um apenas, um ponto capaz de gerar uma verdadeira torção na conjuntura, ajudado pelo imponderável da Fortuna. Só por nos ter reensinado que a política é a arte de abrir uma possibilidade nova na conjuntura, aqueles jovens já mereciam nosso respeito, admiração e agradecimentos.
Outros também nos ensinaram, mas pelo exemplo negativo. Refiro-me, claro, a quem não viu desde o início nada mais que subversão caótica contra governos progressistas, uma tentativa de forçar a conjuntura em torno de demandas perniciosas à estabilidade, fiscal ou política, da máquina administrativa composta pelos representantes eleitos. Quem não sabe agir a partir das circunstâncias novas e imprevistas trazidas por um novo movimento, quem não sabe se escorar na força de uma nova criação coletiva para promover mudanças e transformações, inevitavelmente é atropelado pela vida. Daí, só resta, no futuro, amaldiçoar e distorcer aquele furacão que varreu suas ilusões e fraquezas.
Este é outro elemento importante para a reflexão: junho, de forma nítida, nos fez perceber que a esquerda brasileira não estava preparada para lidar com o imponderável e o imprevisto, presa e acomodada ao jogo parlamentar e institucional. Em vez de apoiar-se no entusiasmo e da abertura para o futuro que todo grande movimento de massa gera para promover reformas substantivas no país (na vida urbana, nos serviços públicos, no mecanismo eleitoral e representativo), tornou-se refém de “paixões tristes”: trêmula, lamuriosa e – retrospectivamente – ressentida. Para dizer de forma brusca: os partidos e lideranças da esquerda brasileira não estavam preparados ainda para serem realmente reformistas, confortáveis que estavam na mera administração do estado de coisas atual.
Este tipo de avaliação parece, então, em conformidade com aquelas que celebram a força da autonomia dos movimentos sociais em oposição ao Estado e opõem, de forma dualista, uma pureza espontânea e criativa das ruas insurgentes contra o viés autoritário, repressivo e inerte do Estado. Uma renovada oposição da antinomia kantiana entre liberdade e necessidade. Não é este, entretanto, o caminho mais promissor.
Se de um lado, os balanços do lado ressentido apelam para o conspiracionismo e uma visão teleológica grotesca sobre a História, concluindo que Bolsonaro já estava implícito naqueles movimentos – algo de deixar em cabelo em pé qualquer um com respeito por historiografia séria –, do outro a apologia acrítica transmuta as limitações e fraquezas em virtude, numa operação ironicamente semelhante aos stalinistas do passado, aqueles que viam na imperfeição suja da realidade e nas concessões aos obstáculos o caminho verdadeiro do socialismo e não suas limitações impostas por constrangimentos externos.
Dito de outra forma: há uma corrente de opinião, presente à época e ainda hoje, que, em vez de analisar para melhor retificar, celebra os pontos mais limitados do movimento em sua fase mais gigantesca: o rechaço à organização coletiva, a dispersão individual de demandas, a ausência de conteúdo político propositivo e a infiltração de atos por conteúdos direitistas. Tais defeitos para a construção de uma nova política, tornam-se, através de uma operação alquímica, em qualidades. Desta forma, é impossível tirar qualquer lição dos problemas e insuficiências para, então, formular soluções. Certo “autonomismo” ingênuo – e aqui não consigo deixar de acreditar que certa recepção do pensamento de Antonio Negri no Brasil tenha tido um efeito nisto – vê a brecha para o futuro nas limitações ideológicas do nosso tempo, preferindo a algazarra festiva à política. Amam as massas em fúria, mas desprezam a necessidade da politização. Seria uma certa injustiça arcaica em ver nestes sinais a típica visão (a)política da pequeno-burguesia?
Claro, seria extremamente injusto imputar a todos os catalisadores e entusiastas de junho uma visão estreita deste tipo. Muitos militantes que viveram o período do altermundismo e do auge do Fórum Social Mundial conseguiram extrair consequências de sua experiência, em torno de uma necessidade de superar impasses binários (local contra o global, democracia contra centralismo, multitude contra o Estado) e formulam caminhos para o tema da organização política nos dias de hoje, recuperando certo legado de Lenin sem esquecer os méritos ensinados pela corrente autonomista surgida desde maio de 68: a ausência de um modelo político pronto a ser imposto a priori, o valor da experimentação com novas formas organizativas, a crítica ao engessamento mandonista dos partidos comunistas oriundos da III Internacional. É preciso ler Nem vertical, nem horizontal: uma teoria da organização, recém publicado em português, um excepcional livro de Rodrigo Nunes, um militante e teórico desta geração que tenta retomar os problemas da organização política sem se prender a um dos lados de qualquer oposição binária.2
O que as ruas em junho de 2013 tornaram patente é uma “síntese disjuntiva” – para falar como Deleuze – entre, de um lado, uma energia histórica nova ditando a abertura de novos horizontes para a ação e, de outro, uma fraqueza quanto às formas políticas a serem construídas e pensadas para dar consistência e duração a esta energia. Eis, então, uma oportunidade para alargar os nossos horizontes e ver a conjuntura de um ponto de vista mais global. É o que faremos, nos próximos textos.
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A partir das enormes mobilizações de massa no Egito em 2011, marcadas pela ocupação da praça Tahrir e uma enorme vitória tática à época – a queda da ditadura Mubarak -, vimos uma série de movimentos surgirem em diversas localidades do mundo. Tal conjuntura de início da década passada era sobredeterminada, vale dizer, pela grande crise do capitalismo, iniciada em 2008. Os indignados espanhóis, as revoltas na Grécia, as ocupações de praça na Turquia, Occupy Wall Street, as revoltas estudantis no Chile, “Nuit debout” na França… O filósofo francês Alain Badiou, otimistamente, chamou tal cenário de o “renascimento da História”. Se pensarmos em dois velhos axiomas de Mao Tsé-Tung (“o povo, e só o povo, é a força motriz, o criador da história universal”.”) e (“confiança nas massas é um princípio cardinal”), podemos dizer que há razão para tal otimismo.
Entretanto, uma mirada, ainda que ligeira e panorâmica, sobre a situação atual percebe logo que, desde esse “renascimento da História” no início da década passada, quem se recompôs e se fortaleceu foi a extrema-direita. As grandes novidades que resultaram deste élan, do qual ainda somos contemporâneos, foi a renovação da reação e das formas políticas obscurantistas. Em suma, a questão do fascismo contemporâneo (cujos emblemas no nível das representações políticas incluem Trump e Bolsonaro). No final das contas, mesmo no Egito, onde uma vitória havia sido alcançada, houve o retorno dos militares ao poder. Isto se dá porque o renascimento da História não implica necessariamente o renascimento da política emancipatória. Os grandes movimentos populares recolocam em cena, de maneira generosa e entusiasmante, aquilo sobre o qual toda política autêntica deve beber (a força da democracia de massas, a criatividade popular, a paixão pela igualdade e o ódio à opressão e exploração, etc.). Mas não implicam, per si, o surgimento de uma nova orientação política. As poucas forças políticas que surgiram deste ciclo, após suscitarem muita esperança, se diluíram na impotência ou na adaptação à ordem (Syriza e Podemos).
Somos conduzidos, então, ao nosso ponto de partida, finalmente: a atualidade do marxismo. Se encaramos o marxismo não como uma doutrina sociológica ou econômica de mero uso acadêmico para as ciências humanas, mas uma força viva, concluiremos que é a criação de uma nova orientação política estratégica que alimenta o núcleo do pensamento de Marx. Toda a construção laboriosa, um esforço hercúleo e científico de anos, incompleto, de realizar esse monumento teórico que é Das Kapital, foi consequência de uma hipótese avançada de modo clara, pela primeira vez, por Marx em 1848: a hipótese de uma organização alternativa ao capitalismo – mas, mais profundamente, a toda organização social existente desde o Neolítico –, isto é, uma organização humana realmente racional e igualitária, para além do mundo da exploração de classes mantida por Estados militarizados e guerreiros.
A conjuntura de Marx à época tinha semelhanças profundas com a nossa. Não à toa, muitos utilizaram o nome “Primavera” para batizar ambos os levantes, em localidades e tempos distintos: 1848 na Europa e 2011 no “mundo árabe”. Quais são essas características? Após um período de Restauração (1815 à época e anos 1980 hoje), segue um intervalo marcado pela ausência das referências revolucionárias do período anterior e o retorno à ordem do conservadorismo. Esse período não é duradouro, entretanto, ao contrário dos que creem na vitória definitiva da ordem dominante, pois as placas tectônicas da História, isto é, as massas populares, voltam a se pôr em movimento. Uma era de levantes, rebeliões e insurgências se abre, em movimentos heteróclitos, de composição social variada, contra a ordem dominante mas sem escapar às balizas ideológicas que constrangem a ação política da época. Isto é, sem conseguir propor uma nova orientação estratégica, radicalmente nova e transformada, como objetivo político claro. É neste diapasão que Marx intervém, tentando armar esses movimentos com uma formulação nova, capaz de ir além do liberalismo democrático-burguês. Marx, interpretando os sintomas histéricos da sociedade (o movimento operário e os levantes revolucionários), intervém através da proposição de uma invenção política. Para se cristalizar e ser realmente efetiva, ela precisa consistir numa crítica radical e numa análise científica e rigorosa das formações sociais de seu tempo, o que explica o esforço contido no Capital. No entanto, não devemos nunca esquecer que, além do Marx da nova ciência da História (para falar como Louis Althusser), há o Marx do Manifesto Comunista, da Luta de Classes na França, da Guerra Civil na França e da Crítica ao Programa de Gotha. Sem o elemento político, a obra de Marx fica incompreensível.
Podemos, desta forma, entender melhor as tarefas da nossa situação, muito parecidas com as de Marx em sua época. Lembremos que antes de Marx também não havia comunismo como o entendemos hoje. Havia, é claro, o legado do aspecto mais radical da Revolução Francesa, o movimento socialista francês, o surgimento do movimento operário, etc. No entanto, foi preciso criar uma orientação ideológica e política nova, primeiramente no plano das ideias, tendo como instrumento e alvo as manifestações populares de sua época, portadoras do futuro mas vítimas de uma impotência político-ideológica considerável. Quando Marx fez o Manifesto do Partido Comunista não havia Partido algum, mas algumas pequenas organizações de revolucionários. No nosso tempo também não há comunismo como força viva, como algo existente na espessura social e histórica. Neste sentido nosso tempo é muito diferente não apenas em relação ao século XX, quando havia Partidos herdeiros da III Internacional, o legado da Revolução Russa, experiências de construção socialista, guerras populares dirigidas por partidos comunistas etc. mas em relação também ao tempo do próprio Lenin, que interviu numa situação na qual havia a realidade da II Internacional e da fusão do marxismo com o movimento operário via partidos social-democratas, em especial na Europa central. Nossa orientação deve ser, portanto, fiel à coragem criadora daquele “mouro” que soube ver mais à frente que as alternativas existentes ao seu tempo. Somos contemporâneos de Marx porque precisamos refazer o seu gesto.
1 Isto, no entanto, não significa que é desnecessário estudar suas variações regionais. Em particular, destaco que no Rio de Janeiro o conteúdo político dos atos ganhou contornos mais progressivos em meio a campanhas contra a violência policial nas favelas (a campanha “Onde está o Amarildo”?) e ao caráter neoliberal das gestões Cabral e Paes. Mas há muitos outros exemplos que precisam ser analisados.
2 Pretendemos resenhar este livro, destacando sua importância e levantando questões novas, em um momento futuro.