Modo de vida das comunidades é desenvolvido por gerações a partir do cuidado com a Serra e sua biodiversidade
José Odeveza, Terra de Direitos
O Sistema Agrícola Tradicional de Apanhadoras e Apanhadores de Flores Sempre-Vivas é desenvolvido por comunidades tradicionais, muitas também quilombolas, que vivem na porção Meridional da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Seus modos de vida estão fundados em estruturas produtivas e de manejo que envolvem agricultura, criação de animais e manejo do cerrado. Nesta estrutura que forma essas práticas tradicionais, a coleta das flores e dos botões de Sempre-vivas é central, uma vez que é de grande importância, principalmente para a reprodução social e a constituição da identidade coletiva das comunidades.
Em junho deste ano, as comunidades apanhadoras de flores foram reconhecidas e certificadas como Patrimônio Imaterial do Estado de Minas Gerais, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico, Iepha-MG. O mecanismo de proteção permitirá a salvaguarda do sistema agrícola, que é compreendido pelo conjunto de saberes e das celebrações, rituais e expressões culturais das comunidades.
A decisão, além de ressaltar a importância cultural das práticas, pode ajudar na proteção de cerca de 20 comunidades localizadas nos municípios de Diamantina, Couto Magalhães, Olhos D´Água, Presidente Kubitscheck, Buenópolis, Serro e Bocaiúva. O registro de patrimônio imaterial é mais uma conquista que se soma ao selo de Sistema Agrícola Tradicional de Importância Mundial (Sipam), concedido pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) desde 2020. O sistema agrícola dos apanhadores de sempre-vivas é o único do Brasil a receber esse reconhecimento da FAO/ONU.
Para entender um pouco mais sobre a conquista e os impactos deste reconhecimento para as comunidades, entrevistamos a coordenadora da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), Maria de Fátima Alves, que representa coletivamente as comunidades.
Confira a entrevista completa:
Como foi o processo de trabalho e articulação para a conquista do reconhecimento por parte do estado de Minas Gerais do Sistema Agrícola das apanhadoras (es) de flores como patrimônio imaterial do Estado?
O reconhecimento como patrimônio Cultural do Estado de Minas iniciou seu o processo ainda em 2018 quando a CODECEX se mobilizou e notificou via ofício a necessidade do reconhecimento para o Iepha-MG. Na época, estávamos também no processo de candidatura ao SIPAM pela FAO/ONU. Após o aceite pelo IEPHA iniciou-se o processo de elaboração do dossiê para comprovação da importância do trabalho das apanhadoras, que contou com o apoio de pesquisadores e organizações. Principalmente devido a pandemia de covid-19, o processo foi extremamente lento e demorou-se um tempo grande para apresentação e aprovação do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural – CONEP, sendo necessário articulação política junto ao IEPHA, contando também com o apoio das prefeituras e parceiros.
Na avaliação das Comunidades e da CODECEX o que representa esse reconhecimento para a luta das apanhadoras de flores?
Esse reconhecimento traz dois pontos importantes. Um é a visibilidade que isso dá as comunidades apanhadoras e apanhadores de flores Sempre-Vivas. E o outro é o comprometimento que o Estado de Minas Gerais assume, pois o registro garante a construção de um plano de salvaguarda deste Seitam Agrícola.
Na prática este reconhecimento pode barrar ameaças aos territórios?
Esse reconhecimento é muito importante e garante a salvaguarda do modo de vida tradicional e comisso [direito de posse] no território. Mesmo antes do reconhecimento este processo foi usado pra suspender a atividade minerária em um território, já que, havia sido iniciado a elaboração das peças do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) numa comunidade quilombola. Então é uma ferramenta que pode ser usada não apenas pra proteger, mas também pra garantir o território das comunidades apanhadoras e apanhadores de flores Sempre-Vivas.
Como este reconhecimento ajuda na mobilização das comunidades para a continuidade da luta?
A cada conquista adquirida os ânimos são renovados, pois a tão esperada liberdade se torna cada vez mais próxima. E ter este reconhecimento do Estado de Minas é muito importante para as comunidades aumentarem a autonomia no território. O mesmo estado que reconhece e salvaguarda não pode ser mais o opressor. Precisa tomar um lado.
Sabemos que os existem desafios cotidianos no enfrentamento contra empreendimentos nos territórios, como por exemplo as mineradoras. Como você acredita que esse novo reconhecimento pode ajudar nos embates que partem também do estado de Minas Gerais?
Os desafios são muitos e a principal ferramenta de proteção ao território é a regularização e titulação. Este é o caminho a seguir, mas como o processo é lento, o estado precisa estar mais atento aos pedidos de licenças dos projetos minerários em territórios tradicionais apanhadores de flores sempre-vivas.
Por fim, quais são os próximos passos para efetivação dos direitos das apanhadoras de flores? Existe algum outro instrumento que ajudará a validar a existência e trabalho das comunidades?
Além do plano de salvaguarda, as comunidades precisam estar atentas aos ataques aos territórios. Este recente reconhecimento não é a primeira ferramenta das comunidades apanhadoras de flores Sempre-Vivas e nem vai ser a única. Entendemos que o conjunto delas que torna possível a proteção do território. Como por exemplo, termos o reconhecimento como patrimônio agrícola mundial pela FAO/ONU, protocolo de consulta livre, prévia e informada, protocolo bicultural, leis municipais de reconhecimento e valorização do modo de vida tradicional, entre outras.
—
Foto: Maria Eugenia Trombini