Na escola Puyanáwa, a língua sonhada. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

“Quem tem a língua cortada, não fala”
(Provérbio Mongol. Sec. XIII).

Na recente visita que fiz, em maio de 2023, às aldeias Barão do Rio Branco e Ipiranga, do povo Puyanáwa, lá no Acre, eu vi o coronel Mâncio Lima e seus capangas armados invadirem a Escola Estadual Ĩxũbãy Rabuĩ para impedir que as crianças e os professores usassem a língua Puyanáwa na sala de aula. Meninas, eu vi. Juro que vi.

– Impossível, o coronel Mâncio morreu em 1950 – dirão os que somente veem com os óculos do tempo presente. Mas o olhar histórico permite ver a alma penada dele vagando e andando ainda hoje pelo oeste do Acre, porque o município foi batizado com seu nome – uma homenagem ultrajante a quem invadiu as terras indígenas, em 1910, sequestrou e escravizou os seus ocupantes e puniu brutalmente quem usava a língua ancestral.

– Quem falava Puyanáwa era castigado, tinha os dentes e unhas arrancados, era açoitado e houve caso até de quem teve os olhos furados – contam os velhos. A memória simbólica dá conta da cruel repressão, que durou mais de 40 anos, com resultados catastróficos. Crianças e jovens foram se tornando todos monolíngues em português e – oh ironia! – cantam o hino municipal, que apaga os crimes e convida a amar o criminoso:

Mâncio Lima, Mâncio Lima, és terra de grande tradição.
Mâncio Lima, Mâncio Lima, te amamos de todo coração”.

Língua decepada

– “O carrasco mata sempre duas vezes, a segunda por meio do silêncio” – nos diz o escritor judeu Elie Wiesel, sobrevivente dos campos de concentração, em cuja casa se falava o iídiche escondido dos nazistas.

Silêncio e apagamento. O glotocídio no Acre foi mais hediondo do que o cometido no séc. XIII pelo exército mongol, que libertava o prisioneiro inimigo, mas para que “não batesse com a língua nos dentes” a decepava com um facão. A mutilação física emudecia indivíduos, mas a língua, como instituição social, permanecia viva e continuava se realizando na fala de outras pessoas.

No caso Puyanáwa, o objetivo era exterminar da face da terra a “língua verdadeira¨ ou  Ûdikuî, impedir que fosse falada e transmitida às novas gerações e afogar seus falantes para sempre no eterno silêncio.

Dessa forma, a língua Puyanáwa agonizava, moribunda, com apenas 12 falantes em 1990. Vinte anos depois, numa população de 624 pessoas (Censo IBGE 2010), restou uma última falante na aldeia Barão: dona Railda Manaitá, que só pôde adquirir a língua ancestral porque na infância, sua mãe, dona Joana Manaitá, conversava com ela em casa, escondida da repressão. Nunca foi tão apropriado o termo “língua materna”. Porém, como conservá-la? Eis aí o problema.

Dona Railda, hoje com 92 anos, viva e lúcida, viu seu irmão Luiz morrer, em 2009, e em seguida o cacique Mário e aí não tinha mais com quem falar. Dona Sofia Lopes, uma sábia, entende bem a língua, mas não a fala com fluência. Foi então que dona Railda encontrou a forma engenhosa de ter interlocutor. Se perguntarem dela Mĩ awaha nãba-ki? (O que você sonhou?), ela responderá: “Com minha mãe”. Passou a sonhar amiúde com sua genitora com quem sempre bate o maior papo na língua materna, em sonhos, como revelou, chorando, ao linguista Aldir de Paula.

A escola

Foi sua resistência e sabedoria que permitiram organizar a escola com novo modelo de ensino/aprendizagem:

– Railda sintetiza a índole Puyanáwa: encantadora, amável, atenciosa e também a primeira pessoa que despertou para a necessidade da manutenção linguística do Puyanáwa, criou um alfabeto baseado no Português e elaborou um vocabulário e uma lista de frases na língua – declarou Aldir no livro Dukũ Vãda Kayanũ (Ensinando Puyanáwa).

Território e língua caminham sempre de mãos dadas. Com a retomada e demarcação da terra, em 2001, a cultura puyanáwa começou também a ser demarcada e entrou pela porta da frente na Escola Estadual Ĩxũbãi Rabuĩ. A instituição escolar, que havia sido criada antes para destruir a língua ancestral, agora se tornou o centro da resistência. Pude visitá-la, sala por sala, conversar com os professores e com as crianças e até dançar com elas.

A Escola cobre o ensino fundamental e médio. Diariamente, centenas de crianças monolíngues em português respondem à chamada em Puyanáwa, aprendem nomes de animais, partes do corpo, números e frases simples. Nenhum aluno consegue ainda manter um diálogo fluente na língua, mas os avanços são notáveis e, sobretudo, é visível o orgulho de participarem do processo de recuperação e revitalização de um idioma que já havia sido considerado extinto.

O atual professor da língua Puyanáwa, Samuel Traké Rondón usa as anotações do caderno herdado de Mário, seu pai, liderança tradicional e ex-professor da língua Puyanáwa. Para a pronúncia e a entonação, dona Railda tira qualquer dúvida.

A alma penada

Os Puyanáwa estão produzindo conhecimentos sobre a língua que pertence à família linguística Pano e é aparentada com mais de 30 línguas faladas em três países: Brasil, Peru e Bolívia. Vãda Kuī: um estudo etnográfico e linguístico sobre os indígenas das aldeias Barão e Ipiranga” é o tema da tese de doutorado a ser defendida ainda este ano por Jósimo da Costa Constant na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação de Bruna Franchetto.

Jósimo, falante nativo de português, domina ainda o espanhol e inglês. Mestre pela Universidade de Brasília, concluiu três graduações: em Ciências Sociais, em Antropologia e em Sociologia. Sua atual preocupação é produzir material didático na língua ancestral e fortalecer seu uso. Ele não é o único. Sua prima Kely Costa de Lima defendeu recentemente dissertação de mestrado sobre o ensino da língua ancestral no ensino fundamental da escola onde é professora.

Além do doutorado e do mestrado, o Curso de Licenciatura Indígena da UFAC – Campus Floresta, também reserva em seu currículo lugar destacado para as línguas, como foi possível verificar na aula magna proferida em Cruzeiro do Sul para os 50 alunos que acabam de ingressar, entre eles os Puyanáwa Maria Eduarda, Maria Valéria e Rair Keneyja, com quem visitamos a escola, em companhia de Alessandro Cândido da Silva, coordenador da licenciatura.

Uma conversa breve com o cacique Joel Ferreira Lima Divake foi suficiente para avaliar sua combatividade, da mesma forma que apreciar a performance do dançarino Ariel, 8 anos, aluno do 3º ano, permitiu concluir que faz jus ao seu nome Puyanáwa – Ketsianã  (Corrupião), um dos pássaros mais melodiosos do Brasil. Parece que a alma penada do coronel Mâncio Lima não vai ter sossego tão cedo.

P.S. Levamos as notícias sobre a língua Puyanáwa para a EMERJ – Escola da Magistratura do Rio de Janeiro no evento “Os povos indígenas e os sistemas de justiça” ocorrido nesta sexta-feira (30), aberto pelo desembargador Paulo Baldez e por seu colega aposentado Sérgio Verani, com a participação de Maial Paykan Kayapó, filha do Paulinho Paiakán, da juíza Simone Dalila Nacif Lopes e deste locutor que vos fala.

Referências bibliográficas sobre os Puyanáwa:

Kely Costa de Lima “O ensino da língua indígena na Escola Ĩxũbãy Rabuĩ Puyanáwa no Ensino Fundamental I: a ferramenta agregadora para o fortalecimento cultural”. Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades e Linguagens UFAC Campus Floresta.Orientador Alessandro Cândido da Silva.2023

Jósimo da Costa Constant. “A Terra é de vocês. Compreendendo a efetivação do direito ao Território no seio do povo indígena Puyanáwa. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, V.12. nº . 2019.

José Carlos Levinho. Relatório de reestudo das Áreas Indígenas Puyanáwa, Nukini, Jaminawa e Camponas. Minter. FUNAI. 1984.

Aldir Santos de Paula. Poyanáwa, a língua dos índios da aldeia Baerão: aspectos fonológicos e morfológicos. Recife. UFPE. 1992. Dissertação de Mestrado.

Terri Valle de Aquino. A imemorialidade da área e a situação atual do povo Poianaua. Rio Branco-AC, s. ed. 1985

Delvair Montagner Melatti. Relatório da Viagem Realizada às Áreas Índígenas do Município do Cruzeiro do Sul. DGPC/Funai (1ª eleição da área indígena Poianáua) 1977.

 

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