O conceito de democracia é relativo?

Afirmação de Lula gerou polêmica. Velha mídia e juízes isolados usam-na para atacar o governo. Mas seu cinismo oportunista mal disfarça o golpismo. O Brasil real sabe: aqui ela é defeituosa e excludente – e é preciso reconstruí-la sob outras bases

por Marcus Aurelio Taborda de Oliveira, em Outras Palavras

Há poucos dias o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou em um evento público que o conceito de democracia é relativo. Bastou para que alguns representantes da mídia mainstream, além de pelo menos um representante do STF, atacassem a manifestação do presidente. Sem considerarmos o preconceito constantemente manifestado contra Lula por muitos jornalistas, assim como por uma parte do judiciário, impressiona observar a ignorância histórica de alguns desses filhos das elites ou da classe média brasileira. Se Lula erra ao defender regimes autoritários ou que flertam com o autoritarismo, parece claro que acerta ao afirmar que democracia é um conceito relativo. Se preferirmos, é historicamente contingente. Tivesse clareza ou não disso, a sua fala foi, na verdade, uma defesa da democracia, e não a sua desqualificação, como apressadamente derivaram alguns não muito bem-intencionados.

Se é da democracia como um valor formal que se trata, portanto, algo limitado, então alguns dos seus princípios ajudam a justificar a sua defesa por parte de alguns cínicos ou oportunistas formadores de opinião. Afinal, o voto, a independência dos poderes, a alternância no poder e uma imprensa livre estão entre alguns desses valores. Mas frequentemente esses críticos do presidente esquecem que a democracia pressupõe historicamente a universalização da cidadania, com a consequente inclusão de cada vez mais amplas parcelas da população no âmbito dos direitos sociais, políticos, econômicos etc. E quem, a partir desse princípio elementar, é capaz de sustentar que o Brasil é um país real e plenamente democrático? Criminalizamos movimentos sociais, a ponto de instaurarmos CPIs contra eles, prendemos e matamos seletivamente jovens pretos pobres e periféricos, permitimos que a polícia invada escolas e expulse dali estudantes secundaristas que reivindicam o seu direito ao mundo, temos um dos piores índices de distribuição de riquezas do mundo, mesmo sendo o Brasil um país riquíssimo, aqui juízes podem ser empresários, abandonamos direitos fundamentais básicos como educação, saúde, assistência, seja no que se refere à sua expansão ou à sua qualidade, assistimos a práticas de escravidão contemporânea e culpamos trabalhadores pobres e desassistidos por elas, operamos orçamentos secretos com dinheiro público, encarceramos milhares de pobres sem julgamento mas não conseguimos deixar na cadeia um único banqueiro, latifundiário ou empresário desses que destroem a estrutura do Estado com o seu sistemático exercício de corrupção. Até mesmo em aspectos mais elementares, como a boa prática de consultas populares, nos limitamos ao voto em eleições formais a cada dois ou quatro anos. É muito pouco. Aqueles que se pensam como elite do país demonstram profundo medo de referendos ou plebiscitos. Ou seja, podemos listar uma série de situações que nos permitem observar que, para além do seu aspecto formal, o Brasil está longe de ser uma democracia plena.

Se olharmos apenas um pouco para a história recente observaremos que países como os Estados Unidos, tão incensados por essa mesma turma, produziu na década de 1950 um fenômeno como o macarthismo, com caça àqueles que simplesmente simpatizassem com o socialismo ou o comunismo. O mesmo país que julga ter autoridade moral para intervir nas práticas políticas de outros países com o exercício da força bruta. Mas como a mídia inconsequente se nutre do efêmero, muitas vezes com a ajuda de importantes autoridades, claro que muitos analistas não lembram de Granada, Cuba, Iraque, Afeganistão e o tétrico ciclo de ditaduras apoiadas pelos “valores democráticos” do Tio Sam na América Latina. Mas podemos, ainda, lembrar como um país considerado como o berço da moderna democracia, a França, atuou na condução das guerras de libertação colonial na África, no Oriente Médio, da mesma maneira que algumas outras “potências democráticas”. Potências como Israel, um Estado que a despeito da trágica saga do povo judeu na história, nega o direito à existência digna ao povo palestino.

Pouco se critica a aliança entre o neoliberalismo econômico e o refluxo político autoritário ou reacionário que temos visto em vários países do mundo, hoje, inclusive algumas daquelas “grandes potências” (Estados Unidos, França, Alemanha, Itália). E é farto o material disponível para historiadores e jornalistas interessados em conhecer as iniciativas de alguns desses zelosos defensores da democracia vazia de conteúdos para treinar a mão de obra que torturava e matava nos porões das ditaduras do então Terceiro Mundo. Mesmo os arautos da ditadura empresarial-militar brasileira entre 1964 e 1985, defendiam que no Brasil vivíamos em plena democracia “indireta”. Ou seja, a democracia para alguns, é um valor se for devidamente tutelada e administrada a conta-gotas. Nada de muito exagerado que faça com que os mais pobres, populações ou países, reivindiquem mais do que devem.

Curiosamente, mas talvez nem tanto, na mesma semana em que Lula emitiu o seu comentário sobre a democracia, foi publicada uma pesquisa pela qual somos informados que 52% dos entrevistados não apenas tem medo do comunismo, como acham que marchamos para uma ditadura comunista. Obviamente podemos nos perguntar o que as pessoas entendem por comunismo. Sobretudo um tipo de gente que manda mensagem para ET’s e reza para pneus. Mas me parece ocioso, pois o trabalho sujo já foi feito. E ele é evidenciado pelo anticomunismo semeado no Brasil a partir de um consórcio entre um capitalismo predatório, um cristianismo reacionário, seja católico ou evangélico e forças armadas que atuam sem muito apreço por valores republicanos. Consórcio devidamente sustentado pela sedução exercida sobre a grande mídia pelos valores por ele professados. Nunca conhecemos no Brasil, nem mesmo no plano municipal ou estadual, qualquer governo que se aproximasse de uma experiência minimamente socialista, imagine-se algo como o comunismo. Aqui tratamos reforma agrária, conselhos tutelares, orçamento participativo, SUS, direitos sociais básicos como maquinações comunistas. Da mesma maneira que perpetuamos o privilégio de oficiais militares, magistrados e políticos profissionais em relação a salários, carreiras e previdência, enquanto punimos a maioria dos trabalhadores, além de autorizarmos empresários a fazerem a gestão da riqueza que é de todas e todos. Ou seja, enquanto um tipo de lavagem cerebral propaga o medo do comunismo, a população deixa de ser informada que todas as suas mazelas são o prodígio de um rico país capitalista que nasceu da escravidão e do genocídio indígena, que sempre foi e segue sendo capitalista. Que pouco exerceu uma democracia que incluísse a todas e todos. No qual muitos dos seus dirigentes em diferentes níveis não admitem que um mínimo de direito e de participação sejam conquistados pelas minorias econômicas, étnicas, sexuais, de classe. Caso contrário, é o comunismo tentando ferir a “nossa” (deles) democracia.

No Brasil, a despeito da falta de um claro projeto das esquerdas para o país, a tentativa de instauração de um novo ciclo autoritário veio de uma ala da política defensora do hiper-liberalismo econômico (empresários), de uma pauta dos costumes medieval (líderes religiosos) e de parte de agentes do Estado (juízes, militares, políticos) que deviam prezar pela Democracia de fato, não como algo abstrato. Tudo com o silêncio constrangedor, por vezes cumplicidade, de uma grande parte da mídia. Ou seja, de alguns agentes que têm a democracia na ponta da língua, embora tratem dela como um mero detalhe retórico. E se é de retórica que se trata, Lula está correto: o sentido de democracia que defendem alguns desses agentes certamente não é aquele que interessa ao conjunto da população brasileira. Pena que o presidente faça uma consideração tão importante para defender figuras tão nefastas como Daniel Ortega e Nicolás Maduro, quando o que mais temos no Brasil são personagens similares.

Parece sintomático que, após a perseguição a Dilma Rousseff, a prisão de Lula sem qualquer prova documental e o pacto feito pelos donos do poder para alçar à presidência um medíocre deputado do baixíssimo clero, muitos apelem para uma retórica carcomida para desqualificar a imagem de Lula junto à população, afirmando que flerta com o autoritarismo. Difícil crer que se trate de ignorância, visto serem pessoas aparentemente bem preparadas e influentes nos cargos que ocupam no jornalismo ou no Judiciário. E não ignoram que o atual presidente jamais flertou com o autoritarismo, mesmo quando tinha 80% de aprovação popular e poderia tentar forçar as regras do jogo para permanecer no poder. Parece claro, então, que as opiniões inconformadas contra ele são posições ideológicas, que manifestam muito do preconceito contra os pobres que é uma das marcas dessa “democracia” brasileira, tão feita para alguns poucos. Ora, o presidente derrotado nas eleições passadas, incapaz de elaborar duas ideias mais ou menos complexas, fez apologia do estupro, de torturadores, defendeu que muita gente deveria ser morta, agrediu sistematicamente opositores, jornalistas – sobretudo mulheres –, conduziu o país ao caos durante uma pandemia. Mesmo assim, sistematicamente observamos uma tolerância absurda do judiciário e da grande imprensa com os seus atos, como se fosse apenas um bufão caricato e não representasse um perigo para o país. Por seu turno, Lula emite uma opinião controversa sobre a relatividade de um conceito e é suficiente para que seja enquadrado como a encarnação do mal. Definitivamente, democracia é um valor relativo quando tratada na sua face formal.

Conforme lembra um autor como Norberto Bobbio (2000), não há equivalência entre o conceito ideal de democracia e o seu conceito real, ou seja, aquilo que se assentou no mundo moderno como a delegação que os cidadãos dão a alguém para que os represente. Em síntese, o exercício eleitoral, o direito ao voto. Toda a retórica em torno dos valores democráticos quase “sagrados” do moderno mundo ocidental se move entre a sua dimensão analítica e a axiológica. Político arguto como é, Lula ofende os “teóricos” que só são capazes de enxergar a democracia como expressão dos seus interesses e desejos, não como possibilidade de plena realização de todos. Por isso achamos natural encarcerar uma jovem mãe que “rouba” um shampoo ou um pacote de bolachas, mas sempre defendemos o amplo direito à defesa de todo tipo de empresário pilantra que pode pagar caro por advogados e sair em capas de revistas ou no caderno de economia dos grandes jornais, mesmo quando enganam e roubam reiteradamente o país. Portanto, em países de democracia formal frágil, como o Brasil, onde a cultura política se ancora em uma moralidade bastante elástica, também os conceitos parecem adquirir uma plasticidade que confunde o observador menos arguto. Assim, para muitos atores sociais, incluindo parte significativa da mídia, democracia confunde-se com votar. É pouco. E certamente alimenta um circuito de manutenção de privilégios com a consequente exclusão da maioria da possibilidade de ter os mais básicos direitos. De ter uma vida digna.

No final dos anos 1990, foi um intelectual comunista que publicou um texto icônico em defesa da democracia. Quando falava da democracia como valor universal, Carlos Nelson Coutinho atualizava muito do pensamento crítico que rompia com todas as formas autoritárias de exercício da política. Era uma voz da esquerda política, de uma tradição que remonta à condenação de todo tipo de exagero perpetrado por regimes totalitários ou autoritários, fossem capitalistas ou comunistas. Como valor universal, algo que deveria ser almejado por sociedades plurais e complexas, a democracia nem por isso é um valor absoluto ou abstrato. Ela se manifesta e consolida em práticas sociais e políticas cotidianas, exige um grande esforço e atenção constante no seu aperfeiçoamento. Tratá-la como um valor absoluto é o mesmo que retirar a política da história e pensá-la como um tipo de dadiva ou iluminação. E isso só interessa a um tipo de autoridade pública e um tipo de jornalista, que são mais do que cafonas. São ideologicamente muito bem situados e interessados, embora queiram fazer crer que falam em nome de valores universais.

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