O bêbado. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Depois de apenas alguns goles de fortes bebidas, Pedro já estava bêbado. Isto não lhe era comum. “Meu corpo é curtido em cachaça!”, dizia para os amigos já gargalhantes de bêbados. Mas, de uns tempos para cá, percebeu-se menos resistente. Com pouco, subia-lhe a embriaguez. Mais rápida, mas também diferente. Como em toda embriaguez, começava com desinibição e alguma efusividade exagerada, nas fases mais avançadas, o mundo girava e o real não parecia mais tão sólido quanto antes. Era nesta última fase que as coisas estavam diferentes para Pedro. Diferentes demais. O mundo visto pela embriaguez já não girava mais, ele agora se refazia diante de seus olhos. Tornava-se outro. Via coisas que, apesar de as ver, sabia que não estavam lá. Mas, ao mesmo tempo, estavam, entende? Pedro não entendia. Só percebia assim.

A coisa foi piorando com o tempo. A embriaguez, que antes tinha como causa privilegiada a bebida, agora lhe vinha de outras formas de embriaguez com as mesmas ilusões e incertezas quanto ao que se via. Embriagava-se com o que ouvia, quando o que se ouvia eram coisas dignas de discurso de bêbado, mas dito por gente sóbria como um padre sisudo em missa de domingo. Ou até mesmo com aquilo que via com os olhos de quem se perde na pantomima da TV ou no aleatório das imagens e vídeos do Instagram, que passam do naco de show do humorista a uma briga de rua num quase insignificante levantar do indicador.

Procurou médicos e até curandeiros. Tomou remédios e chás. Chegou até ao cúmulo de fazer o que lhe parecia inconcebível: parou de beber. Nada adiantou. Na sobriedade alcoólica, parece até que piorou. Como se o nonsense do que ouvia e via compensassem em embriaguez a falta da bebida. Desistiu de desistir e entregou-se, novamente, à bebida. “Se é para ficar bêbado com qualquer coisa, melhor fazer isso bêbado”, pensava. Num mundo que lhe parecia cada vez mais sem sentido, só a total entrega à falta de sentido lhe parecia fazer sentido.

Perdeu de vez a sobriedade para não perder o juízo. Tirou férias e, decidido a embriagar-se contra a embriaguez, embriagou-se noite e dia. Os amigos o acompanhavam na missão de cura, mesmo sem acreditarem no motivo de tanta bebedeira. Achavam que era, como quase sempre, só uma ferida no coração, dessas provocadas por alguma desilusão amorosa tão vergonhosa que nem quando bêbado se confessa para os amigos. Fosse como fosse, não importava, eram amigos e amigos são para os momentos ruins, seja lá qual for a ruindade do momento.

E, como se não bastasse a estranheza da doença de Pedro, a cura até que deu resultado. Não o esperado, mas ainda assim foi uma melhora. Continuou embriagando-se sem bebidas. Continuou tendo alucinações. Continuou vendo padres abençoando fuzis, cristãos pregando o ódio, liberais flertando com o fascismo, conservadores estupradores pedófilos, líderes que colocam os interesses mesquinhos acima das necessidades dos liderados e liderados que os amam cada vez mais na razão direta com que são desprezados.

Continuou vendo e ouvindo pessoas, que não sabe serem reais ou não, falando do comunismo à espreita em todo lugar, até na garrafa da cerveja, jornalistas que colocam o sensacionalismo acima da credibilidade, juízes aplaudidos na imparcialidade e outros vaiados ao fazerem justiça. Num mundo alucinado, Pedro, bêbado, sentiu-se sóbrio. O único sóbrio no meio de uma orgia de fantasias e ideias antigas, perversidades travestidas de caridade e tolices admiradas como se fossem genialidades.

Certo estava o poeta. Num mundo perdido, é preciso embriagar-se. De vinho, poesia ou virtude.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

 

Comments (1)

  1. Este Pedro é um bom personagem. Já li em outro texto seu. E nada como uma embriaguez natural de Virtude e Fé!

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