Zé Celso: com o vento forte, o papagaio subiu. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

“Eu hoje vou fugir com o vento / Vou até o firmamento /  
Vou ver a Terra a brilhar, a brilhar” (Zé Celso, 1937-2923).

O papagaio empinado pelo menino Zé Celso dançava no céu de Araraquara (SP), sua terra natal, mas uma inesperada tempestade o molhou, levando-o a fugir com o vento, após agonizar sob o sol. Comovido, o menino pegou o violão, compôs uma música e depois escreveu sua primeira peça de teatro “Vento Forte para um Papagaio subir”, que inaugurou o Grupo Oficina, em 1958, e foi reencenada, em 2008, para comemorar os 50 anos do Teatro Oficina Uzyna Uzona.

Araraquara, na peça, é Bandeirantes – cidade fictícia do interior de São Paulo. Lá, Zé Celso de carne e osso, aos 71 anos, toca ao piano a trilha musical e contracena com o Zé Celso de 21 anos, interpretado pelo ator Lucas Weglinski. Na cidade que se recupera dos estragos do temporal, ele tem de decidir se volta à vidinha normal de vendedor de livros, ou se atende ao chamado do vento forte para morrer como pequeno burguês e renascer como poeta.

Mas Araraquara é também qualquer lugar do mundo, onde o papagaio liga o homem ao céu:

– O homem pisando o chão e o papagaio bailando no espaço de repente se transformam numa coisa só. A linha leva a alma do empinador, que por ela sobe e se prolonga, penetrando no corpo do papagaio” – escreve o poeta Thiago de Mello no livro “Arte e Ciência de Empinar Papagaio” .

Imperador do Espaço

Foi assim que Zé Celso fugiu com o vento no corpo do papagaio, chamado por ele de “Imperador do Espaço”. Sua memória lúdica e afetiva é compartilhada por crianças dos seis continentes, marcados indelevelmente pelo papagaio, nascido – dizem – na China, que realiza anualmente o Festival de Subir Mais Alto. No Japão, se promove competições. Ele baila nos céus do mundo inteiro e, é claro, de Manaus.

O titiriteiro Euclides de Souza, o Dadá, aos 87 anos, ainda sonha em montar uma peça de teatro de bonecos com o papagaio, seguindo o roteiro de Abrahim Aleme de retratar Manaus em um filme com um papagaio queidando solto pelos céus da cidade, as crianças correndo atrás por todos seus bairros em busca do “pássaro que reparte a alegria de viver”. No alto, o colorido “banda de asa”. Em baixo, a realidade nua e crua da capital do Amazonas.

O papagaio é tema de diferentes obras de arte: teatro, música, artes plásticas, literatura, cinema. Thiago faz uma lista de pintores, escritores, poetas, dramaturgos, músicos brasileiros e estrangeiros. No Museu del Prado de Madrid telas de Goya mostram o “olhar apaixonado do empinador de papagaio”. O pintor chileno Nemesio Antunes  se valeu do volantín como “elemento plástico sedutor”.

Fascinado pelo brinquedo, Tiago de Mello organizou, em 1961, na galeria de arte do Centro Brasileiro de Cultura, em Santiago do Chile, por ele dirigido, uma exposição de volantínes feitos por Guillermo Prado, que “acordava agoniado no meio da noite para anotar os desenhos e a cores de um volantín fantástico que o visitara enquanto dormia”.

Neruda falava de “una banda de pájaros amarillos que volaban en forma estraña como nadando en el água celeste”.Quando convidava Thiago a visitá-lo na Isla Negra, lembrava: “Compañero, no te olvides de tus volantines”.

Pássaro-serpente

Em Cuba, o cantor Silvio Rodrigues homenageou em uma de suas músicas empinador e fabricante de papagaio, conhecido lá como “papalote”Qué pájaro perfecto / Cuántos colores, qué lindo canto / El papalote/ Cae, cae, cae, cae, cae.

No Brasil, o papagaio, com nome de pipa, está nos quadros de Portinari, Di Cavalcanti, Guignard e nos óleos e gravuras de Volpi e Heitor do Prazeres, que “captou com perfeição a alegria dos meninos dos morros cariocas empinando papagaios” – escreve Tiago. Também em cronicas, poemas e músicas: Drummond, Otto Lara Resende, Rubem Braga, Tom Jobim.

No Amazonas, Moacyr Andrade, Rita Loureiro, Inácio Evangelista e Zuazo, que trabalhou o papagaio em xilogravuras, mostram seu deslumbramento com “o baile do papagaio no vento”.

Thiago dedica um capítulo à cidade de Manaus e ao seu brinquedo, com histórias que certamente encantariam Zé Celso. Ele conta que seu filho Manduca estava “completamente seduzido pelo pássaro-serpente”. Com ele, empinou, em 1954, um papagaio na rua Pedro Botelho, em Manaus. Num determinado instante, foi buscar mais linha e deixou o papagaio voando aos cuidados do filho de 4 anos. Ao retornar, Manduca olhava o céu “na direção do nosso papagaio levado pelo vento”. O que aconteceu? – perguntou.

– Ele estava pedindo muito para ir embora – respondeu o filho com convicção.

De braços abertos

Essa pode ter sido a resposta de Zé Celso, que nos deixou nesta quinta-feira (6) aos 86 anos.  Sua vocação anárquica foi uma escolha de contestação aos podres poderes que a história nos lega e àquela ordem de corrupção, guerras, exploração que até hoje assistimos. As peças por ele encenadas fizeram minha cabeça: Andorra, Galileu Galilei, Roda Vida, Os Pequenos Burgueses, o Rei da Vela. Aguardo ansioso a encenação da peça “A Queda do Céu” que Zé Celso estava adaptando do livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Na noite anterior ao incêndio – diz o ator Pascoal da Conceição – ele estava preparando o texto quase concluído. A peça vai inaugurar o teatro do Parque do Rio Bixiga.

Já o “Vento Forte” só assisti agora no you tube. Viva Zé Celso, transgressor genial e combatente pela utopia de uma ordem mais justa. Ele gostaria de ouvir a narrativa lendária de Manaus do menino que o papagaio levou recolhida por Thiago de Mello

Foi assim. O menino brincou no quintal de sua casa à tarde toda, “com os olhos iluminados perdidos no espaço”. Quando anoitecia, sua mãe foi chamá-lo e ele não estava mais lá, só seu par de chinelos. Ela olhou para o céu, os dois haviam desaparecido no firmamento. Como Zé Celso, que lá de cima, está vendo a Terra a brilhar, a brilhar, de braços abertos como se fossem as asas de pássaro:

– Vou abrir bem os meus braços / Me lançar por este espaço / A voar, a voar.

Foto Cláudio Leal. Folhapress / TaquiPraTi

***

P.S. Naquela que foi talvez a última entrevista  concedida a Cláudio Leal e publicada na Folha SP neste domingo (9), Zé Celso fala que conheceu em Araraquara (SP), num evento, Davi Kopenawa, “um grande intelectual, xamã, que escreveu com o antropólogo Bruce Albert  A Queda do Céu” . Lá pediu a cessão dos direitos autorais para encená-la no teatro e Davi concedeu.

– Aí comecei a trabalhar numa equipe com cinco pessoas, na fase da dramaturgia. Fizemos toda a dramaturgia, mas agora estamos na revisão. Na primeira leitura pública de sua adaptação de “A Queda do Céu”, no Sesc Pompeia, uma parte plateia foi pouco reativa? – pergunta o entrevistador. Zé Celso responde:

A maioria foi a nosso favor. Mas tinha uma minoria completamente reativa. Eu saí da reunião cambaleando com energia negativa. Mas é uma minoria. Esse trabalho é muito complexo. O livro tem 700 páginas e, além do texto, remete a muitos comentários. Para Zé Celso, a leitura de A Queda do Céu foi “praticamente a descoberta de um outro continente”. Ele pretende formar um elenco indígena. “Branco vai ser garimpeiro, missionário, funcionário da Funai. A maioria de papéis é com os indígenas”.

Zé Celso disse que nunca visitou uma aldeia, embora sua avó fosse indígena, de Porto Ferreira (SP), de onde fugiu para morar em Araraquara. “Encontrou meu avô, casou. Eu tenho uma ascendência indígena que me orgulha muito” – disse.

 

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