O uso do Protocolo representa um reconhecimento histórico do direito de consulta prévia dos quilombolas de Santarém, no Pará
Lanna Paula Ramos, Terra de Direitos
Dez comunidades quilombolas da região do Tapajós (PA) receberam, em junho, os documentos de finalização do Cadastro Ambiental Rural (CAR) Coletivo, que marca a etapa inicial da regularização ambiental necessária para imóveis rurais e territórios coletivos. Essa conquista representa a autonomia dos povos, garantia de benefícios rurais e a efetivação do direito à consulta prévia, livre e informada dos quilombolas de Santarém e Prainha, no Pará.
Desde 2002 – quando o Brasil ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – o direito de consulta prévia, livre e informada está garantido aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais do país. Isso significa que eles devem ser consultados, de acordo com suas regras e princípios autônomos, sobre qualquer medida, lei, projeto ou empreendimento que possa afetar seus modos de vida.
Mirianne Coelho, quilombola do território de Maria Valentina e secretária da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS) conta que o debate do CAR já vinha sendo feito nas comunidades há muitos anos. Por isso, em 2022 a FOQS – representante das comunidades quilombolas de Santarém – reivindicou junto à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) que fosse realizada assistência técnica do órgão público para que as comunidades quilombolas de Santarém e região garantissem o CAR Coletivo no módulo de Povos e Comunidades Tradicionais para os territórios.
“Foi importante esse processo pra gente mostrar para o Estado, o Governo e para as empresas que tudo que se vai fazer dentro do território quilombola nós precisamos dizer o que queremos e como queremos”, conta Mirianne.
Os quilombolas de Santarém foram os primeiros a terem um CAR no Pará e por isso são considerados pioneiros. Em 2014, a FOQS, em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR), registrou o CAR de algumas comunidades quilombolas no módulo Rural. Naquele momento o CAR em Módulo Rural contemplava as necessidades das comunidades, mas por outro lado não reconhecia o território enquanto tradicional e coletivo.
Importância do CAR
O Cadastro Ambiental Rural está previsto no Código Florestal Brasileiro (nº12651/12) e é a “identidade” do imóvel rural individual ou coletivo, contendo as informações ambientais, lista dos residentes e associações do território (no caso de territórios coletivos), perímetro georreferenciado da terra, entre outros dados. O CAR no modo coletivo para Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) contempla todos os territórios tradicionais coletivos, mesmo aqueles que não estão titulados ou demarcados.
O recebimento do CAR Coletivo para as comunidades quilombolas de Santarém e Prainha representa mais uma etapa na luta pelo reconhecimento e regularização dos territórios. Também traz possibilidades para as comunidades que, com o registro, agora podem acessar políticas públicas de crédito rural, benefícios, emissão de Darfs e guia de deslocamento de animais e até a aposentadoria rural.
Gabriele Gonçalves, assessora jurídica da Terra de Direitos que acompanha as comunidades quilombolas de Santarém, diz que o CAR PCT Coletivo fortalece as comunidades, sendo um importante documento de reconhecimento da presença dos quilombos na configuração territorial do Brasil. “É uma conquista que precisa ser celebrada. Por muito tempo as comunidades quilombolas não tinham acesso ao Cadastro ambiental rural, era mais utilizado pelos fazendeiros, que em inúmeros casos acompanhados estão sobrepostos as áreas dos quilombos, causando uma série de conflitos. Então as comunidades não tinham nem essa visibilidade no espaço territorial. Com o CAR Coletivo as comunidades saem da invisibilidade, passam a serem vistas no mapa que já traz as informações e demonstra que naquele espaço tem comunidades quilombolas, famílias quilombolas, morando naquela área”, pontua.
A assessora jurídica também destaca que o CAR que reconhece territórios coletivos é importante para povos e comunidades tradicionais, como os quilombolas, por fazer a diferenciação entre o que é um território individual – que pode ser total ou parcialmente negociado e vendido a terceiros – do território coletivo, tradicional, que é compartilhado, gestado e utilizado de forma comunitária por todos os quilombolas do local.
De acordo com informações da Semas, somando os Cadastros Ambientais Rurais das dez comunidades quilombolas, a área registrada totaliza aproximadamente 37 mil hectares de terras que fazem parte dos territórios de Pérola do Maicá, Maria Valentina, Murumurutuba, Patos do Ituqui, Bom Jardim, Murumuru, Tiningú, Arapemã e Saracura, localizados em Santarém, e o território de União São João, no município de Prainha.
Percurso das comunidades quilombolas para obtenção do Cadastro Ambiental Rural Coletivo
Após a solicitação da FOQS, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade fez a proposta de um plano de trabalho em que designou uma equipe de técnicos para realizar uma série de formações nas comunidades por meio do Programa Regulariza Pará. O Programa faz parte do Plano Estadual Amazônia Agora (PEAA), de iniciativa do Governo do Estado, que prevê a promoção da regularização fundiária e ambiental de imóveis e atividades rurais com o objetivo de reduzir o desmatamento e a perda da biodiversidade.
As visitas in loco nas comunidades pelos técnicos da Semas aconteceram ao longo de 2022 e tinham como objetivo informar os quilombolas de Santarém e Prainha sobre a importância do CAR Coletivo para os territórios. Estes processos foram acompanhados de perto pela FOQS, como conta o presidente da Federação, Mário Pantoja.
“Quando eles [técnicos da Semas] vieram aqui na FOQS e entramos no diálogo de elaboração do CAR foi muito proveitoso. Eu falei pra eles, nós vamos para dentro do território, esse processo precisar ser lá, as pessoas têm que verificar e vocês tem que fazer isso de uma forma pedagógica. E foi muito interessante a forma pedagógica que eles aplicaram.”, disse.
Após as reuniões informativas, as comunidades reuniram-se internamente para decidirem pelo aceite ou não da realização do registro do CAR Coletivo de cada território. Essa decisão foi tomada em assembleia nas comunidades, com ata de aprovação contendo a relação nominal dos integrantes do território e também a indicação de duas pessoas dos quilombos responsáveis por realizar o cadastro na plataforma SICAR/PA. Os escolhidos também passaram por uma formação para aprender a como acessar a plataforma. Todos estes processos foram feitos respeitando os modos organizativos e de gestão dos quilombolas de Santarém registrados no Protocolo de Consulta Quilombola lançado em 2016.
“Foi um processo que houve respeito às comunidades, foi feito de forma prévia, sem pressão e em uma linguagem muito acessível para que as comunidades soubessem de fato do que se tratava o CAR e seus benefícios”, apontou Gabriele Gonçalves que também acompanhou as agendas de formação em parceria com a FOQS.
Mirianne Coelho, da FOQS ressalta, para além do apoio da Semas, a importância do apoio de outras entidades que também acompanharam o processo de registro do CAR, como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), a Terra de Direitos e o Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Agora as próximas etapas são de análise e validação dos registros CARs das comunidades feitas pelo órgão público de meio ambiente do Pará. De maneira geral, as análises e validação dos Cadastros no Brasil possuem um déficit devido à falta de capacidade institucional, assim representando um próximo desafio para a efetivação completa da regularização ambiental dos territórios.
CAR Individual x CAR Coletivo
A efetivação de um Cadastro Ambiental Rural no módulo para Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) é um passo essencial para regularização ambiental e também fundiária dos territórios, mas chega tarde para as comunidades do Pará – cerca de 10 anos após a Lei do Código Florestal, em 2012.
Quando foi criado na Lei do Código Florestal Brasileiro, o CAR trouxe muitas dúvidas e inconsistências, pois sendo autodeclatório foi usado por fazendeiros e latifundiários para reivindicar a posse em áreas sobrepostas aos territórios coletivos, constituindo uma “grilagem de terra legalizada”.
Enquanto empresários possuem recursos financeiros para suporte no registro do CAR e “regularizam” áreas, os povos e comunidades tradicionais sofriam com a falta de conhecimento e de acesso à política. Muitas famílias que moram em territórios tradicionais coletivos eram incentivadas a fazer o Cadastro Ambiental Rural Individual para conseguir acessar as políticas públicas. E então, o que acontecia era um fatiamento do território em pequenas porções que, na realidade, não pode ser considerado individual por se tratar de áreas coletiva.
Apesar do CAR não ser um documento de regularização fundiária, ele é um dos instrumentos que podem trazer segurança jurídica para os territórios quilombolas. Nas regras do CAR PCT está estabelecido que o território tradicional possui prioridade diante de sobreposições com imóveis particulares por se tratar de um direito constitucional dos quilombolas.
Mirianne conta que com a inscrição dos novos CAR Coletivo dos territórios, alguns fazendeiros que possuíam terras dentro dos territórios tradicionais começaram a sair “inclusive em Maria Valentina já tem fazendeiros se desfazendo de área, já estão indo embora porque sabe que ali ele não vai mais poder fazer muita coisa se precisar de Cadastro Ambiental Rural”.
Em 2017, um fazendeiro que havia feito o CAR do seu imóvel dentro da área do território quilombola do Arapemã, em Santarém, teve o registro cancelado. Essa foi a primeira vez, no Brasil que a inscrição de um fazendeiro no CAR é cancelada por estar sobreposta a um território tradicional não titulada.
As perspectivas dos quilombolas de Santarém sobre a regularização ambiental e, consequentemente, da regularização fundiária dos territórios está alta, mas Mirianne também ressalta que é preciso fazer mais e garantir mais direitos aos povos quilombolas.
“O governo precisa, de fato, fazer com que esse Cadastro sirva de proteção aos povos tradicionais. Que ele não sirva de mecanismo para que grandes empresas façam grandes contratos de carbono, por exemplo. O Estado deveria pensar conosco em proteger esta área, que é uma área ambiental. Nós nem precisaríamos de CAR porque nós já fazemos a proteção do território, nos já deixamos a floresta em pé, mas infelizmente para garantir a política pública como o crédito, como ter uma declaração de que você é daquele lugar, é necessário ter o CAR. Nós ressaltamos a importância que o Estado possa, de fato, fazer política pública que nos protejam e que o CAR deveria ser mais uma ferramenta de proteção e não pra nos deixar ocioso e nas mãos de quem quer extrair o que nos protegemos”, finaliza.
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Imagem: Mãos quilombolas. Foto de João Zinclar