Ucrânia: Por que a guerra ‘não pode’ ter fim. Por Chris Hedges

EUA renovam seu arsenal, descartando o ultrapassado para Kiev. E usam a velha retórica de defesa da paz e da democracia para sabotá-las, emparedar a Rússia e enriquecer os “barões da guerra”. Indústria militar, não Putin, é a ameaça global

No ScheerPost / Outras Palavras

O manual que os cafetões da guerra usam para nos capturar em um fiasco militar após o outro – incluindo Vietnã, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e agora a Ucrânia – não muda. 

A liberdade e a democracia estão ameaçadas. O mal deve ser vencido. Os direitos humanos devem ser protegidos. O destino da Europa e da Otan, juntamente com uma “ordem internacional baseada em regras” está em jogo. A vitória está garantida.

Os resultados também são os mesmos. As justificativas e narrativas se revelam como mentiras. O ledo prognóstico é falso. Aqueles em nome de quem supostamente lutamos são tão venais quanto aqueles contra quem lutamos.

A invasão russa da Ucrânia foi um crime de guerra, embora provocado pela expansão da Otan e pelo apoio dos Estados Unidos ao golpe de “Maidan” em 2014, que resultou na expulsão e exílio do presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, eleito democraticamente.

Yanukovich desejava a integração econômica com a União Europeia, mas não à custa dos laços econômicos e políticos com a Rússia. A guerra só será resolvida por meio de negociações que permitam que a população de etnia russa na Ucrânia tenha autonomia e proteção de Moscou, e que garanta igualmente a neutralidade ucraniana, o que significa que o país não pode aderir à Otan.

Quanto mais essas negociações demorarem, mais os ucranianos sofrerão e morrerão. Suas cidades e infraestrutura continuarão a ser reduzidas a escombros.

Mas esta guerra por procuração na Ucrânia é projetada para servir aos interesses dos EUA. Enriquece os fabricantes de armas, enfraquece os militares russos e isola a Rússia da Europa. O que acontece com a Ucrânia é irrelevante.

“Primeiro, equipar nossos amigos na linha de frente para se defender é uma maneira muito mais barata – tanto em dólares quanto em vidas americanas – de degradar a capacidade da Rússia de ameaçar os Estados Unidos”, admitiu o líder republicano no Senado, Mitch McConnell.

“Em segundo lugar, a defesa efetiva de seu território pela Ucrânia está nos ensinando lições sobre como melhorar as defesas de parceiros que são ameaçados pela China. Não surpreende que altos funcionários de Taiwan apoiem tanto os esforços para ajudar a Ucrânia a derrotar a Rússia.
Em terceiro lugar, a maior parte do dinheiro destinado à assistência à segurança da Ucrânia não vai na verdade para a Ucrânia. É investido na indústria de defesa americana. Financia novas armas e munições para as forças armadas dos EUA para substituir o material antigo que fornecemos à Ucrânia.
Deixe-me ser claro: esta assistência significa mais empregos para os trabalhadores americanos e novas armas para os militares americanos”.

Uma vez que a verdade sobre essas guerras sem fim escoa para a consciência pública, a mídia, que servilmente vem promovendo esses conflitos, reduz drasticamente a cobertura. As débâcles militares, como no Iraque e no Afeganistão, são em grande medida retiradas de vista. No momento em que os EUA admitem a derrota, a maioria mal se lembra de que essas guerras estão sendo travadas.

Os cafetões da guerra, que orquestram esses fiascos militares, migram de administração em administração. Entre um cargo e outro, eles são abrigados em think tanks – Project for the New American Century, American Enterprise Institute, Foreign Policy Initiative, Institute for the Study of War, The Atlantic Council e The Brookings Institution –, financiados por corporações e pela indústria de guerra.

Assim que a guerra na Ucrânia chegar ao seu inevitável fim, esses Dr. Strangeloves [referência ao personagem do filme Doutor Fantástico, de Stanley Kubrick] tentarão atear fogo na guerra com a China. A Marinha e os militares dos EUA já estão ameaçando e cercando a China. Deus nos ajude se não conseguirmos impedi-los.

A retórica do velho manual

Esses cafetões de guerra enganam os americanos em um conflito após o outro com narrativas lisonjeiras que pintam os EUA como os salvadores do mundo.

Eles nem precisam inovar. A retórica é retirada do velho manual. Os estadunidenses, ingenuamente, mordem a isca e abraçam a bandeira – desta vez azul e amarela – e se tornam agentes involuntários de nossa autoimolação.

Deixou de importar – pelo menos para os cafetões da guerra – se é racional ou prudente entrar nessas guerras. A indústria da guerra avança como metástases nas entranhas do império estadunidense para esvaziá-lo por dentro. Os EUA são insultados no exterior, afogados em dívidas, têm uma classe trabalhadora empobrecida e carregam o fardo de uma infraestrutura decadente, assim como de serviços sociais de má qualidade.

Não eram os militares russos – por causa da debilidade moral, da fraqueza do generalato, das armas desatualizadas, das deserções, da falta de munição que supostamente teria forçado os soldados a lutar com pás e da severa escassez no abastecimento – que deveriam entrar em colapso meses antes?

O presidente russo, Vladimir Putin, não deveria ser removido do poder? As sanções não deveriam provocar o rublo a afundar em uma espiral de morte?

A expulsão do sistema bancário russo do SWIFT, o sistema internacional de transferência de dinheiro, não iria supostamente paralisar a economia russa? Como é possível que as taxas de inflação na Europa e nos Estados Unidos sejam mais altas do que a da Rússia, mesmo com todos esses ataques à economia russa?

Os quase US$ 150 bilhões em equipamentos militares sofisticados e assistência financeira e humanitária, anunciados pelos EUA, UE e 11 outros países, não deveriam supostamente virar a maré da guerra?

Como é que pode que talvez um terço dos tanques fornecidos pela Alemanha e EUA tenham sido rapidamente transformados, pelas minas, artilharia, armas antitanque, ataques aéreos e mísseis russos, em pedaços carbonizados de metal, já no início da alardeada contra-ofensiva?

Essa última contra-ofensiva ucraniana, originalmente conhecida como “ofensiva da primavera”, não deveria vazar as linhas de frente pesadamente fortificadas da Rússia e recuperar grandes extensões de território?

Como podemos explicar as dezenas de milhares de baixas militares ucranianas e o recrutamento militar forçado na Ucrânia? Mesmo nossos generais aposentados e ex-funcionários da CIA, FBI, NSA e Segurança Doméstica, que atuam como analistas em redes como CNN e MSNBC, não conseguem afirmar que a ofensiva tenha sido bem-sucedida.

Protegendo a “democracia”

E a democracia ucraniana que lutamos para proteger?

Por que o Parlamento ucraniano revogou o uso oficial de línguas minoritárias, incluindo o russo, três dias após o golpe de 2014? Como dar uma explicação racional aos oito anos de guerra contra os de etnia russa na região de Donbass antes da invasão russa em fevereiro de 2022?

Como explicamos a morte de mais de 14.200 pessoas e os 1,5 milhões de desabrigados, antes da invasão russa, no ano passado?

Como vamos defender a decisão do presidente Volodymyr Zelensky de banir 11 partidos de oposição, incluindo a Plataforma de Oposição para a Vida, que tinha 10% dos assentos no Conselho Supremo, parlamento unicameral da Ucrânia, juntamente com os partidos Shariy, Nashi, Bloco de Oposição, Oposição de Esquerda, União das Forças de Esquerda, Estado, Partido Socialista Progressista da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, Partido Socialista e Bloco Volodymyr Saldo?

Como podemos aceitar a proibição desses partidos de oposição – muitos dos quais de esquerda –, se ao mesmo tempo Zelensky permite aos fascistas dos partidos Svoboda e Setor Direito, bem como os banderistas do Batalhão Azov e de outras milícias extremistas, florescer?

Como vamos lidar com os expurgos anti-russos e prisões de supostos “quinta colunistas” que varrem a Ucrânia, considerando que 30% dos habitantes da Ucrânia são falantes de russo?

Como responder aos grupos neonazistas, apoiados pelo governo de Zelensky, que perseguem e atacam a comunidade LGBT, a população cigana e os protestos antifascistas, e também ameaçam vereadores, meios de comunicação, artistas e estudantes estrangeiros?

Como vamos encarar a decisão pelos EUA e seus aliados ocidentais  de bloquear as negociações com a Rússia para acabar com a guerra, quando Kiev e Moscou aparentemente estavam prestes a negociar um tratado de paz?

Fiz uma reportagem sobre a Europa Central e Oriental em 1989, durante a dissolução da União Soviética. A Otan, presumíamos, havia se tornado obsoleta.

O presidente Mikhail Gorbachev propôs acordos econômicos e de segurança com Washington e a Europa. O secretário de Estado James Baker, no governo de Ronald Reagan, juntamente com o ministro das Relações Exteriores da Alemanha Ocidental, Hans-Dietrich Genscher, asseguraram a Gorbachev que a Otan não seria estendida para além das fronteiras da Alemanha unificada.

Ingenuamente, pensamos que o fim da Guerra Fria significava que a Rússia, a Europa e os EUA não precisariam mais desviar recursos maciços para suas forças armadas.

O chamado “dividendo da paz”, no entanto, era uma quimera.

Mesmo se a Rússia não quisesse ser o inimigo, ela seria forçada a se tornar o inimigo. Os cafetões da guerra recrutaram ex-repúblicas soviéticas para a Otan, pintando a Rússia como uma ameaça.

Os países que aderiram à Otan – que agora incluem a Polônia, Hungria, República Checa, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte – reconfiguraram as suas forças armadas, muitas vezes através de dezenas de milhões em empréstimos do Ocidente, para torná-las compatíveis com o equipamento militar da Otan. Isso gerou bilhões em lucros para os fabricantes de armas.

Em toda a Europa Oriental e a Central, ficou entendido que, após o colapso da União Soviética, a expansão da Otan era desnecessária e uma provocação perigosa. Não fazia sentido geopolítico. Mas fazia sentido comercial. A guerra é um negócio.

Em um telegrama diplomático sigiloso – obtido e divulgado pelo WikiLeaks –, datado de 1º de fevereiro de 2008, escrito de Moscou e endereçado para o Estado-Maior Conjunto, a Cooperação OTAN-União Europeia, o Conselho de Segurança Nacional, o Coletivo Político Rússia Moscou, o secretário de Defesa e secretário de Estado, havia um entendimento inequívoco de que a expansão da Otan acarretava o risco de conflito com a Rússia, especialmente se envolvesse a Ucrânia.

“A Rússia não apenas percebe o cerco [pela OTAN] e os esforços para minar a influência da Rússia na região, mas também teme consequências imprevisíveis e descontroladas que afetariam seriamente os seus interesses de segurança”, diz o telegrama.

“Os especialistas nos dizem que a Rússia está particularmente preocupada que as fortes divisões na Ucrânia sobre a adesão à Otan, com grande parte da comunidade étnica russa contra a adesão, possam levar a uma grande divisão, envolvendo violência ou, na pior das hipóteses, guerra civil. Nessa eventualidade, a Rússia teria que decidir se iria intervir; uma decisão que a Rússia não quer ter que enfrentar…”

“Dmitri Trenin, vice-diretor do Carnegie Moscow Center, expressou preocupação de que a Ucrânia seja, a longo prazo, o fator potencialmente mais desestabilizador nas relações EUA-Rússia, dado o nível de emoção e neurose desencadeado por sua busca pela adesão à Otan…”, diz o telegrama.

“Como a adesão permanece dividindo a política interna ucraniana, criou-se abertura para a intervenção russa. Trenin expressou preocupação de que elementos dentro do establishment russo seriam encorajados a se intrometer, estimulando o incentivo aberto dos EUA a forças políticas opostas e deixando os EUA e a Rússia em uma postura clássica de confronto”.

A invasão russa da Ucrânia não teria acontecido se a aliança ocidental tivesse honrado suas promessas de não expandir a Otan além das fronteiras da Alemanha e a Ucrânia tivesse permanecido neutra.

Os cafetões da guerra conheciam as consequências potenciais da expansão da Otan. A guerra, no entanto, é sua única vocação, mesmo que leve a um holocausto nuclear com a Rússia ou a China.

A indústria da guerra – e não Putin – é o nosso mais perigoso inimigo.

Imagem: Mr. Fish / Consortiumnews / Outras Palavras

 

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