A “gel política” e “as armas do crânio”. Por Marilia Amorim

O processo de “desalfabetização” dos leitores que é promovido pela informatização

Em A Terra é Redonda

Gostaria de evocar aqui o processo de “desalfabetização” dos leitores que é promovido pela informatização de algumas mídias. Diante do que leio nelas, chego a hesitar em relação a algumas regras básicas da língua portuguesa. Não leva preposição? Não falta o sujeito do verbo? Não tem um erro de concordância? Estou em franco processo de “desalfabetização”. Bem informada, mas ignorante. Como leio assiduamente sites de notícias e assisto a vídeos que pessoas bem informadas me enviam, já faço parte da legião de analfabetos informáticos.

Como andarão os jovens nessa história? Ao conviver diuturnamente com barbaridades linguísticas em textos de circulação pública, seu processo de consolidação das regras que caracterizam o idioma pode não se instalar completamente. E caso se instale, pode facilmente se desinstalar, como mostra meu exemplo pessoal. Sobretudo pelo fato de que a esfera de circulação, por ser pública, valida e normatiza a escrita que ali se apresenta.

Vejamos alguns exemplos a começar pela mídia que, segundo dizem, é a mais utilizada por jovens e adolescentes. Quando recebo um vídeo por Whatsapp com temas de meu interesse, não consigo evitar a leitura das legendas. Supostamente, as legendas transcrevem a fala e isso certamente é muito útil para aqueles que, por uma razão ou por outra, não entendem ou não ouvem bem o que está a ser dito.

Por ocasião da visita do presidente Lula à China, recebi um vídeo Tik Tok com a entrevista do presidente a um jornalista chinês. Foi ali que encontrei na legenda as duas pérolas do meu título: “a gel política” e “as armas do crânio”. Há poucos dias, recebi outro vídeo, dessa vez sobre a inocência do reitor Cancellier comprovada pelo TCU. Para o nome do reitor, tivemos as seguintes variações de legenda: cancele, canceler e canceleida (este último quando se falava Cancellier da Universidade de Santa Catarina). Para o TCU, tivemos técio e teceu. A delegada virou Érica Marina. Mas bom mesmo foi ler Deltanda Lanhol.

Não se trata, porém de jabuticaba brasileira. Outro dia, numa conferência do Pepe Mujica no Uruguai, para alunos e professores universitários sobre a América Latina, vi que a menção do conferencista ao personagem Martin Fierro produziu algo relacionado a infierno. Também o verbo rogar transformou-se em robar.

Como não sou especialista na matéria, não tenho a menor ideia das causas do curioso fenômeno e trago aqui as indagações de uma simples leitora. Costumo formular duas hipóteses, uma triste e outra engraçada. A hipótese triste vem quando imagino que, por trás das legendas surreais, estaria um profissional terceirizado que não tem nenhuma familiaridade com o assunto que transcreve, não recebe nenhuma formação digna desse nome e seu salário segue os padrões aviltantes da uberização.

A hipótese engraçada é a que prefiro: a burrice dos algoritmos. Imagino então que seja um programa informático que decodifica unicamente pelo som da fala sem processar as dimensões de sentido do que é dito. Essa hipótese é da família daquela que me ocorre quando escrevo nos teclados do celular, seja para uma mensagem de e-mail, de whatsapp, etc. Basta que utilizemos uma sintaxe ligeiramente mais elaborada ou uma palavra menos frequente para os padrões dos usuários assíduos da tecnologia em questão, para que a mensagem seja imediatamente “corrigida” e, se não ficarmos atentos e não agirmos a tempo de “descorrigir”, lá se vai nossa mensagem com os mais insuspeitados despautérios.

O teclado algorítmico parece preferir a escrita por emoticones. Afetos, coisas difíceis de exprimir com palavras, dispõem agora dos mais variados símbolos para simplificar nossa tarefa. Acabou-se o caráter singular que se marca na forma de dizer, com sintaxe e léxico próprios daquele que escreve e que supõe, do outro lado, uma sensibilidade também singular daquele para quem se escreve. Os emoticones são de uso rápido e certeiro. Libertam-nos da escrita exigente que demanda tempo e reflexão. Certamente haverá a objeção de que são lúdicos. Sem dúvida, com eles, a escrita via internet torna-se um joguinho infantilizante análogo às cartas enigmáticas. Para quem não lembra ou desconhece, vai o convite para decifrar os “emoticones” abaixo:

Não se trata de negar a importância dos avanços tecnológicos e a perfeição que alcançam. No campo da escrita, incontáveis programas algorítmicos são admiráveis em sua sofisticação. Nem todos, porém, dispensam o trabalho de revisão por parte de um sujeito humano de carne e osso. Pensemos, por exemplo, nos programas de tradução automática de idiomas que hoje apresentam uma qualidade excepcional.

A competência desses programas é de deixar os tradutores profissionais com insônia definitiva. Entretanto, é preciso ter cuidado para não publicar de modo imediato e apressado o texto traduzido. Especialmente no caso de textos reflexivos que empregam conceitos específicos – filosóficos, linguísticos etc. Eles merecem especial atenção para que não ocorram barbaridades do tipo Tik Tok. Digo isso por experiência própria já que muitas vezes recorro a essa ferramenta quando leio ou quando escrevo um determinado texto.

Das diferentes mídias que recebem tratamento informatizado, uma delas me preocupa sobremaneira: os sites de notícias. Em alguns deles, parece que a rapidez se tornou a lei magna que rege o trabalho dos profissionais. É preciso publicar rapidamente porque a concorrência entre sites é grande. Para dar o furo, aos diabos com a gramática! Certamente uma segunda lei vigora aí: restrições de custo. Imagino que as equipes são reduzidas ao seu mínimo operacional por falta de recursos para pagar profissionais. A terceira lei parece ser a do limite de espaço. Os títulos e as chamadas espremem-se ali onde dá. Assim, lemos estapafúrdios múltiplos ocasionados por problemas como palavras que faltam, ausência de sujeito ou de verbo, confusão de complementos e uma verdadeira guerra às preposições.

A simples falta de palavras pode resultar em frases que não são frases. Por exemplo, leio no meu site de notícias preferido os trechos abaixo que marquei com itálico:

Tiroteio em Paris: agitação irrompe pela segunda noite após polícia matar adolescente
28 de junho de 2023, 20:12 h

PARIS, (Reuters) – Manifestantes dispararam fogos de artifício contra a polícia e incendiaram carros no subúrbio da classe trabalhadora parisiense de Nanterre, horas depois que o presidente Emmanuel Macron lamentou na quarta-feira o tiro fatal “imperdoável” de um menino de 17 anos durante uma tráfego parar lá.

Para quem conhece antecipadamente a história, é fácil deduzir que o texto quis dizer que o tiro foi dado quando a polícia de tráfego tentou parar o menino.

Outro exemplo:

Analista geopolítico indiano prevê “obstáculos intransponíveis” para os EUA
3 de julho de 2023, 15:37 h

Segundo S.L. Kanthan, “dólar americano será apenas uma entre muitas moedas e vassalos abandonar silenciosamente sua lealdade.”

Releio várias vezes para me certificar que não é erro meu de leitura. Só que o mesmo fragmento esdrúxulo da chamada do artigo reaparece no corpo do texto. Novamente, é preciso estar a par do assunto para entender que os vassalos dos EUA irão abandonar silenciosamente sua lealdade ao dólar.

A frequência com que ocorre me diz que o fenômeno já se naturalizou e que ninguém o considera problemático. Se “deu pra entender”, é o que importa.

Como o leitor já deve ter percebido, sou de outro tempo. Daquele em que os professores mandavam ler jornal para que o aluno aprendesse a escrever com o texto do jornalista. Havia também uma equipe zelosa de revisores que não permitiam que um texto saísse com um mínimo erro que fosse. Antes da Internet, as crianças e os jovens eram formados na leitura de jornais porque estes eram uma referência da escrita impecável. Os jornalistas, aliás, orgulhavam-se de seus textos e alguns se tornaram famosos por seus estilos. Agora, a escola está condenada a uma missão impossível. Afinal, não há professor que consiga lutar contra a difusão em massa de erros do português escrito em veículos de informação e de comunicação.

Pelo visto, combinou-se que a língua portuguesa escrita não precisa mais obedecer a nenhuma regra e eu não fui avisada. Em tempos de Inteligência artificial, é bem provável que minhas considerações sejam irrelevantes. Do mesmo modo que a criançada não precisa mais aprender a fazer cálculos porque já existem maquinetas para realizar esse trabalho enfadonho, talvez não se precise mais aprender a ler e a escrever. O que quer dizer que talvez não se precise mais aprender a pensar de modo rigoroso.

A propósito, é o próprio Yoshua Bengio, detentor do prêmio Turing de 2019, fundador e diretor do Instituto de inteligência artificial de Montreal que exprime sua preocupação na matéria. Diante do risco de que máquinas criadas por nós se tornem mais inteligentes do que os seres humanos, diz ele: “Não sei se isso vai acontecer. Mas se for esse o caso, poderemos falar de ameaça existencial. Imaginem uma nova espécie tão inteligente que ela nos olhe da mesma maneira como hoje olhamos as pererecas. Será que tratamos as pererecas corretamente?”[i]

Moral do conto: é possível que, em breve, não possamos mais rir da burrice dos algoritmos. Teremos então textos de exatidão impecável e a língua portuguesa escrita estará salva. Será? Será que não vai faltar algo da carne e do osso dos humanos? Em todo caso, pareço ter chegado aqui a um paradoxo das minhas breves reflexões em que terei que “optar entre o inseto e o inseticida”.[ii] Ou talvez o paradoxo seja mesmo do mundo em que vivemos que faz com que a tecnologia se torne cada vez mais inteligente e o ser humano cada vez menos…

*Marilia Amorim é professora aposentada do Instituto de Psicologia da UFRJ e da Universidade de Paris VIII. Autora, entre outros livros, de Petit traité de la bêtise contemporaine (Érès de Toulouse).

Notas

[i] Do jornal Le Monde de 02 de junho de 2023 onde se aprende que Montreal é considerada atualmente a Silicon Valley da Inteligência Artificial. O trecho foi traduzido por mim do original francês: On ne sait pas si ça va arriver. Mais si c’est le cas, on pourra parler de menace existentielle. Imaginez une nouvelle espèce tellement intelligente qu’elle nous regarde comme nous regardons aujourd’hui les grenouilles… Est-ce que nous traitons les grenouilles correctement? Devo confessar que cometi uma “licença poética” ao traduzir. O autor fala de rãs (grenouilles), mas julguei que as pererecas confeririam um caráter mais risível à nossa condição futura.

https://www.lemonde.fr/international/article/2023/06/02/a-montreal-l-un-des-peres-de-l-intelligence-artificielle-alerte-sur-une-menace-existentielle-pour-l-homme_6175814_3210.html

[ii] Caetano Veloso, canção Eclipse oculto do LP “Uns” da Polygram, 1983.

Comments (1)

  1. É verdade. Jornalista aposentada, muitas vezes tenho vergonha de postar meus textos no Facebook, por destoarem tanto da escrita “atual”.

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