Quando a utopia parecia estar ali na esquina

Mesmo sem estratégia, Junho de 2013 mostrou que parte das esquerdas precisavam sair da pequena política e de gabinetes – e lutar como quem sonha. E, para aqueles que, brutalizados, e dormem pouco e mal, todo lampejo de sonho vale a pena

por Rodrigo Castelo, em Outras Palavras

O título O gigante acordou? A quebrada nunca dormiu: impressões sobre Junho 2013 foi uma proposta da equipe do Sesc Campo Limpo prontamente acolhida pela curadoria do evento, formada por Fernanda Almeida e por mim. É um título muito sugestivo e me levantou uma questão para ser o fio condutor desse bate-papo com o público aqui presente.

Dado que o encontro começou com ricas apresentações culturais (música, cinema, teatro), vamos falar um pouco de música, misturando rock e rap. Isso já deu certo com bandas como Run DMC, Aerosmith, Rage Against the Machine, Planet Hemp. Talvez dê certo aqui. Uma banda de rock do Canadá, Rush, compôs uma música chamada Working man, que retrata a rotina cansativa da classe trabalhadora no seu país natal, um país capitalista rico e da América do Norte. A música diz o seguinte:

Eu me levanto às sete, sim
E vou para o trabalho às nove
Não tenho tempo para viver
Sim, estou trabalhando o tempo todo
Eu chego em casa às cinco em ponto
E eu pego pra mim uma boa cerveja gelada
Sempre fico a imaginar
Por que não há nada acontecendo aqui

Nessa letra, podemos ver que os processos produtivos, no capitalismo central, exploram a classe trabalhadora e produzem alienação, desesperança e apatia; em suma, o trampo produz a miséria espiritual de trabalhadoras e trabalhadores, apesar da existência de um Estado geral de bem-estar material (lembrando que as classes dominantes canadenses promoveram o genocídio dos povos originários da região).

Mas nessa representação musical da realidade do mundo do trabalho, algo salta aos olhos para nós que vivemos nas grandes cidades do Brasil: acordar às sete da manhã, começar a jornada às 9h e estar em casa de volta às 17h? Em um país do capitalismo dependente e periférico como o nosso, esta não é a realidade de grande parte da classe trabalhadora, ainda mais se considerarmos o gênero feminino, a questão racial e os territórios periféricos (dentre outros fatores de exploração e opressão). Aqui, o buraco é muito mais embaixo!

Assim, para conhecermos melhor a realidade brutal do trabalho no Brasil, na qual impera a superexploração das trabalhadoras e trabalhadores, podemos citar um outro músico brilhante: Emicida. Na música A ordem natural das coisas, do disco AmarElo, o rapper paulistano canta o seguinte:

A merendeira desce, o ônibus sai
Dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce
(…)
E o sol só vem depois
O sol só vem depois
É o astro rei, okay, mas vem depois
O sol só vem depois

Fiquemos com Emicida e a realidade brasileira: superexploração, espoliação, busão lotado, cidades desiguais, racismo estrutural, patriarcardo/machismo, lgbtqia+fobia, violência policial, etc. Estes são elementos estruturais, dentre tantos outros, que compõem a vida material e espiritual da classe trabalhadora brasileira. E, ainda assim, com todas estas dificuldades que nos parecem intransponíveis, esta classe, dormindo pouco, ou quase nada, sonha e luta por uma vida melhor. Como dizem os Titãs, o pulso ainda pulsa!

Há dez anos atrás, no longínquo ano de 2013, a classe trabalhadora se movimentava e lutava por uma vida melhor, que fosse além de conquistas parciais alcançadas ao longo dos governos democrático-populares. No auge do ciclo de desenvolvimento capitalista, com a crise mundial batendo na nossa porta, a classe trabalhadora demandava legitimamente novas conquistas. Naquele ano, o número de greves trabalhistas foi um recorde na história do movimento sindical. E outras lutas também manifestavam o seu vigor, a sua potência, como o movimento negro, feminista e indígena. Ora, era preciso avançar nas demandas, pois, na política, o que não avança, regride.

Em Junho de 2013, ousamos sonhar juntes nas ruas uma nova realidade. Lutamos por uma vida sem catracas, pela desmilitarização das polícias, por direitos sociais e políticas públicas de qualidade que atendessem os interesses históricos do povo brasileiro.

Nesse mesmo processo de rebelião popular e convulsão social, os donos do Brasil se movimentaram e passaram a disputar as ruas e pautas, sempre escudadas por amplos setores conservadores e reacionários da classe média (os coxinha com camisa canarinho) e tropas militares de choque. Abria-se uma disputa frontal na sociedade brasileira, com dois lados brigando pela condução dos rumos do país. Após uma intensa disputa, um dos lados venceu. Mas o outro também brigou. Aqui cabe um alerta: as Jornadas de Junho não foram o ovo da serpente do fascismo no Brasil. Não devemos nunca assumir que lutas legítimas da classe trabalhador fortaleçam a direita e sejam a antessala do fascismo. Esta é uma leitura conservadora – talvez até mesmo reacionária – da dinâmica das lutas de classes que devemos renegar e combater.

Bem, estava aberto um período de profunda crise econômica, política e social no Brasil, no qual ainda estamos enredados e nos traz múltiplas possibilidades históricas. Numa crise orgânica como essa que vivenciamos hoje, os rumos do país não estão pré-determinados e podemos criar alternativas reais e concretas para uma vida melhor, mais saudável, igualitária, libertária e emancipatória. É possível sonhar, mesmo dormindo pouco, e mal.

Não se supera uma crise de tal magnitude com vitórias eleitorais, por mais importantes e emocionantes que elas sejam. Devemos comemorar (criticamente) a vitória de Lula e a inelegibilidade de Bolsonaro, mas sabendo que temos que derrotar Bolsonaro, o bolsonarismo, o neofascismo, o neoliberalismo e o capitalismo. São tarefas históricas que vão além da dinâmica eleitoral. Assim, precisamos reconhecer os limites da política institucional, sem nunca abandoná-la. Precisamos de uma organização autônoma e consciência de classe, precisamos lutar como quem sonha, como disse Boulos, um vizinho aqui da Zona Sul, no final da sua linda campanha em 2020. Em suma, precisamos sonhar, de olhos abertos, o poder popular!

Para a classe trabalhadora, que dorme pouco, e mal, é preciso aproveitar cada minuto de sono, cada lampejo do sonho. Como diz Raul Seixas, na música Prelúdio, “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade.” Complementando o roqueiro baiano, sonho que deseja virar utopia, que sonha virar realidade, precisa de uma estratégia, estratégia político-cultural que una classe, raça, gênero, etnia, diversidade sexual, territórios, corpos e desejos.

Nas Jornadas de Junho, sonhamos juntes uma utopia, mas esta esteve longe de se tornar realidade. Não tínhamos uma estratégia. Ficamos atordoados no meio do processo. Grande parte da esquerda estava presa no pântano da pequena política, dos gabinetes institucionais. E, para nossa desgraça, a esquerda revolucionária não soube transformar os desejos de mudanças demandados pela classe trabalhadora e pela juventude em um projeto político antissistêmico. Junho de 2013 não era uma situação revolucionária, mas perdemos uma oportunidade histórica sem tamanho de avançarmos consistentemente nas lutas da classe trabalhadora.

Passados 10 anos de Junho de 2013, é hora de fazermos o balanço crítico e autocrítico das Jornadas e resgatarmos as potencialidades ali inscritas, pulsantes nas manifestações, atos e barricadas. A história não se repete, a não ser como farsa, e não teremos mais nenhum Junho de 2013. Não adianta sonhar nostalgicamente com isso. O que passou, passou. Mas podemos tirar lições da história para não cometermos os mesmos erros. Foi isso o que pretendemos com esse belo evento no Sesc Campo Limpo.

Obrigado!

No dia 1º de julho de 2023, aconteceu o Encontro O gigante acordou? A quebrada nunca dormiu: impressões sobre Junho 2013 na unidade Sesc Campo Limpo. O encontro foi precedido de diversas atividades culturais, tais como peça de teatro, fanfarra e mostra de curtas-metragens.

As Jornadas de Junho de 2013 tornaram-se marcantes na história recente brasileira. Movimento deflagrado a partir das mobilizações e protestos contra o aumento das tarifas de ônibus na cidade de São Paulo, em poucos dias, um conjunto de reivindicações ganhou expressão. A mobilidade urbana, mote inicial, foi somente o estopim que fez emergir um cenário político inédito na história do país. As manifestações de massa foram deflagradas em muitas cidades – com maior expressividade nas grandes capitais –, revelando que a aparente estabilidade social não correspondia às lutas sociais que vinham sendo travadas e ao descontentamento latente em diversas classes e grupos sociais. A insatisfação popular e de setores progressistas da classe média tomou conta das ruas e fez brotar a “sensação” de que nada mais seria como antes.

Passada uma década das grandes mobilizações, as Jornadas de Junho ainda suscitam diversas reflexões divergentes, longe de um consenso. Analistas e militantes ainda se desdobram para compreender as múltiplas camadas daquele momento histórico, suas consequências e os rebatimentos nos acontecimentos desta última década. Se as manifestações tiveram início na região central das cidades, a insatisfação decorrente das precárias condições de vida nas periferias já era vivida e denunciada. O sentido ambivalente das manifestações de Junho de 2013 também é expresso no complexo contexto das relações centro x periferia.

O objetivo do Encontro foi, portanto, discutir o legado das Jornadas de Junho e levantar elementos para um balanço histórico-crítico dos seus 10 anos de existência. Com uma curadoria coletiva assinada por Fernanda Almeida, Rodrigo Castelo e a equipe do Sesc Campo Limpo, o Encontro promoveu duas mesas de debate. A primeira foi intitulada 10 anos das Jornadas de Junho: balanço histórico e perspectivas políticas e contou com a presença de Mariana Fix (USP), Paula Nunes (deputada estadual em São Paulo – Psol) e Rodrigo Castelo (Unirio). A segunda mesa, Direito à cidade e resistências populares nas periferias, teve Caio Castor (Agência Pavio), Jaiane Batista (Café Filosófico da Periferia) e Stella Paterniani (Unesp) como palestrantes. Ambas as mesas tiveram a mediação de Daniel Fagundes (Caramuja Pesquisa, Memória e Audiovisual). Segue na íntegra a fala do professor Rodrigo Castelo.

*Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), editor da revista Germinal: marxismo e educação em debate (UFBA) e autor dos livros O social-liberalismo (Expressão Popular, 2012) e Tragédia, farsa e crise (Lutas Anticapital, 2022).

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