Lideranças da Rede Xingu+ forneceram subsídios aos órgãos responsáveis para adequar o projeto às novas diretrizes de política pública do governo federal
Por John Raze, Luísa Molina e Mariel Nakane, em ISA – Instituto Socioambiental
Quase passou batido nas notícias sobre o julgamento da ação que questiona a desafetação, pelo governo de Michel Temer (2016-2018), de parte do Parque Nacional (PARNA) do Jamanxim, em Novo Progresso (PA), para a construção da EF-170 (ou “Ferrogrão”), um aspecto importante da decisão proferida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, relator do caso.
Trata-se da determinação de que qualquer execução ligada aos processos administrativos da ferrovia deve ser previamente autorizada pelo STF.
Proferida em 31 de maio, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.553, com a decisão, o STF chamou para si a responsabilidade de avaliar o cumprimento das condicionantes legais desses processos — em especial as socioambientais.
Diversas questões foram levantadas por especialistas e lideranças indígenas. Como essa avaliação aconteceria? Quais são as condições necessárias para que um projeto dessa complexidade possa seguir, considerando que se trata de uma ferrovia de 933 km de extensão, que impacta 16 Terras Indígenas e mais de uma dezena de áreas protegidas? E de que maneiras será levado em conta o papel central do Brasil nos esforços globais de resposta à emergência climática?
Para contribuir com essas questões, povos indígenas e tradicionais da Bacia do Xingu, articulados na Rede Xingu+, apresentaram aos órgãos responsáveis pelo projeto uma análise da necessidade de revisão do projeto de concessão da Ferrogrão, que os afeta diretamente e que vai de encontro ao compromisso do país para zerar o desmatamento na Amazônia até 2030.
Baixe o documento
O documento, entregue à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), ao Ministério dos Transportes (MT), ao Tribunal de Contas da União (TCU), à Advocacia-Geral da União (AGU) e ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), parte dos estudos da ferrovia entregues ao Tribunal de Contas da União em 2021, para contribuir com a adequação da concessão às novas diretrizes da política pública do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), e às premissas de participação social e visão territorial estabelecidas no “Plano Plurianual 2024-2027”, em elaboração.
O intuito da Rede Xingu+ é, portanto, oferecer subsídios técnicos para atender à determinação do ministro Alexandre de Moraes para que sejam atendidas as condicionantes socioambientais em tomadas de decisão relativas à Ferrogrão.
Isso porque, ao tratar da matéria em 31 de maio, o ministro permitiu a retomada dos estudos e dos processos administrativos para concessão da ferrovia, paralisados por ele mesmo em março de 2021.
Naquele momento, Moraes atendeu a um pedido de liminar do PSOL para sobrestar a análise do projeto da ferrovia, e suspendeu os efeitos da Medida Provisória (MP) convertida na lei nº 13.452/2017 utilizada para desafetar – isto é, reduzir o status de proteção – uma porção do parque nacional.
Em sua decisão mais recente, o relator manteve a suspensão dos efeitos da lei nº 13.452/2017, entendendo que os efeitos da redução de limites do parque para a construção da Ferrogrão podem ser irreversíveis. Mas desvinculou da suspensão o andamento dos estudos e dos processos.
O contrapeso colocado pelo ministro, nesse ponto, é justamente a exigência de autorização prévia do STF para a execução de qualquer medida relativa à concessão da Ferrogrão — daí a importância de avaliar as condicionantes do projeto, originalmente propostas nos estudos técnicos de 2020, e sua capacidade de responder às demandas atuais do país.
A proposta da Rede Xingu+
Com o título “Condicionantes socioambientais necessárias à continuidade dos processos administrativos relacionados à Ferrogrão (EF-170)”, a peça técnica apresentada pela Rede Xingu+ aponta, de partida, para a necessidade de atualizar os estudos da Ferrogrão que dão base a processos em tramitação na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), no Ministério dos Transportes e no TCU, considerando a defasagem de três anos desde que foram aprovados e apresentados ao TCU.
Há dois principais focos desse esforço de revisão sob responsabilidade do Ministério dos Transportes e da ANTT: os Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) e o “Caderno de Avaliação Socioeconômica”.
Entre os pontos que dizem respeito ao EVTEA, destaca-se o cálculo do desmatamento potencial induzido pela ferrovia e de impactos sinérgicos e cumulativos com outros empreendimentos, como as Estações de Transbordo de Carga em Miritituba e rodovias estaduais.
Já com relação ao “Caderno de Avaliação Socioeconômica”, a Rede Xingu + indica que a análise distributiva de benefícios e custos entre partes interessadas precisa ser considerada, conforme recomendações do Guia ACB do Ministério da Economia.
A Rede também argumenta a necessidade de o governo, entre as condicionantes para continuidade dos processos da Ferrogrão, priorizar a execução das ações do “Eixo III- Ordenamento fundiário e territorial” do PPCDam 5ª fase na área de influência do Corredor Logístico. Para isso, destrincha os objetivos nº 9, 10 e 11 do plano, que dão especial atenção às porções da Amazônia com as maiores taxas de desmatamento.
Há, ainda, um terceiro eixo das condicionantes, que trata da participação social e do engajamento significativo das comunidades potencialmente afetadas e desapropriadas pelo projeto da Ferrogrão. No caso dos indígenas e de comunidades tradicionais, o mecanismo para viabilizar a participação em processos decisórios é a Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado (CCLPI).
Entenda como funciona o direito à Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado:
O princípio foi ignorado ao longo da realização de várias etapas do ciclo de investimento, mostra a Rede, destacando o descumprimento, por parte da ANTT, do compromisso que ela mesma firmou com os Kayapó Mekrãgnoti, em relação à CCLPI.
Em um documento de 2017, a autarquia prometeu não encaminhar o processo da Ferrogrão para o TCU antes de consultar os indígenas, reconhecendo a proeminência do direito à CCLPI. No entanto, encerrou o processo de participação e controle social três anos depois, sem ouvir as comunidades.
Acesse o Protocolo de Consulta dos Povos do Território Indígena do Xingu
Para fazer valer o acordo de 2017, a Rede Xingu+ argumenta que, uma vez revistos os estudos da Ferrogrão, o Ministério dos Transportes deve executar um Plano de Consulta que submeta o EVTEA atualizado aos povos das 16 Terras Indígenas impactadas pelo projeto.
A CCLPI deve observar o que regem os protocolos de consulta de cada território, diz a Rede. Também, que as contribuições que resultarem do processo de consulta devem subsidiar a decisão do Ministério dos Transportes e da ANTT quanto à viabilidade do empreendimento.
Só depois de cumprida essa etapa, o processo deve ser encaminhado ao TCU para avaliação — e, tanto no tribunal, como nas próximas fases do ciclo de investimento, a CCLPI deve ser realizada.
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Mydjere Kayapó, liderança do Xingu, apresentou a autoridades em Brasília uma análise da necessidade de revisão do projeto de concessão da Ferrogrão 📷 Mídia Ninja