Vida e batalhas de Joenia Wapichana

A presidente da Funai foi a primeira advogada indígena a defender, no STF, a demarcação de terras no emblemático caso da Raposa Serra do Sol. Ela denuncia os retrocessos do marco temporal e aponta as outras ameaças que o projeto tenta esconder

por Lucas Scatolini, na Piauí

Em 27 de agosto de 2008, pela primeira vez uma advogada indígena fazia uma sustentação no Supremo Tribunal Federal. De brincos de penas e rosto pintado de urucum, Joenia Wapichana defendeu o direito dos povos Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, uma área de 1,7 milhão de hectares em Roraima cuja demarcação estava sendo contestada por fazendeiros. A causa defendida por Joenia foi vencedora, e o STF determinou a saída imediata dos não indígenas que ocupavam a região. Quinze anos depois do julgamento, Joenia, aos 49 anos, tornou-se presidente da Funai. No comando da instituição, alerta para a ameaça do projeto de lei sobre o marco temporal em tramitação no Congresso, que prevê que uma terra só pode ser demarcada se já fosse ocupada por indígenas na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. “O PL é inconstitucional e ameaça os direitos dos povos indígenas”, afirma.

Em depoimento a Lia Hama

Faço parte do povo indígena Wapichana da comunidade Truaru da Cabeceira, na zona rural do município de Boa Vista, capital de Roraima. Meus pais tiveram oito filhos, sendo eu a caçula. Minha mãe quis ver os filhos na escola, e essa foi uma das razões da mudança para a capital. Meu pai, que é originário de outra comunidade indígena chamada Guariba, no município de Amajari (RR), nunca gostou da ideia de morar na cidade e, por isso, permaneceu na comunidade. Cresci entre esses dois mundos: o indígena e o não indígena.

Eu era uma das poucas indígenas na escola em Boa Vista. Não tenho como esconder a minha identidade: está no meu jeito de ser, na minha aparência, nos meus valores e na minha família. Às vezes era chamada de “caboquinha”, uma forma de menosprezar minha origem. Era como se dissessem: “Você é pobre, boba e marginalizada. Você vive no mato e não sabe de nada.” Apesar de nós, indígenas, sofrermos discriminação quando estudamos ou trabalhamos nas cidades, eu me sentia desafiada a me esforçar e a me destacar. Os Wapichana são conhecidos por serem pacientes, calmos e ótimos observadores. Eu prestava atenção nas aulas e me saía bem nos estudos.

Pelo que me lembro, foi aos 11 anos de idade que vi um aparelho de televisão pela primeira vez. Olhei as imagens de longe, na casa de um vizinho em Boa Vista. Fui escondida porque minha mãe não gostava que eu frequentasse a vizinhança. Ela tinha medo de entrar na casa dos vizinhos por temer acusações. Ela dizia: “Se você for à casa do vizinho e sumir alguma coisa, vão dizer que foi você quem pegou.”

Esse clima de tensão é constante na vida indígena, principalmente quando se nasce em um estado onde quase 50% da área são de terras indígenas reconhecidas oficialmente pelo governo federal, onde há um histórico de lutas pelos direitos às terras e de conflitos decorrentes dessa disputa. Em 1992, quando ingressei na faculdade de direito da Universidade Federal de Roraima, foi aprovado o relatório de identificação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, resultado de estudos iniciados em 1977 e etapa inicial para que seja possível a homologação do território. O processo para a homologação tem várias etapas, e cada etapa vencida é motivo de comemoração para nós, indígenas.

Na fase inicial é feito um estudo antropológico pela Funai. O laudo de 1993 propôs ao Ministério da Justiça o reconhecimento da extensão contínua de quase 1,7 milhão de hectares da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Nessa época, Boa Vista começou a ferver por conta da retirada de garimpeiros daquela área. Não importava se você era de Raposa Serra do Sol ou não, bastava ser indígena para ser xingado na rua. Passavam perto da gente e gritavam: “Esses índios ocuparam as nossas terras” ou “É muita terra para pouco índio”.

Resolvi estudar direito para mostrar nossa capacidade indígena, para lutar por justiça e para poder ajudar os meus “parentes” (chamamos de parentes todos os indígenas e não apenas aqueles com quem temos ligação sanguínea). Quando terminei a faculdade, meu primo, o professor Enilton André, me levou a uma reunião do Conselho Indígena de Roraima, que reúne quase trezentas comunidades indígenas do estado. Lembro-me da fala dele: “A comunidade Truaru tem a honra de informar que a nossa parente acaba de se formar em direito.” Foi uma festa: todos os presentes bateram palmas, dançaram e comemoraram. Eu tinha apenas 22 anos, mas me lembro até hoje. Desde então, os tuxauas – as lideranças indígenas – começaram a me pedir ajuda e fiquei conhecida como “a advogada dos indígenas”.

Em 1998 saiu a portaria do Ministério da Justiça declarando a TI Raposa Serra do Sol de posse permanente dos povos indígenas em área contínua, mais uma etapa para o reconhecimento oficial do território. Foi uma época tensa, cheia de conflitos. O governo de Roraima era contrário à medida e passou a atuar contra a demarcação. Criou municípios com sedes no interior da terra indígena, apoiou com incentivos fiscais e licenciamentos para fazendas de arroz na região e ingressou com ações judiciais para que o processo não andasse. Os parentes tiveram suas casas invadidas e queimadas. Foi quando passei a atuar em defesa das comunidades indígenas por meio da assessoria jurídica do Conselho Indígena de Roraima. Fui a primeira advogada indígena no Brasil a atuar pelos direitos dos povos indígenas.

Em 2003 teve início o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula queria homologar a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mas havia uma ação judicial do estado de Roraima questionando a demarcação em área contínua e defendendo que esta fosse realizada em ilhas. O governo estadual sempre se posicionou contra a demarcação. Quando ocorreu a disputa entre o estado e a União, o caso foi para o STF.

Ao longo dos anos, Raposa Serra do Sol foi alvo de inúmeras disputas judiciais. O caso acabou se tornando paradigmático sobre a luta pela demarcação das terras indígenas no Brasil. Em 2004, apresentamos uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) exigindo a ratificação da demarcação. Fizemos um trabalho de sensibilização não somente das autoridades, mas dos próprios povos indígenas. A decisão sobre o caso iria impactar a vida dos indígenas de todo o país.

Em 2005, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi homologada pelo presidente Lula. Em agosto de 2008, o STF julgou a constitucionalidade da demarcação, que estava sendo questionada por fazendeiros e pelo estado de Roraima. Fui uma das escolhidas para fazer a sustentação oral a favor da causa indígena. Eu estava nervosa pois era a primeira vez que eu faria uma sustentação oral, e a minha estreia foi na mais alta corte do país.

Os parentes que estavam no recinto se reuniram, fizeram uma oração e me disseram: “A sua voz é a nossa voz.” Pintaram meu rosto de urucum, iniciei minha fala em Wapichana e fiz a defesa. No campo oposto estava Francisco Rezek, ex-ministro do Supremo, fazendo a sustentação oral pelo estado de Roraima. Quem presidiu a sessão foi o ministro Gilmar Mendes. Em março de 2009, o STF reconheceu a validade da demarcação contínua da Terra Indígena e determinou a saída imediata dos não indígenas que ocupavam a região.

Agora está em tramitação no Congresso um projeto de lei que cria o marco temporal e muda o procedimento de demarcação de terras indígenas no Brasil. O PL 490 prevê que uma terra só pode ser demarcada se já fosse ocupada por indígenas na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Esse PL não é novo, ele surgiu em 2007 justamente com a finalidade de frear a homologação da TI Raposa Serra do Sol. A intenção era transferir do Executivo para o Legislativo a competência para demarcar terras indígenas.

Depois que ganhamos a ação no STF em 2009, o PL ficou encostado, mas, quando teve início o mandato de Jair Bolsonaro (2019-2022), criaram-se as condições para que saísse da gaveta. Nessa época, eu era deputada federal pelo estado de Roraima – a primeira mulher indígena eleita para o Congresso – e liderei a luta parlamentar para frear a sua tramitação.

Este ano, retomaram o projeto. O PL 490 tramitou com urgência e foi aprovado em maio pela Câmara dos Deputados. Foi tudo muito rápido, não houve tempo para reação. A demarcação de terras é um direito dos povos indígenas e um dever constitucional do estado brasileiro, realizado pela União. O PL reúne inconstitucionalidades, pois afronta direitos de caráter fundamental assegurados pela Constituição e fere o princípio de separação dos Poderes.

O problema não é só o marco temporal, o marco temporal esconde outras ameaças. O PL 490 carrega outros quinze projetos apensados e recentemente recebeu um texto substitutivo. O novo texto estabelece, por exemplo, a possibilidade de exploração hídrica, expansão da malha viária e mineração em terras indígenas e prevê que se reavalie uma demarcação, caso se julgue que o povo indígena perdeu seus traços culturais.

Os povos indígenas não foram consultados sobre as propostas, o que é exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Então é perigoso, coloca em risco os direitos dos povos indígenas e traz insegurança jurídica em outros processos de demarcação.

Minha expectativa é de que o Senado não atropele os direitos indígenas como fez a Câmara dos Deputados. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, conversou com lideranças indígenas e afirmou que fará uma tramitação que respeite o regimento. Espero que os parlamentares tenham consciência e votem contra o projeto. O correto seria o Congresso aguardar o julgamento do STF sobre a tese do marco temporal. É uma oportunidade que a Corte tem de enterrar de vez o marco temporal e colocar um ponto final em qualquer tentativa de reduzir os direitos constitucionais dos povos indígenas.

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