“As leis foram criadas por homens para favorecê-los”

Especialista em feminicídio, advogada Fayda Belo lança livro com linguagem simples para conscientizar brasileiras de seus direitos. “O enfrentamento à violência contra a mulher é dever de todos.”

Por Edison Veiga, na DW

Celebridade nas redes sociais, a advogada criminalista Fayda Belo tem como missão combater dois grandes problemas da sociedade: o machismo, que não raras vezes é causa de crimes e violências contra as mulheres, e o chamado “juridiquês”, ou seja, aquele vocabulário empolado que costuma ser empregado por advogados, juízes e promotores.

“Porque todo mundo quer ouvir sobre seus direitos, só que os juristas usam uma linguagem muito técnica, rebuscada, o juridiquês que ninguém entende. Mas o direito é de todo mundo. Aí eu resolvi explicar o direito em uma linguagem simples, como eu falo com as amigas”, diz em entrevista à DW, explicando como decidiu postar conteúdo na internet.

Neste mês de agosto, chega às livrarias um livro que é um verdadeiro compilado dessa sua experiência na abordagem de crimes de gênero: Justiça para todas: o que toda mulher deve saber para garantir seus direitos (Editora Planeta). Capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, Belo se autodefine como militante — tanto pelo empoderamento das mulheres quanto pelo dos negros. Ela é coordenadora do Instituto Mulheres no Poder, um movimento suprapartidário de formação de lideranças femininas.

“É preciso que implantemos uma educação que seja pautada na equidade de gênero, que coloque a mulher com status de indivíduo, com direitos e deveres iguais aos do homem, uma educação que alimente essa não banalização da vida das mulheres”, defende a criminalista.

Para a advogada, o Estado, ainda hoje, contribui para a desigualdade e a violência contra a mulher.

“As leis foram criadas por homens, para homens e para favorecê-los. E para oprimir mulheres, para reforçar que o homem é o líder, que ele manda, e a mulher é nada”, destaca.

DW: O que a motivou a começar a explicar os direitos das mulheres na internet?

Fayda Belo: Eu sempre fui ativista, militante e era uma advogada de fórum. Sempre dizia que essa vida online era bobeira. Até que em 2020, com o vírus [a pandemia de covid-19] e tudo, os fóruns trancaram as portas, as audiências foram adiadas, a gente se viu obrigada a ficar isolada.

Refleti que eu poderia usar o conhecimento que tenho para explicar o direito. Porque todo mundo quer ouvir sobre seus direitos, só que os juristas usam uma linguagem muito técnica, rebuscada, o juridiquês que ninguém entende. Mas o direito é de todo mundo. Aí eu resolvi explicar o direito em uma linguagem simples, como eu falo com as amigas. E deu muito certo. Minha meta era essa: incluir. Colocar ali que o direito precisa ser de todo mundo.

Quero usar os títulos de dois capítulos de seu livro para fazer duas perguntas. A primeira: por que a maioria das mulheres não consegue identificar que foi vítima de um crime?

O Brasil é um país que foi colonizado pela Europa, que trouxe um modelo de sociedade como meta para que o Brasil fosse assim moldado. Qual era o modelo? O homem, que era o líder, o centro; a mulher, que era apenas um adereço; e um padre. Um padre para dizer que essa mulher tinha de ser submissa a esse homem. E isso fez com que se criasse a falsa ideia de que, na realidade, o homem é dono dessa mulher, que a mulher é uma coisa, não um indivíduo, que ela é um adereço que nasce apenas para obedecer ao pai, arrumar um marido e depois disso obedecer ao marido.

Ainda hoje temos resquícios disso, o que faz com que muitas mulheres normalizem uma relação abusiva porque não conseguem ver que estão nela, uma vez que foi implantada a ideia de que aquilo era o modelo certo, que o homem manda e ela obedece. Ainda hoje, em muitas casas, há a falsa ideia de que o homem pode tudo e a mulher tem de aguentar quieta, porque é mulher. O resultado é que muitas mulheres não enxergam que estão sendo vítimas da violência.

A segunda: como o Estado contribuiu para a desigualdade e a violência contra a mulher?

Se o modelo que a Europa queria para o Brasil era o que tinha o homem como centro, como líder, logo a este mesmo homem coube criar as leis. E julgar. Sendo assim, as leis foram criadas por homens, para homens e para favorecê-los. E para oprimir mulheres, para reforçar que o homem é o líder, que ele manda, e a mulher é nada.

Desde sempre o poder público, com as bênçãos da lei, deixou a mulher violentada e oprimida. E com as bênçãos do Estado, o homem se empoderou para violentar, oprimir e até matar essa mulher. Então o Estado brasileiro tem culpa, e muita culpa. Por tudo o que faz com que a mulher não tenha o direito às rédeas de sua própria vida, porque caso ela ouse não ouvir, não obedecer, ela apanha ou é morta.

De acordo com recente levantamento da Rede de Observatórios de Segurança, a cada quatro horas uma mulher é vítima de violência no Brasil. O que fazer para reverter esse quadro?

A curto prazo, eu entendo que precisamos de capacitação. Quem recebe essa mulher [vítima], quem julga esses crimes não está pronto ainda para receber essa mulher. Todo dia aqui nasce uma lei, mas nasce uma lei para redizer o que já estava dito, para ver se desenha, porque tentam de toda forma arrumar uma brecha para que esse agressor não seja preso, não receba uma pena.

Precisamos que este corpo humano que atua em delegacia, no judiciário, no Ministério Público entenda que é ator para ajudar essa mulher. Precisa haver isso: curso e capacitação para esse time todo que recebe essa mulher, que recebe esse processo e que julga esse processo.

A longo prazo, eu costumo dizer que muita gente pensa que crimes e violência contra a mulher a gente resolve apenas com esse homem [agressor] preso. O que é uma inverdade. Eu preciso refletir mecanismos para que essa mulher seja violentada. E quando eu falo isso, eu digo prevenção. E isso a gente realiza com educação. É preciso que implantemos uma educação que seja pautada na equidade de gênero, que coloque a mulher com status de indivíduo, com direitos e deveres iguais ao homem, uma educação que alimente essa não banalização da vida das mulheres.

Precisamos ter remédios, ações, programas que evitem que essa violência seja realizada. E isso a gente só consegue com educação. Não só a educação na escola, mas a educação em casa, a educação na igreja, a educação em todos os níveis, porque o enfrentamento à violência contra a mulher é dever de todos.

Foto: Tânia Rêgo /Agência Brasil

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