“Lógica da polícia de atirar para matar é revertida em voto”

Repetição de incursões policiais com muitas mortes, como as que ocorreram em São Paulo, Rio e Bahia, é “teatro trágico” que vitima policiais e moradores a serviço do “uso político do discurso de morte”, diz professor.

Por Fábio Corrêa, na DW

Uma operação policial deflagrada na sexta-feira passada (28/08) para buscar responsáveis pela morte de um policial militar deixou pelo menos 16 mortos no Guarujá, no litoral paulista. Também nos últimos dias, outra incursão policial em uma favela no Rio fez dez vítimas. Na Bahia, pelo menos 20 pessoas morreram em três operações policiais distintas.

Em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas pronunciou-se logo após a operação, exaltando a atitude dos policiais e dizendo não ter havido “excessos”, mesmo com a alta letalidade. À frente da secretaria de segurança do estado e chefiando as polícias está Guilherme Derrite, um ex-policial da Rota, grupo de elite da Polícia Militar (PM) paulista com um histórico de mortes em operações.

Para Wallace Corbo, professor de direito constitucional da FGV Direito Rio e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a atitude de Tarcísio é uma repetição do que foi visto no Rio nos últimos anos: substituição de políticas públicas de segurança pública por operações policiais.

Segundo o especialista, essas ações de alta letalidade – tanto de civis quanto de agentes – não contribuem para a diminuição da criminalidade, mas têm um efeito político claro.

“A pauta da segurança pública pela violência se politizou. Virou uma grande bandeira. Porque o show e o espetáculo da operação, a lógica que a PM está atirando pra matar, é revertida em votos para um eleitorado que confunde segurança pública com operação policial”, diz em entrevista à DW.

DW: O que o resultado letal dessas operações mostra sobre a forma de agir da segurança pública brasileira? Estamos combatendo o crime de forma efetiva?

Wallace Corbo: Essa lógica de enfrentamento não é pautada numa lógica de inteligência. Não existe nesses estados uma prioridade do planejamento e das ações de inteligência que tenham como objetivo desestruturar grandes operações criminosas.

A preocupação com a preparação da Polícia Civil, que é responsável pela investigação, é deixada de lado em função da lógica de “enxugar gelo”: incursão, apreensão de um pequeno número de drogas e armas e retirada – e repete-se isso.

Falta, na política de segurança pública desses estados, uma lógica de desestruturação das organizações criminosas. É uma lógica de política pública que não é voltada à promoção da segurança pública, mas à manutenção do status quo de territórios ocupados. Isso acaba vitimizando tanto os policiais, que são submetidos a essa lógica, que estão expostos ao risco de morte, quanto a população civil que mora nesses territórios onde acontecem essas operações, que não têm nenhum acesso ao mínimo de condições: as escolas fecham, os hospitais estão sujeitos a tiroteio, o trânsito é limitado e a circulação são limitados.

É feita uma operação policial, são mostrados os policiais atuando e que morreram várias pessoas, para prestar contas da segurança, mas não se resolve o problema. É um teatro da violência, mas é um teatro trágico, porque não são atores, são pessoas que têm famílias e acabam mortos. Isso tem gerado resultado? Não tem. Os números de operações são altos há décadas, a quantidade de mortos em enfrentamentos com a policial é alta, mas não é possível dizer que a maior parte deles são criminosos, que não sejam os chamados efeitos colaterais. Mas, mesmo que fossem [criminosos], a criminalidade não diminui.

Mesmo assim, não é raro encontrar vozes apoiando esse tipo de prática da polícia. Muitas pessoas acham que uma polícia que mata “bandidos” é algo bom e eficiente, mesmo em um país que não prevê a pena de morte. É possível mudar esse tipo de percepção?

Sim, porque é uma percepção construída. Isso foi, nos últimos cinco anos, muito fortalecido pelo discurso político. As pessoas não começaram a acreditar que tiroteio é algo que é positivo do nada. Isso veio e vem com apoio de líderes e o apoio institucional de diferentes governos. E da cultura também, com glamourização de operações policiais em filmes e novelas.

Se essa percepção foi construída, é possível pensar em políticas públicas para desmobilizá-las, em começar a expor as perdas que são geradas com essas operações. A imprensa exerceu um papel, nos últimos anos, de ir atrás e descobrir quem são as vítimas – e crianças que são mortas são rapidamente demonizadas em grupos de WhatsApp, e a imprensa descobre que elas estavam indo estudar, que um menino que morreu era um músico e estava indo tocar seu instrumento.

Além disso, o governo tem um papel relevante, de olhar para os policiais, para os agentes de segurança, e atender às necessidades deles. Não estou falando só de salário, mas de necessidade psicológicas – eles não têm atendimento psicológico no Rio, por exemplo. Há polícias com altos índices de suicídio, de depressão, e [os policiais] vão para uma favela, dar tiro e talvez morrer, porque não estão com preparo psicológico para essas situações.

É possível combater esse discurso à medida que existam políticas públicas que organizem isso, à medida em que a comunicação com a sociedade mude, não só na imprensa, mas no governo, para deixar claro que não existe democracia e direitos se o tempo todo a metade da população está com medo de sair de casa porque pode levar uma bala perdida.

Em São Paulo, o governador disse não ter visto excesso da polícia no Guarujá e comemorou a operação. O secretário de segurança, que comanda as PMs do Estado de São Paulo, é um ex-policial da Rota, conhecida pela violência, que chegou a ser deputado federal. Qual o significado político dessas ações policiais de alta letalidade? É uma forma de acenar ao eleitorado mais radical?

A pauta da segurança pública pela violência se politizou. Virou uma grande bandeira. Porque o show e o espetáculo da operação, a lógica que a PM está atirando pra matar, é revertida em votos para um eleitorado que confunde segurança pública com operação policial.

O Tarcísio está só repetindo a história, cortando para São Paulo o que era comum no Rio. Não só o [ex-governador] Wilson Witzel, em 2020, quando ele fala do “tiro na cabecinha”, o Tarcísio também está reencenando o teatro que o [atual governador] Cláudio Castro fez, quando logo depois de uma chacina, os chefes da Polícia Civil e Militar foram a público dizer que aquilo estava certo e quem criticasse estava do lado dos traficantes e do crime.

Nessa lógica, se quem critica a polícia é vilão e inimigo, aí o estado tem mesmo que entrar para matar. É um uso político do discurso de morte. É preocupante porque o que essas operações têm feito não é reduzir nem estabilizar os índices de criminalidade, mas muitas vezes aumentá-los.

Posso ter um grupo de tráfico que perde, mas o que estamos vendo no Brasil é uma expansão do controle de milícias, que é um modelo muito próprio do Rio que está se expandido. E essas operações estão servindo para assegurar o ganho de território de outro grupo criminoso, mesmo que o PM que entre ali não saiba disso.

Muito se diz que as mudanças necessárias na polícia passariam pela mudança na formação dos oficiais, com maior foco em questões como direitos humanos e racismo, por exemplo. Ou pela melhor atuação do Ministério Público na fiscalização. Esse cenário é possível? Existe apoio para que algo assim aconteça dentro dessas instituições?

O problema das perspectivas de curto ou médio prazo é que todas a estruturas políticas e institucionais já estão imersas, no geral, nessa lógica de insegurança pública, de violência. Isso vai significar que dentro da polícia a resistência é enorme em mudar, porque os policiais se veem como vítimas porque eles estão se expondo e não vão aceitar críticas.

O Ministério Público também não tem atuado adequadamente no controle externo das polícias, que é algo que deveriam fazer, mas que é insuficiente por motivos diversos; os governos locais não têm interesse em mudar porque isso é convertido politicamente em votos – os deputados contra essa política são taxados por defensores de bandido e perdem voto.

Mas um dos caminhos abertos e que pelo menos está atacando esse problema no Rio e pode servir de parâmetro é a discussão que vem sendo levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2019 – a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 672, conhecida como ADPF das Favelas.

Essa foi uma ação ajuizada exigindo que o estado tivesse uma política de segurança estruturada ao redor da redução de letalidade e promovendo apoio aos policiais e para os direitos humano. Porque o grande problema não é só que as operações policiais não dão certo, mas que não existem políticas de segurança pública propriamente.

Primeiro, o Supremo suspendeu as operações policiais durante a pandemia, depois obrigou estado do Rio a apresentar um plano – e o estado tem se rejeitado a fazer isso, mas é uma via possível para se discutir a questão.

Se o STF for bem sucedido em desmobilizar essa lógica de política de enfrentamento de “enxugar gelo” no Rio, se for capaz de impor o estado a criar um plano de segurança pública e se isso for bem sucedido, aí sim há uma chance, no curto e médio prazo, de outros estados serem compelidos a fazer as mesmas coisas.

Mesmo que politicamente não seja visto de forma positiva pela população, se houver uma melhora na segurança pública a partir dessa ação e outras que possam vir, temos um caminho.

Polícia em comunidade do Rio de Janeiro. Foto: Ricardo Moraes, Reuters

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