Djamila Taís Ribeiro dos Santos é uma filósofa e feminista negra brasileira. E é assim que ela gosta de se apresentar, porque para ela o lugar de fala é fundamental para qualquer ativismo. A partir daí, ela lista suas outras identidades: jornalista, escritora, editora, pesquisadora de Simone de Beauvoir e Judith Butler e responsável pelo best-seller Pequeno manual antirracista (Companhia das Letras, 2019), um livro simples e pedagógico sobre as milhares de violências cotidianas a que as pessoas não brancas são submetidas com profundas raízes e práticas coloniais. Agora ela vem para a Argentina para apresentar este livro e um outro, Cartas para minha avó (Companhia das Letras, 2021), um elogio aos cuidados dessas mulheres que cuidam por gerações, às quais o feminismo muitas vezes esteve negado mas, segundo Ribeiro, “mais nenhum movimento pode ser permitido ou pensado sem elas”.
A entrevista é de Flor Monfort, publicada por Página/12, 04-08-2023. A tradução é do Cepat.
Estudou filosofia política na Universidade de São Paulo. Tinha 28 anos quando conseguiu acessar esses estudos e muita vontade para absorver tudo do ambiente acadêmico, mas suas bandeiras já estavam plantadas: ela queria saber, mas também aplicar todo aquele conhecimento em pessoas que não teriam acesso como ela. Para Djamila Ribeiro (Santos, 1980), o território é esse vasto espaço onde se esculpem todas as verdades do ativismo. A rua, a escola, o salão de beleza, o bar da esquina, a televisão, a micropolítica dos gestos cotidianos, esses que tecem o poder com fios invisíveis, como quando um lugar é servido por negros e frequentado por brancos.
“No Brasil, estudar filosofia é estudar o pensamento de homens brancos europeus. É muito difícil encontrar feministas. Comecei a estudar já adulta, graças ao primeiro governo Lula. Naquela época eu tinha uma filha e foi muito difícil. Claro que a maioria dos meus professores eram homens brancos e não gostavam do que eu queria. Quando eu disse que queria estudar Simone de Beauvoir, um professor me disse: ‘Ahhh a esposa do Sartre’. É enfrentar a hegemonia branca e masculina. Na universidade criamos um grupo de alunas negras e LGBT, e esse coletivo me permitiu seguir em frente. Tive que viajar para outros países e graças ao feminismo consegui: as mulheres me salvaram, sempre digo isso. Só a luta coletiva consegue refutar a hegemonia”.
Djamila está muito animada para apresentar seu Pequeno Manual Antirracista em nosso país, livro publicado no Brasil em 2019 e que foi um sucesso de vendas; com seu estilo pedagógico e gentil e uma capa poderosa, conseguiu entrar na casa de milhares de brasileiros. “Meu desafio é que as pessoas pensem sobre essas opressões”, diz, e pede desculpas por falar “portunhol”, mas, falando rigorosamente, fala um espanhol perfeito. Sobre o nosso país, ela diz: “muita gente no Brasil acredita que não há negros na Argentina”.
Eis a entrevista.
Por que acha que isso acontece?
Porque as consequências da colonização estão muito presentes. Nossos povos foram dizimados e é muito difícil lutar contra as estruturas que permanecem, porque o neocolonialismo existe. A questão é como aumentar a consciência dos povos sobre este problema. Durante muito tempo se dizia nas escolas que os negros eram escravos, e não contavam a história dos povos negros. Portanto, faz relativamente pouco tempo que a história está sendo contada de uma perspectiva diferente.
Por outro lado, sempre houve pessoas que lutaram contra o sistema hegemônico: se na minha infância tivessem me contado a história de outra perspectiva, tenho certeza de que não teria tantos problemas de autoestima. Porque durante muito tempo só tinha gente branca na mídia, então a gente precisa ter uma perspectiva histórica que conte a história com uma perspectiva positiva. Há muita resistência para mudar as coisas, o poder nunca quer mudar, por isso é tão complicado, por isso é preciso continuar lutando.
Ponto de partida
Lugar de fala (Editora Pólen, 2019) é seu primeiro livro publicado no Brasil e faz parte de uma coleção independente que Djamila coordena desde 2017, a coleção Feminismos Plurais. Ali publica autores negros e negras e Pequeno Manual Antirracista é seu terceiro livro. “Para mim é um livro importante porque expõe o debate de que o antirracismo é uma questão de toda a sociedade, não apenas dos negros. Como os brancos podem se responsabilizar pela opressão racista. Ganhou um importante prêmio literário em 2020, o Jabuti, mas para mim o melhor é o reconhecimento do público, porque é muito gostoso ver jovens comprando esse livro, avós que vão nos meus lançamentos… É um livro muito popular e para mim é importante porque quebra barreiras sobre essa discussão”.
Como o livro está estruturado?
Está dividido em dez capítulos. O primeiro é sobre racismo no Brasil, há outro sobre racismo e educação, racismo e trabalho, racismo e relações afetivas, racismo e segurança pública… Essas divisões me permitiram explicar que o racismo não é apenas um problema individual, mas estrutural. E como a falta de políticas públicas aumenta as desigualdades raciais. No Brasil, durante muito tempo o Estado negou a existência do racismo. Essa ideia romântica da democracia racial estava muito instalada no meu país e durou muito tempo. Tanto que durante todos esses anos não houve acesso a essa discussão de maneira profunda: foram os movimentos negros que se encarregaram de refutar a ideia da democracia racial. Neste livro trago de maneira pedagógica o trabalho de muitos importantes intelectuais negros, acessível ao público, para chegar a mais pessoas.
Como a irrupção dos feminismos negros mudou o mapa da militância feminista, que obteve sua visibilidade máxima na última década, mas que vem funcionando desde muito antes?
Foi muito importante, porque o feminismo negro no Brasil se fortaleceu muito na década de 1980 e foi muito importante para o movimento antirracista, porque as mulheres negras feministas no Brasil começaram a discutir a invisibilidade da mulher negra tanto no movimento negro quanto no feminismo hegemônico. Para as mulheres negras brasileiras, não era possível pensar num projeto de Brasil sem pensar na importância das mulheres negras, já que somos a maioria da população: 28% da população total.
E isso nos deu a possibilidade de pensar a interseccionalidade, a intersecção das opressões. Não existe luta feminista que não seja antirracista, não existe luta negra que não seja feminista, não existe luta de classes se não se tiver presente que o Brasil foi o último país da América a abolir a escravidão…. Um país onde durante séculos os negros foram tratados como mercadoria. Então, para nós, não é possível pensar as opressões de maneira separada, elas têm que ser pensadas em conjunto e como afetam esses grupos que cruzam uma ou mais opressões.
O feminismo negro foi muito importante, e mulheres como Luiza Bairros e Lélia Gonzalez pensaram sobre o sexismo e o racismo de forma conjunta. Lélia pensou em uma luta transnacional na América do Sul, pensou no conceito de amefricanidade: as opressões que os povos indígenas e negros sofrem na América Latina. Em 1970, ela já criticava a dependência epistemológica do Norte, na importância para o Sul de pensar uma luta organizada. Outro projeto para o Brasil e outro projeto para a América Latina.
E como você pensa essa interseccionalidade com o movimento LGBT?
As opressões da sexualidade e da identidade de gênero também estão presentes no conceito de interseccionalidade. No Brasil, temos muitas intelectuais lésbicas que são muito importantes para pensar a heteronormatividade. Não podemos separar essas opressões: se uma mulher é negra e lésbica, tem que se pensar nisso, no seu lugar de fala.
Para nós feministas negras é muito importante não invisibilizar as identidades, não podemos e nem devemos apagar nenhuma delas. É preciso um entendimento maior, não se trata de separar os movimentos, mas de unificá-los, porque as opressões estruturais separam as pessoas: classismo, racismo, sexismo. Trata-se de tornar visíveis as categorias políticas para pensar soluções emancipatórias para a desigualdade. As identidades não são pensadas de forma fixa, mas como visíveis para a liberdade.
Na coleção que coordeno, estamos prestes a publicar um livro chamado Lesbiandade [de Dedê Fatumma, Editora Jandaíra, 2023]. Porque muitas vezes o movimento LGBT mantém as lésbicas um pouco afastadas. Já publicamos Transfeminismo [de Letícia Nascimento, Editora Jandaíra, 2021] na mesma coleção; então, para mim, foi muito importante publicar algo escrito por uma mulher lésbica. A interseccionalidade é uma ferramenta para pensar sobre as opressões.
Seu livro Cartas para minha avó, que você também apresenta na FED [Feira de Editores], introduz o tema do cuidado. Poderia nos falar algo sobre este livro?
É um livro de memórias, escrevo sobre minha infância, sobre como era ser uma menina negra na minha cidade e como minha avó foi uma figura muito importante e amorosa na minha vida. Escrevo para ela porque ela morreu quando eu tinha 13 anos, para mim foi uma perda muito significativa, e depois morreram meus pais, ainda muito jovens. Durante muito tempo evitei falar do meu passado porque eram coisas muito dolorosas. Então nesse livro é muito importante falar da minha história. Como durante muito tempo me ensinaram a não valorizar o lugar do cuidado.
Eu olhava para minha mãe e dizia: “nunca serei como ela, vou trabalhar, vou ser independente e muito diferente dela”. Então, depois quando fui mãe (tenho uma filha de 18 anos), foi importante para mim essa ligação com a minha ancestralidade feminina, esse lugar com um olhar de amor e apreço. Muitas pessoas me dizem: “seu pai foi muito importante, ele lhe ensinou a ser militar”, e eu acho que sim, meu pai era comunista e foi muito importante para a minha formação como ativista e intelectual, mas minha mãe cozinhava para mim, arrumava meu cabelo, me vestia. Comecei a valorizar isto e este livro é uma homenagem a elas.
Minha mãe era doméstica, minha avó também, e as pessoas não valorizam o cuidado. E na pandemia isso apareceu com força, gerenciar o cuidado e o trabalho, e é muito importante falar sobre isso. A sociedade só funciona porque tem mulheres cuidando. Durante muito tempo, o discurso feminista não valorizou esse lugar, por isso é fundamental colocar o cuidado no debate central do feminismo.
A visibilidade política que, com o governo Lula, indígenas e negros ganharam em cargos importantes, você acha que ajuda a coibir o racismo?
É importante que essas pessoas estejam nesses lugares, mas a estrutura política continua a mesma. Então não podemos esperar milagres, as coisas não mudam simplesmente. Por outro lado, penso que havia muitas expectativas. No Brasil, a maioria dos deputados é de direita, então o Lula é presidente e isso é muito bom, mas no Congresso a maioria é de direita e você tem que negociar o tempo todo com essa gente. Nessa estrutura é muito difícil que haja muitas mudanças. Porém, em termos de representatividade é importante que estejam aí. Os movimentos não podem relaxar, devemos continuar pressionando mesmo que haja um presidente de esquerda.
Até porque depois de um governo de esquerda é muito provável que venha um de direita. Como vê o avanço da direita nos cargos de poder?
É preciso conversar com a população, com os evangélicos, com as pessoas que pensam diferente. É um trabalho de base, e um trabalho que precisa ser feito, sempre. Sou ativista, sou acadêmica, mas acima de tudo sou ativista. É impossível mudar as coisas sem conversar com as pessoas que precisam desse tipo de consciência.