Por uma CPI dos Crimes dos Latifundiários. Por Milton Pomar

Quantas megaempresas do Agro não tiveram seu capital inicial produzido por trabalho escravo nas fazendas dos tataravôs dos CEOs atuais?

No Sul21

Deputadas e deputados federais que se indignaram, com justa razão, com a esdrúxula Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST) – que deverá ser encerrada com a participação do economista João Pedro Stédile no dia 15/08, a partir das 14 horas –, bem que podiam criar a CPI dos Crimes dos Latifundiários, para apurar “fatos específicos” cometidos por pessoas dessa categoria, descritos a seguir.

Primeiro, os assassinatos “a mando” em todo o País desde os anos 1950, de centenas de trabalhadores e trabalhadoras, indígenas, lideranças sindicais, ativistas, ambientalistas e religiosos(as), denunciados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) desde a sua criação, em 1975.

Segundo, os casos comprovados de trabalho análogo à escravidão, nas “regiões de fronteira agrícola”, mas não apenas. Quem trabalhou em abertura de fazendas nos estados do Centro-Oeste e Amazônia, sabe que esse é o “modus operandi” dos latifundiários desde os anos 1970, herdado dos seus antepassados escravagistas.

Terceiro, a devastação ambiental realizada por latifundiários, parte dela ou toda com recursos públicos, via incentivos fiscais e financiamentos subsidiados, a partir de 1969. Devastação total e absoluta – e não o prosaico “desmatamento” – de áreas imensas em todos os biomas, mas principalmente do Cerrado, no coração do Brasil, região de 2,045 milhões de km2 (sete vezes a área do Rio Grande do Sul). A devastação durante a ditadura militar, incentivada pelo governo federal e governos dos estados do Centro-Oeste e Amazônia, apesar de gigantesca, é “fichinha” comparada com a das décadas seguintes, identificada pelo Projeto Mapbiomas.

Mata Atlântica, Pampa, Pantanal, Semiárido, Cerrado e Amazônia: todos foram invadidos e parcialmente destruídos pelos latifundiários. Na Amazônia, a devastação ambiental durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) equivale à destruição de uma vez e meia a área de Santa Catarina ().

Destruição total mesmo: após a “derrubada” (das árvores), queimam tudo. Onde antes havia todo tipo de vida, centenas de espécies vegetais e animais, depois da queimada há apenas corpos carbonizados e cinzas. Aliás, esse é aspecto decisivo na avaliação do desempenho econômico das fazendas do Agro das regiões devastadas para a produção de grãos e carnes para exportação: no cálculo dos custos de produção, as empresas têm que incluir os custos totais da devastação que fizeram, não apenas os do “desmatamento”, queimada, preparo do solo, plantio etc. Sem incluir os custos da Natureza devastada, como se terá recursos para a sua restauração? – Fundamental, entre outras coisas, para que haja água no Cerrado e na Amazônia em 2030.

Quarto, as empresas que receberam incentivos fiscais para empreendimentos agropecuários no Centro-Oeste e Amazônia e não o fizeram, nem devolveram o dinheiro público dos “incentivos”. O relatório dos “investimentos” nesse período deve estar perdido em algum arquivo empoeirado, ou foi queimado, em incêndio providencial. Essa festa segue impune no século 21…

Quinto, a “grilagem”, crime de apropriação de terras alheias – principalmente da União, mas não apenas. Latifundiários(as) acusam os sem-terra de “invadirem” terras que alegam serem de sua propriedade, mas quantos(as) conseguem apresentar a Certidão da Cadeia Dominial? – Graças ao recurso da grilagem, latifundiários sempre invadiram e se disseram donos de terras indígenas, de posseiros, e até de outros latifundiários, criando conflitos e exacerbando os já existentes, em todas as regiões do Brasil. O padre Victor Asselin, autor de “Grilagem – Corrupção e Violência em Terras do Carajás” (1982, reeditado em 2009), pesquisou no interior do Maranhão e descobriu a rede de fraudes em documentos e em cartórios que caracterizam o “grilo” como “sistema”, que possibilita aos latifundiários até hoje concentrarem terras, riquezas e poder.

Sexto, sonegação de impostos – o Territorial (ITR) e os relativos às suas atividades econômicas: ICMS, IRPJ, IRPF, … No caso do abate de bois, as quantidades reais sempre foram maiores do que as oficiais – em média, um boi sonegado a cada dois abatidos. Em 1992, a sonegação atingiu US$5 bilhões, relativa aos bovinos realmente abatidos e não-contabilizados, comprovada no estudo realizado pelo agrônomo Bruno Pessanha, do IBGE, sobre abates nos frigoríficos e couro bovino. Esse estudo do IBGE obrigou o setor da Pecuária nos anos 1990 a realizar uma revolução silenciosa, porque ao comprovar em 1989 que o abate real de bovinos (22 milhões de cabeças) era quase o dobro do oficial (13,5 milhões), todos os indicadores zootécnicos tiveram que ser “corrigidos”, gerando quase instantâneo “salto de produtividade” na pecuária de corte brasileira. Foi a maneira encontrada para não “passar recibo” da histórica e gigantesca sonegação. E deu certo: ninguém foi preso – nem os fiscais, muito menos os donos dos bois e frigoríficos.

Sétimo, usufruto de enriquecimento ilícito, com conhecimento dos crimes cometidos por terceiros – 4,8 milhões de pessoas da África escravizadas (séc. XVI-XIX) Três milhões de pessoas escravizadas trabalharam em fazendas de cana, café, gado etc., gerando riquezas transformadas em patrimônios rurais e urbanos, hoje usufruídos por seus descendentes, herdeiros dessas empresas de latifundiários escravagistas.

Trata-se de reparação histórica semelhante à que os países europeus e os Estados Unidos (EUA) devem aos países africanos cujos povos trabalharam como escravos em minas, fazendas etc., gerando grande quantidade de riquezas para a Europa e os EUA. No caso do Agro brasileiro, foram mais de três séculos de utilização de trabalho escravo por latifundiários. Quanto vale hoje todo esse trabalho acumulado? Quantas megaempresas do “Agro” não tiveram o seu “capital inicial” produzido por trabalho escravo – portanto não-remunerado – nas fazendas dos tataravôs dos CEOs atuais, tão orgulhosos de sua meritocracia?

Imagem: João Ripper

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