A quintessência da seriedade. Por Abrao Slavutzky

Em Terapia Política

Perguntavam ao Millôr Fernandes se o humor era coisa séria. Um dia respondeu que o humor é mais do que sério, é a quintessência da seriedade, frase que ficou famosa. Ou seja: o humorismo vai além da seriedade, indo ao seu âmago, daí ser sua quintessência. Entretanto, o mundo da cultura, ainda resiste à importância do humor, como as revistas culturais. Tendem a não abrir espaço para se pensar a importância do humor, e o tema ocupa assim uma certa marginalidade, o que é interessante. O conhecido historiador Robert Darnton – autor do “O grande massacre de gatos” – estuda a piada, pois a considera uma porta de entrada num sistema cultural. Antes dele o filósofo Ludwig Wittgenstein escreveu que o humor, mais que um estado de espírito, é uma visão de mundo. 

As verdades que revelam o humor inquietam os autoritarismos, as religiões, pois ele sempre revela o outro lado das coisas, subverte a ordem, satiriza a vida e seus problemas. O humor é como um fermento na farinha, pois inquieta, põe tudo em dúvida, nada é seguro ou definitivo. Um exemplo histórico foi a exclusão de Millôr da revista “O Cruzeiro” quando reescreveu a história da Bíblia, sobre a obra do Criador: “Essa pressa leviana / demonstra o incompetente / fazer o mundo em sete dias / com a eternidade pela frente”. Lembrei agora de uma história judaica: um homem foi ao alfaiate para fazer um traje e levou a fazenda, foram tiradas suas medidas e o alfaiate pediu que voltasse em dois meses. Passado o prazo, veio provar o traje e pagar, mas perguntou ao alfaiate como tarda tanto em fazer a roupa se o Todo Poderoso fez o mundo em seis dias. Respondeu o alfaiate: “Veja bem o traje que fiz e compara com este mundo”. Na religião judaica o sagrado é indiscutível, mas o humor judaico é livre para brincar até com as verdades sagradas. 

Agora o que é mesmo o humor? O humor integra a família fundada pela polêmica Verdade, que teve um filho chamado Espírito, que se casou com uma dama chamada Alegria. E deles nasceu um filho chamado Humor, um filho inquieto, que escapa às definições, ora tristonho, ora alegre, solene, instável e desconcertante. É a mais simpática das criações, é uma forma de ver e viver o mundo, sendo assim um dom precioso e raro, pois sorri, sem compulsão, da pulsão de morte, como escreveu Woody Allen: “Embora não tema a morte, prefiro estar longe quando ela se produzir”. 

Millôr Fernandes mostrou ao longo de sua vida que o bom humor é aquele que nos faz pensar achando graça. O humor é, enfim, uma conduta de luto: aceita a loucura humana e sorri diante dela. É uma vacina contra o desespero, imuniza com doses moderadas de ceticismo, tem uma visão rebelde. Como escreveu Millôr: “O humor compreende o mau humor. O mau humor é que não compreende nada”. O humor é uma transformação do narcisismo, e desenvolver o sentido de humor é essencial para viver melhor, viver com leveza. O humor é rebelde, é o triunfo do EU e do princípio do prazer diante da dura realidade. Ter sentido de humor é crescer, é se situar como adulto diante de uma criança pois pode brincar diante da realidade.  

O mundo psicanalítico, o mundo em geral, tem muito para aprender ainda sobre o humor como visão do mundo. O mundo tende a ser mal-humorado, enlouquecido com lucros a qualquer custo e ameaçando a vida na Terra. Tristes os mal-humorados que afundam na cama; vão dormir se achando com toda razão, mas perdem a graça da alegria.

Ilustração: Millôr Fernandes – Edição: Mihai Cauli

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