Indígenas do município de José Boiteux são proibidos de falar em suas línguas em órgãos públicos

O decreto, emitido pelo prefeito Adair Antonio Stollmeier, fere a Constituição Federal, ao não reconhecer aos povos indígenas do município o direito à expressão em suas línguas

POR MAIARA DOURADO, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

O prefeito do município de José Boiteux (SC), Adair Antonio Stollmeier (PP), emitiu, no início deste mês, o decreto nº 106, que define a língua portuguesa como idioma oficial em repartições públicas do município catarinense. O decreto estabelece que “o idioma oficial utilizado e permitido em todas as repartições públicas do município de José Boiteux é a língua portuguesa, conforme fundamento no caput do artigo 13 da Constituição da República Federativa do Brasil”.

A medida, no entanto, ao restringir a expressão em espaços institucionais do município à língua portuguesa, passa a proibir o uso de línguas indígenas em órgãos ligados à prefeitura. Nesses termos, o decreto viola um direito constitucional, cujo conteúdo diz respeito à tradicionalidade e ao direito dos povos indígenas de se expressar em suas línguas.

O decreto viola um direito constitucional

É o que determina o artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece aos povos indígenas do Brasil “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

A juventude Xokleng, um dos povos prejudicados pelo decreto, em depoimento em suas redes sociais, se manifestou contra a medida do prefeito do município de José Boiteux. “O prefeito se baseia no artigo 13 da Constituição Federal, mas nada na Constituição Federal diz que nós indígenas não podemos falar na nossa própria língua, no nosso próprio município, no nosso próprio território. Hoje nós estamos sendo muito criticados e isso é injusto, porque nós sabemos o quanto a língua é importante para a gente”, afirma uma jovem liderança em vídeo publicado em repúdio ao ato do prefeito.

Nada na Constituição Federal diz que nós indígenas não podemos falar na nossa própria língua, no nosso próprio município

Representação e recomendação

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul apresentou uma representação ao Ministério Público Federal (MPF) de Santa Catarina contra o decreto. Na promulgação da medida, “há uma explícita tentativa de evitar, reprimir, proibir o uso de línguas indígenas no interior de repartições públicas de José Boiteux”, informou o Conselho no documento.

A representação, encaminhada na última quarta-feira (17), gerou uma recomendação do MPF, expedida na segunda (21) à prefeitura de José Boiteux. No documento, a procuradora Lucyana Marina Pepe, que assina a recomendação, advertiu o prefeito sobre os constrangimentos que o decreto pode causar e recomendou sua revogação, dada a inconstitucionalidade da medida e a violação de convenções acordadas em instâncias internacionais.

“há uma explícita tentativa de evitar, reprimir, proibir o uso de línguas indígenas no interior de repartições públicas de José Boiteux”

O MPF “recomenda ao Exmo. Sr. Prefeito do município de José Boiteux, Adair Antonio Stollmeier, que se abstenha de criar embaraços a que indígenas dialoguem entre si em sua língua materna, sempre que assim desejarem ou entenderem necessário, mesmo que se trate de reuniões institucionais, promovendo, em consequência, a revogação ou alteração do Decreto n. 106, de 1º de agosto de 2023”.

Além da Constituição Federal, o decreto desrespeita acordos firmados na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que também determina a adoção de “disposições para se preservar as línguas indígenas dos povos interessados e promover o desenvolvimento e prática das mesmas”. A Convenção 169 da OIT possui no Brasil status de norma supralegal, o que significa que, dentro de uma hierarquia jurídica, está acima das leis, possuindo valor equivalente ao da Constituição Federal.

Além da Constituição Federal, o decreto desrespeita acordos firmados na Convenção 169 da OIT

A prefeitura do município de José Boiteux tem até esta sexta-feira (25) para se manifestar sobre o cumprimento das recomendações feitas pelo MPF, podendo sofrer penalidades caso não adote medidas consideradas suficientes para resolução do caso.

Inconstitucionalidade

O entendimento da procuradora do MPF é de que o decreto, apesar de estar fundamentado em uma norma da Constituição Federal, não pode se sobrepor a um direito, também constitucional, dos povos indígenas.

“Muito embora o artigo 13 da mesma Constituição Federal preceitue que a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil, essa disposição há de ser lida em conjunto com o citado artigo 231, de modo a se conferir igual valor a outras maneiras de comunicação e expressão, tais como as línguas faladas pelas comunidades indígenas”, afirmou a procuradora no documento encaminhado  à Prefeitura de José Boiteux.

“Muito embora o artigo 13 da mesma Constituição Federal preceitue que a língua portuguesa é o idioma oficial, essa disposição há de ser lida em conjunto com o citado artigo 231″

Para Rafael Modesto, assessor jurídico do Cimi, o decreto “é atentatório à dignidade étnica dos povos indígenas”, em especial dos povos Xokleng, Guarani e Kaingang, que vivem na Terra indígena (TI) Ibirama La-Klãnõ, localizada nos limites do município de José Boiteux.

“O desrespeito ao que dispõe a Constituição e as leis, além de grave afronta aos direitos fundamentais dos indígenas, pode ser considerado como ilícito penal, além de haver o dever de indenizar”, explica o assessor.

O decreto atenta contra os direitos de 1.434 indígenas que habitam o município, quase 25% do total populacional de José Boiteux, que possui 5.985 habitantes, segundo Censo 2022.

“além de grave afronta aos direitos fundamentais dos indígenas, [o decreto] pode ser considerado como ilícito penal”

TI Ibirama-Laklãnõ

O decreto não é a primeira violação de direitos sofrida pelos povos indígenas do município, principalmente dos povos Xokleng, Guarani e Kaingang que habitam a TI Ibirama-Laklãnõ, localizada em José Boiteux. O histórico de deslocamentos forçados, massacres, construção de barragem e reduções territoriais denunciam uma realidade de violência e, ao mesmo tempo, de resistência desses povos.

Há uma, no entanto, que parece assombrar, de forma notória, os povos dessa terra: a tese do marco temporal. A TI Ibirama-Laklãnõ está no centro da discussão do Recurso Extraordinário (RE) com repercussão geral, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa a procedência jurídica da tese do marco temporal.

O decreto não é a primeira violação de direitos sofrida pelos povos indígenas do município

O processo trata da reintegração de posse de uma área da TI Ibirama-La Klãnõ movida contra o povo Xokleng, tendo como base essa tese – que, na prática, propõe a anistia das violências praticadas contra os povos indígenas antes da promulgação da Constituição.

A decisão, dado o status de repercussão geral, terá efeitos sobre todos os demais casos envolvendo terras indígenas no Brasil e fixará a interpretação da Suprema Corte sobre o tema das demarcações.

A decisão, dado o status de repercussão geral, terá efeitos sobre todos os demais casos envolvendo terras indígenas no Brasil

O julgamento, que foi paralisado no dia 7 de junho com o pedido de vista do ministro André Mendonça, ainda não possui data para retorno. Enquanto isso, o povo Xokleng e todos os demais povos indígenas no Brasil aguardam, numa espera angustiante, a definição do STF sobre o destino de suas terras.

Mobilização indígena em Brasília, próxima ao Supremo Tribunal Federal, de 5 a 7 de julho, para a retomada do julgamento do marco temporal. Foto:Verônica Holanda/Cimi

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