O ministro demonstrou estar impaciente para votar a favor do marco temporal, escreve Egydio Schwade. Ficou evidente que a ele interessa o indígena integrado no capitalismo depredador
Como se viu na última sessão do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes está impaciente para dar o seu voto a favor do marco temporal, contra os povos indígenas. Aliás, já antecipou o voto. Talvez esteja angustiado porque está sujeito a ficar sozinho ao lado dos dois bolsonaristas!
Com a sutil propaganda que fez das empresas de mineração em área indígena, ficou evidente que ao Gilmar interessa o índio integrado no sistema capitalista depredador: peão ou escravo de agronegociantes de madeira, açúcar, soja, milho, algodão, ou de empresários do minério: cassiterita, ouro, diamante, nióbio… como se o dinheiro trouxesse o Bem Viver ao índio.
A cultura dos povos indígenas reflete preocupação pela variedade, beleza e abundância como patrimônio de todos: sua prática e suas lendas educam grandes e pequenos na filosofia preservacionista. Carvajal, o cronista da 1ª expedição ultramarina pela Amazônia, escreve: “…grande quantidade de carne, peixe e biscoitos, tudo com tanta abundância que era suficiente para alimentar uma força expedicionária de mil homens durante um ano inteiro”. O Gilmar do STF não vê rios poluídos, florestas depredadas, esvaziadas de sua riqueza alimentar. Não esconde estar na contramão das preocupações da humanidade, no que se refere ao ambiente, à vida.
Conheço o Gilmar desde menino, lá de Diamantino (MT). Ele mente quando afirma: “Nunca achei índio ali perambulando!” Via-os, sim, todos os dias. A sua casa ficava a 30 metros do Lar do Menor, internato de meninos: indígenas e filhos de pobres agricultores e garimpeiros
Conheço o Gilmar desde menino, lá de Diamantino (MT). Ele mente quando afirma: “Nunca achei índio ali perambulando!” Via-os, sim, todos os dias. A sua casa ficava a 30 metros do Lar do Menor, internato de meninos: indígenas e filhos de pobres agricultores e garimpeiros. Participei da criação do 1º Ginásio do município, do qual fui professor titular. Ali Gilmar estudou com índios Rikbaktsa, Paresi, Kayabi, Irantxe. Mentiras e meias verdades sempre tentam justificar sua “excelência” o latifundiário e o minerador.
Aliás, índios que estudaram com Gilmar no Ginásio de Diamantino, como Daniel Matenho Cabixi, Albano Muxi Rikbaktsa e o Gilberto Kutap Kayabi, sem receber salário, se distinguiram mais na luta por Justiça do que o próprio Gilmar, que recebe 40 mil reais mensais. Daniel Matenho foi um dos grandes líderes das primeiras assembleias indígenas e sua luta foi reconhecida a nível latino-americano, sendo até convidado a participar da Conferencia Episcopal Latino-Americana de Puebla, no México.
Gilmar participou como convidado especial do 4º Fórum Nacional de Agronegócios do Grupo de Líderes Empresariais (Lide). E após, no dia 20 de setembro de 2015, os jornais estampavam a sua preocupação pelo não cumprimento, por parte do governo federal, “das determinações da Justiça em relação às demarcações de terras indígenas no Brasil”. Não se tratava de preocupação pela demarcação das áreas indígenas, mas exatamente do contrário. Gilmar estava preocupado, como hoje está, em colocar em prática as 19 condicionantes criadas quando se de definiu a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que privilegiam o agronegócio e querem impedir qualquer ampliação das áreas indígenas.
Os agronegociantes são os mais privilegiados pelos governos, inclusive do PT. Assim mesmo é o grupo que cria mais embaraços, não só para a demarcação das terras indígenas, mas também para a realização de um programa de proteção ao Meio Ambiente.
Ali na fazenda da família dos Mendes, em Diamantino, como no Chapadão dos Parecis, a gente se deliciava nos anos 1960 com a biodiversidade de frutas e do mel das abelhas nativas: jabuticaba, pequi, caju do cerrado, mangaba, sem contar os sabores de méis, oriundos da enorme variedade de flores que alimentavam milhões de abelhas. Recordo-me que um dia saí com a meninada pelo cerrado da fazenda Mendes à procura de mel das abelhas nativas. Em poucas horas colhemos mel de 29 enxames, pertencentes a 24 espécies de abelhas, cada uma com seu sabor distinto.
O Chapadão dos Pareci, citado por Gilmar, além de fornecer a variedade de frutas para as aldeias, era regulador do fluxo das águas das bacias do Paraguai e do Amazonas. Os enormes sauveiros que despontavam chapadão afora prestavam um benefício incalculável para a vida que se movimenta em seus vales rumo ao Delta do Prata e à Ilha de Marajó. Hoje moro aqui no Baixo Amazonas, onde já se sucedem severas e irregulares cheias e secas do rio Amazonas, e vejo a importância do serviço prestado pelas saúvas, como reguladores da água das nascentes. Os empresários do agronegócio transformaram o Chapadão dos Parecis num vasto deserto verde, restando apenas o que os índios preservaram. Imagino que a fazenda da família Mendes faz hoje parte deste deserto verde que não produz mais alimento humano, mas apenas dinheiro e poluição.
E como se viu pelo histórico lido por André Mendonça em seu voto, estes ministros conhecem a injustiça e crueldades cometidas contra os povos indígenas ao longo da História. Se juntam, portanto, conscientemente aos genocidas do índio brasileiro. É de se perguntar aos guardiães de nossa Justiça: a invasão, o esbulho, o roubo das condições de vida de um povo prescreve? Por que não se pode fazer a Reforma Agrária de um latifúndio pertencente a uma só família, mas se pode proibir o povo Waimiri-Atroari de reivindicar o direito à posse do território que lhe foi roubado há 50 ou há 30 anos, pelo Estado Brasileiro e pela empresa Paranapanema? Que Justiça é esta?
Resumo da história: por volta de 1992, a Assembleia Legislativa do Amazonas (ALE/AM) instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Mineração. Na oportunidade, em abril daquele ano, presenciei o depoimento do Diretor da Paranapanema, Otávio Lacombe que afirmou alto e bom som: “Nós não abriremos mão da lei que conquistamos”. Sim, uma lei conquistada à custo da criação de fatos consumados, da invasão clandestina, de mentiras, de alteração da toponímia… estratégia já expressa na Carta de Pero Vaz de Caminha, no Tratado de Tordesilhas, pelos mamelucos e bandeirantes, pela Ditadura Militar de 1964-1985, continuada pelos agronegociantes e empresas de mineração, dos Romero Jucás e Lacombe. E este, aferrado à lei que conquistou, em prejuízo dos povos Tenharim e Waimiri-Atroari, explorando sem dó trabalhadores, apenas dois meses após o seu depoimento na ALE/AM, morreu em seu carro, na estrada de Avaré/São Paulo, desviando de um cachorro!
O Gilmar ainda tem chance de rever o seu voto!
Casa da Cultura do Urubuí (AM), 3 de setembro de 2023
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Povos indígenas marcham em direção ao STF, no dia 30 de agosto de 2023, para acompanhar votação sobre marco temporal. Foto: Hellen Loures/Cimi