Marco temporal: “O que está em jogo é se haverá demarcação de terras indígenas ou não”. Entrevista especial com Marco Antônio Delfino de Almeida e Rafael Modesto

A expectativa é que a tese do marco temporal seja afastada pelo Supremo Tribunal Federal; julgamento será retomado em 20 de setembro

IHU

“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, língua, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” É em torno deste artigo constitucional, que integra o Capítulo VIII – Dos Índios, da Constituição Federal, que gira a discussão e disputa interpretativa acerca do marco temporal, em votação no Supremo Tribunal Federal – STF.

A tese, que foi objeto de julgamento na Suprema Corte na semana passada, “é uma interpretação restritiva do artigo 231 da Constituição Federal e, consequentemente, uma limitação do direito constitucionalmente assegurado aos povos indígenas de acesso, reconhecimento e demarcação de seus territórios”, diz Marco Antônio Delfino de Almeida, procurador do Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul, ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo ele, na interpretação favorável ao marco temporal, “o direito dos povos indígenas a seus territórios estaria condicionado ao fato de que eles estivessem ocupando esses territórios por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988”.

Para Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, desde a promulgação da Constituição “prevaleceu o entendimento de que todas as áreas indígenas seriam demarcadas, inclusive aquelas de aldeamentos extintos por força de desapossamento forçado, inclusive com violência. Portanto, esta é uma discussão de longa data, vencida na Constituinte. Agora, o Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de repetir e replicar o que determinou a Constituinte de 88 e afastar essa tese ruralista”.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, os entrevistados explicam a origem jurídica desta disputa, as expectativas em torno do julgamento do STF, a ser retomado em 20 de setembro, e comentam os desafios acerca das indenizações das terras ocupadas por não indígenas. “Vai ficar pendente uma discussão importante sobre a indenização ou não aos pequenos agricultores. Esperamos que a discussão se restrinja à indenização de pequenos e médios proprietários que ocupam, indevidamente, as terras indígenas por culpa do ente federado da União, que entregou essas terras para os não indígenas”, pontua Modesto.

Até o momento, os ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Cristiano Zanin se manifestaram contra o marco. Nunes Marques e André Mendonça votaram a favor.

O marco temporal foi tema do debate “Ore Ywy. O direito à terra e à vida contra o Marco Temporal”, promovido pelo IHU na manhã de ontem, 04 de setembro. Participaram do evento virtual o advogado Ivo Cípio Aureliano Makuxi, a professora do PPG em Direito da Unisinos, Fernanda Frizzo Bragato, e o assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto.

Marco Antonio Delfino de Almeida é procurador do Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul. É graduado em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Campo Grande – Unaes e mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.

Rafael Modesto é advogado do Povo Xokleng e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.

Confira a entrevista.
IHU – O que é a tese jurídica do marco temporal? Qual sua origem jurídica?

Marco Antônio Delfino de Almeida – A rigor, de uma forma bem sucinta, a tese do marco temporal é, essencialmente, uma interpretação restritiva do artigo 231 da Constituição Federal e, consequentemente, uma limitação do direito constitucionalmente assegurado aos povos indígenas de acesso, reconhecimento e demarcação de seus territórios. Na visão das pessoas que defendem essa tese, o direito dos povos indígenas a seus territórios estaria condicionado ao fato de eles estivessem ocupando os territórios por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Ainda que, de uma forma mais atual, se busque o fundamento no voto que decidiu o famoso caso de Raposa Serra do Sol, que estabeleceu as condicionantes para o processo de demarcação daquela terra indígena, efetivamente a origem – o fundamento teórico do marco temporal – tem que ser buscado no Recurso Extraordinário n. 219.983. Nesse RE, o então ministro Nelson Jobim, depois de estabelecer algumas considerações sobre o processo constituinte, sustenta que o constituinte, a partir do parágrafo 1º do artigo 231, quando traz a expressão “terras tradicionalmente ocupadas”, teria desejado limitar e teria condicionado o significado da expressão ao fato de os indígenas estarem na posse da área. Textualmente, o recurso extraordinário diz que “há um dado fático necessário: estarem os índios na posse da área”. Essa seria a origem e, basicamente, o fundamento teórico da tese do marco temporal.

Fundamento e contradição
Um complemento necessário é que esta tese tem, no seu próprio fundamento, a sua principal contradição porque, a partir do momento em que estabelece uma interpretação gramatical restritiva do artigo 231, ela contraria normas extremamente conhecidas – e utilizadas de forma praticamente unânime – de interpretação do texto constitucional. Um dos princípios amplamente utilizados é o da máxima utilidade das normas constitucionais. Ou seja, devemos dar à norma constitucional o sentido que lhe conceda maior eficácia, isto é, ampla efetividade social. Esse princípio se aplica a toda e qualquer norma constitucional, em especial aos chamados direitos fundamentais, direitos humanos, que é o caso. Não há direito humano mais relevante, especialmente para os povos indígenas, do que o acesso ao território.

A partir do momento que esta interpretação, este princípio, é afastado, justamente por ocasião de proteção de grupos historicamente vulnerabilizados, verifica-se uma interpretação casuística que visa efetivamente denegar direitos de uma forma absolutamente parcial. Essa visão dialoga com o denominado “processo de colonização”. Ou seja, o processo à invasão não é um evento. O processo de obtenção e manutenção dos territórios espoliados dos povos indígenas não é um evento que ocorre de uma forma única e temporalmente isolada. Ele faz parte de uma estrutura que assegura que este processo seja efetivamente assegurado. A partir do momento que se verifica que interpretações e princípios de interpretação são afastados, nós temos efetivamente uma demonstração fática de como essa estrutura opera em um processo de denegação de direitos, especialmente dos povos indígenas.

Rafael Modesto – Quando falamos em marco temporal, imediatamente lembramos do caso Raposa Serra do Sol. De fato, foi o primeiro caso em que a tese do marco temporal apareceu no acórdão, inclusive na ementa do julgado, que é o resumo do acórdão. Mas esse debate vinha de longa data, desde a Constituinte, com outra nomenclatura, a saber, o chamado “fato indígena”, que foi substituído pelo termo “marco temporal”, que consiste no fato indígena, isto é, na presença indígena em determinada data, no caso, 05-10-1988, data da promulgação da Constituição.

Essa tese saiu vencida no processo constituinte. O texto do artigo 231 foi aprovado com 497 votos, salvo engano, contra 5, superando o dispositivo que disputava a melhor forma de dizer sobre o direito indígena, que transferia as terras dos indígenas a propriedades do Estado, assim como fizeram com as terras devolutas. Essa tese foi discutida e superada. Prevaleceu o entendimento de que todas as áreas indígenas seriam demarcadas, inclusive aquelas de aldeamentos extintos por força de desapossamento forçado, inclusive com violência. Portanto, esta é uma discussão de longa data, vencida na Constituinte. Agora, o Supremo Tribunal Federal – STF tem a oportunidade de repetir e replicar o que determinou a Constituinte de 88 e afastar essa tese ruralista.

IHU – O que está em jogo na votação desta matéria? Se aprovada, quais serão os efeitos da tese do marco temporal para as comunidades indígenas?

Marco Antônio Delfino de Almeida – O marco temporal será rechaçado. Essa tese não será aprovada e nós teremos que debater sobre o aspecto da indenização. Nos casos em que a União titulou áreas ou ratificou títulos em faixas de fronteiras – o que equivale a titular áreas porque a União substituiu uma titulação anulável pela sua própria titulação ao ratificá-las –, não há como não fugir do aspecto indenizatório. Isso porque o mesmo ente que reconhece responsabilidade constitucional pela demarcação de terras indígenas, por sua vez, titulou terras indígenas incidentes no mesmo espaço. Então me parece que há aí uma questão insanável e que deve ser resolvida pelo diálogo entre o artigo 231 e o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal.

Em relação à hipótese remota de aprovação do marco temporal, sou otimista e meu otimismo se funda na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Xucuru. Nesse caso, a Corte Interamericana, dentro do princípio que vige no âmbito dos direitos humanos, de aplicação da norma mais favorável ao ser humano, buscou o fundamento na nossa própria Constituição e na interpretação que o STF tem da Constituição Federal. A Corte entendeu que a interpretação do Supremo era muito mais favorável do que os instrumentos jurídicos existentes no plano internacional, notadamente a Convenção 169.

A partir do momento em que houver a aprovação do marco temporal, isso se inverte. Ou seja, a norma mais favorável ao ser humano passa a ser os instrumentos internacionais, que não têm limitação. Então aprovado o marco temporal, acarretará o seu afastamento no âmbito internacional, que é a consequente condenação do governo brasileiro a realizar o processo de demarcação. Ou seja, o mesmo processo que já vemos em outros países, como Paraguai, Guatemala, Belize. Isto é, decisões da Corte, determinando que ocorra o processo demarcatório, ocorrerão no Brasil. Não vejo como isso seja algo que vá, como é muito defendido, trazer algum tipo de instabilidade jurídica, uma vez que as normas internacionais são totalmente garantidoras dos direitos dos povos indígenas.

Rafael Modesto – O que está em jogo é se haverá a demarcação de terras indígenas ou não. Isto é, se as áreas reivindicadas pelas comunidades indígenas serão demarcadas e devolvidas às comunidades que delas foram expulsas. Com a aprovação do marco temporal, sem dúvida não haverá demarcação de terra indígena. A continuidade das demarcações depende de uma interpretação do Supremo que afaste esta tese. Muitas comunidades ficarão desterritorializadas se a tese do marco temporal for aprovada no Supremo. Imaginamos que 90% das comunidades que reivindicam demarcação, ou que estão com processo iniciado em alguma das fases ainda sem providência, não conseguirão provar a ocupação das terras em 1988 ou a disputa pela posse, seja pelas vias de fato, seja por uma ação judicial. Se assim for, os indígenas ficarão sem a devolução do seu território de ocupação tradicional. A demarcação depende de a Suprema Corte afastar a tese do marco temporal para que o Estado brasileiro cumpra a Constituição, segundo o Decreto n. 1.775, finalize as demarcações e devolva a posse das terras de onde foram expulsas as comunidades e suas respectivas usufrutuárias, que são comunidades indígenas.

IHU – Quais são os pontos de impasse entre os ministros do STF no julgamento desta matéria? Como avalia o modo como o tema está sendo discutido e votado até o momento?

Marco Antônio Delfino de Almeida – Examinando os votos já concedidos, verifica-se que, sendo extremamente otimista e contando com o rechaço da tese do marco temporal, o principal foco se volta à tese da indenização. Me parece que a tese trazida pelo ministro Alexandre de Moraes acarreta uma paralisação do processo de concessão de direitos. Ou seja, ela efetivamente equivale a uma “vitória de Pirro” [vitória obtida a alto preço, potencialmente acarretadora de prejuízos irreparáveis] para os povos indígenas porque, a partir do momento em que a indenização for algo condicional, obviamente sairemos de aspectos técnicos para aspectos orçamentários. Em vez de haver uma preocupação política com o impacto do reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, teremos uma limitação e uma pressão orçamentária para que esses direitos não sejam assegurados. Neste momento, me parece que este é o principal tema.

Obviamente, uma questão que já foi colocada é se este debate sobre o processo de indenização será travado no âmbito da repercussão geral ou no âmbito de um caso específico. Seguindo essa tese que o governo busca limitar, a indenização não seria pelo afastamento do artigo 231, mas pelo reconhecimento do chamado evento danoso. É o reconhecimento de que o Estado, entendido como União ou Estado membro, falhou em titular áreas que, posteriormente, foram reconhecidas como territórios indígenas.

Rafael Modesto – Aparentemente, ao que tudo indica, depois do julgamento nos dias 30 e 31 de agosto, em que os ministros, por maioria, votaram pelo afastamento da tese do marco temporal – até o momento tem 4 votos a 2 –, a expectativa é que se tenham, pelo menos, 8 votos contra o marco temporal. Acreditamos que a tese será afastada.

Vai ficar pendente uma discussão importante sobre a indenização ou não aos pequenos agricultores. Esperamos que a discussão se restrinja à indenização de pequenos e médios proprietários que ocupam, indevidamente, as terras indígenas por culpa do ente federado da União, que entregou essas terras para os não indígenas. O Supremo deveria colocar uma limitação no tamanho da propriedade a ser indenizada. Caberia uma indenização por evento danoso e não pela terra nua [1]. O impasse é se a discussão sobre indenização ocorrerá dentro da repercussão [do caso] – parece que sim – e, se sim, qual é a natureza da indenização que os ministros vão determinar como a que deve prevalecer.

Por exemplo, Moraes diz que a indenização deve ser pela terra nua, com base no que está previsto no parágrafo 6.231. Mas o parágrafo 6.231 impede a indenização por terra nua expressamente. Tanto que a jurisprudência anterior a 1988 determina – a qual é bastante sedimentada na Corte – que não cabe indenização neste caso porque a Constituição veta. É permitida outra via indenizatória, a do artigo 37, parágrafo 6º, por ato ilícito, evento danoso. Ou seja, pela titulação e estímulo à posse das terras pelos estados federados ou pela União, gerando o direito de indenização àqueles que, porventura, de boa-fé, vieram a ocupar as terras indígenas por culpa exclusiva da União.

Defendemos a tese de que, se for o caso das indenizações, que sejam feitas por uma via aberta pela Constituição e não segundo o que o ministro Moraes pretende. Não somos contra a indenização, mas ela também não pode ser prévia; ela precisa correr à parte do processo de demarcação – antes ou depois de finalizá-lo. A indenização não pode tornar o processo administrativo de demarcação das terras indígenas mais moroso, assim como a proposta do ministro Moraes sugere.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Rafael Modesto – É importante limitar o tamanho da propriedade, limitar uma quantidade de hectares que não beneficie os grandes proprietários rurais, mas os pequenos agricultores. Também é necessário que o Supremo defina em que momento a comunidade poderá tomar posse da terra. A proposta seguida pelo [ministro Luís Roberto] Barroso é que, logo que o ministro da Justiça declare a terra indígena como área tradicionalmente ocupada, ocorra o apossamento ou a devolução das terras às comunidades indígenas que delas foram compulsoriamente retiradas. Isto é, a partir do momento da publicação da portaria, a comunidade já pode tomar posse da terra e o Estado brasileiro tem que fazer uma desintrusão e, à parte do processo de demarcação, ocorreriam os procedimentos administrativos ou até judiciais, requerendo as indenizações.

Nota:
[1] Considera-se terra nua o imóvel rural, por natureza, que compreende o solo com sua superfície e respectiva floresta nativa, despojado das construções, instalações e melhoramentos, das culturas permanentes, das árvores de florestas plantadas e das pastagens cultivadas ou melhoradas, que se classificam como investimentos (benfeitorias).

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