Formas literárias na Bíblia? Por frei Gilvander Moreira

Estamos no mês da Bíblia: setembro. Tempo propício, kairós, para nos dedicarmos à leitura bíblica prioritariamente de forma comunitária com interpretação sensata e libertadora. Como todos os textos sagrados, a Bíblia é sagrada, mas escrita por pessoas humanas inspiradas. Portanto, a Bíblia também é literatura. Disso decorre que quanto mais compreendemos os meandros das formas literárias das expressões humanas mais aptos/as estaremos para compreender com sensatez os textos bíblicos ou outro texto sagrado. Há grande variedade de formas de comunicação humana, desde a linguagem dos sinais, símbolos, que são traduzidos nas diversas formas literárias presentes também na Bíblia. O importante mesmo é a Palavra de Deus, no presente, que está envolvida nas formas literárias. Decifrá-las é imprescindível para um bom entendimento da Palavra de Deus que está na Bíblia e está nos acontecimentos da atualidade e na natureza.

Um exemplo, para ilustrar: a esposa, no dia do aniversário do seu esposo limpou a casa, perfumou-a, colocou flores espalhadas pela casa, escreveu algumas frases de carinho e amor, vestiu-se elegantemente para recebê-lo ao chegar do trabalho. Diversas pessoas passaram pela casa antes do marido chegar em casa, mas não perceberam que algo sublime e profundo estava acontecendo. Quando o marido chegou, ao abrir a porta, foi logo contagiado pelo ambiente acolhedor, belo, harmonioso. Ele sentiu-se acolhido e amado pela esposa. Não foi necessário nem mesmo dar-lhe os parabéns. Ele entendeu o sentido dos gestos e da PALAVRA que a esposa queria lhe dizer. Todo o arranjo era como o gênero literário na forma diversificada nas cores, movimentos, luzes, beleza.

Assim também os textos bíblicos têm seus gêneros e suas formas literárias para atrair a nossa atenção e abrir o nosso desejo de conhecer mais e mais a Palavra de Deus a partir da Bíblia, entendendo-a melhor nas suas formas e nos seus gêneros literários presentes na Bíblia. Muitas das formas literárias dos textos bíblicos já são conhecidas e também usadas na nossa linguagem.

Com o conhecimento das formas e dos gêneros literários pouco a pouco a leitura de qualquer texto vai chamar mais a sua atenção e despertar maior interesse de crescer nesse conhecimento. Os textos bíblicos são como uma pessoa: deseja ser entendida naquilo que é peculiar nela. Quer ser respeitada naquilo que ela é e faz! Assim o texto é como a palavra da pessoa. Se não entendemos o que ela quis dizer nas suas diversas formas e no seu gênero literário usado, não podemos colher a riqueza de sua mensagem. Por exemplo, uma profecia precisa ser lida e interpretada como profecia, um Salmo faz parte do gênero poético e sapiencial, precisa ser lido e entendido como poesia e sabedoria; uma alegoria ou um relato de milagre não podem ser interpretados como se fossem narrativas históricas e assim por diante.

No dia 15 de julho de 2000, durante o 10° Encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em Ilhéus, na Bahia, foi lida uma carta-mensagem das CEBs para todas as comunidades cristãs do Brasil. Os participantes gostaram muito. Depois da leitura da carta-mensagem, subiu ao palco um repentista nordestino e ele apresentou a mesma carta em forma de cordel, com a expressão da espontaneidade nordestina. Foi aplaudido calorosamente por milhares de pessoas que estavam presentes na Celebração Final do 10º Intereclesial das CEBs. A forma ‘cordel’ com que foi veiculada a mensagem tocou muito mais, do que a simples leitura do texto feito de forma narrativa. Eis a importância e a força da FORMA de expressão e de um gênero literário, na hora da interpretação de um texto.

As línguas são veículos de comunicação por excelência entre as pessoas. Cada povo tem a sua língua, muitas vezes mais de uma língua, com ou sem dialetos. A cultura de um povo é veiculada também pela língua. Traduzir um texto de uma língua para outra é um processo difícil e um grande desafio. Não basta traduzir palavra por palavra, é preciso dar sentido. Uma boa tradução exige dupla fidelidade: ao autor, a língua na cultura original; aos leitores e às leitoras, na língua e cultura receptora. As dificuldades do processo de tradução fizeram nascer um provérbio popular: “Todo tradutor é um traidor”. As traduções muitas vezes não conseguem transmitir o sentido original do texto, por falta de palavra ou conceito preciso e também muitas vezes por ignorar a forma e o gênero literário do texto a ser traduzido. E também pela opção ideológica do tradutor.

A linguagem é viva e dinâmica e não é algo estático que não muda. O sentido das palavras, muitas vezes, não é unívoco, com frequência, palavras e conceitos, caem em desuso, novas palavras e novos conceitos são criados e recriados. A mesma realidade passa a ser expressa por palavras diferentes e pode adquirir também sentidos diferentes, dependendo do contexto geográfico em que ela é usada. Por exemplo, a palavra embaraçada, no nordeste pode significar gravidez – também na língua espanhola -, enquanto no sul do Brasil tem o significado da pessoa estar atrapalhada.

A língua portuguesa tem atualmente em torno de 450 mil palavras. Estima-se que todo ano surjam de três a quatro mil palavras novas e desapareçam outras três mil e quinhentas palavras. Do mesmo modo, com o tempo, pode mudar também o sentido de muitas palavras, o vocabulário, o tipo de escrita, a pronúncia, a acentuação etc. E palavras diferentes, em regiões diferentes, podem também ter significados semelhantes. O português arcaico é muito diferente do português moderno. Por exemplo, não se escreve mais farmácia com ph (pharmacia) como antigamente. A internet está também mudando a língua portuguesa, injetando um número cada vez maior de palavras da língua inglesa e também com abreviações de palavras.

Nós expressamos os nossos pensamentos e sentimentos de muitas formas: por meio da música, pintura, escultura, arquitetura, gestos, sinais, palavras, mímica, na linguagem de libra e outras. Mas é pela forma literária, de forma oral ou escrita, que se consegue revelar o que se pensa e se sente. Não foi diferente com o povo da Bíblia, cujos escritos chegaram até os nossos dias por meio da palavra humana escrita. Deus serve-se de homens e mulheres para transmitir a sua mensagem às pessoas. Por isso, faz-se necessário conhecer os modos de pensar e expressar dos povos da Bíblia, que para eles eram Palavras sagradas, reveladas para eles, pelo Deus, mistério de infinito amor, e sob a sua revelação e inspiração. Portanto, compreender as formas literárias é imprescindível para interpretarmos de forma sensata e libertadora os textos bíblicos.

Sobre o autor:

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG

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