Ignacio Ramonet (Espanha, 1943) é um dos mais reconhecidos jornalistas e teóricos da comunicação do mundo e através de seus livros e conferências difundiu o seu pensamento crítico sobre o mundo, o poder e os meios de comunicação.
A entrevista é publicada por El Periódico/Tradução é do Cepat, no IHU
Entre 1990 e 2008, dirigiu a edição francesa do Le Monde diplomatique e fundou o Media Watch Global (Observatório Internacional dos Meios de Comunicação) e a organização ATTAC, impulsionadora do Fórum Social Mundial de Porto Alegre.
Leciona na Sorbonne de Paris. Nesta entrevista, Ramonet aborda o fenômeno das fake news, os desafios trazidos pela inteligência artificial e as mudanças geopolíticas de um tempo turbulento.
Eis a entrevista.
A inteligência artificial abre um mundo de desafios.
Sim, obviamente terá impactos em setores que até agora se beneficiavam das novas tecnologias. Os editores estão muito preocupados porque embora os livros continuem tendo assinaturas humanas, em parte, já são escritos pela inteligência artificial. Nos Estados Unidos, alguns dos títulos de ficção científica mais vendidos são de inteligência artificial e vão assinados assim.
Em Hollywood, e por isso estão em greve, a inteligência artificial faz roteiros melhores, no sentido de que os faz de modo mais rápido, mais diversificado. E no jornalismo já existem muitos gêneros, como a meteorologia e os resumos dos eventos esportivos, que se servem da inteligência artificial.
Pode acabar com os meios de comunicação como os conhecemos hoje?
O jornalismo não pode ser substituído. Toda vez que muda a tecnologia, surge o medo de que morra. Contudo, não resta dúvida de que não será necessário dedicar tanto tempo a muitos gêneros jornalísticos, pois a inteligência artificial poderá assumir as ações mais repetitivas.
No caso da investigação, a inteligência artificial ajudará a construir o relato, a narrativa jornalística, inclusive, pode substituir o narrador, mas os ingredientes têm que ser oferecidos pelo jornalista.
Para onde acredita que os meios de comunicação estão caminhando?
Hoje, estão sendo substituídos pelas redes, mas isso implica a inclusão de notícias falsas – as fake news –, irracionais e a pós-verdade. A imprensa, a escrita, mas também a digital, tem cada vez menos leitores. E estar bem informado é algo de elite. Para as pessoas pouco importa, porque uma notícia falsa tem o mesmo valor que uma notícia verdadeira, ou até mais.
As notícias falsas circulam melhor porque são imponentes, surpreendem mais, atraem mais a curiosidade. Está cientificamente comprovado. E isso acontece principalmente quando a sociedade está polarizada, as pessoas se comportam como em um campo de futebol. Se você vai ver o Barça, por pior que jogue, não vai aplaudir o time adversário, vai aplaudir o seu time. Você não vai se comportar de modo racional, mas, sim, de maneira fanática ou de clã. E isso acontece com muitas informações.
O que as autoridades podem fazer para limitar a propagação de fake news, sem que isso atente contra a liberdade de expressão?
É aí que reside a dificuldade. Em muitos países, foram tomadas medidas e, inclusive, foram aprovadas leis. Em alguns regimes autoritários, como em Singapura, se ficar comprovado que uma notícia é falsa e que vai contra a nação, o autor fica exposto a uma pena de prisão. Contudo, em uma democracia, é muito difícil limitar a liberdade de expressão, ainda que, evidentemente, não permita tudo.
Em seu mais recente livro, La era del conspiracionismo: Trump, el culto a la mentira y el asalto al Capitolio, analisa justamente o fenômeno das fake news. Como o conspiracionismo conseguiu abrir passagem e fazer com que cada vez mais pessoas acreditem nas mentiras criadas para fins políticos e defendam teorias malucas como as do QAnon?
QAnon é a coisa mais insólita que se pode imaginar. Contudo, neste verão, em que foram estreados Oppenheimer, Barbie e o último de Missão Impossível, o filme que mais sucesso teve nos Estados Unidos é o que desenvolve as teses do QAnon, que diz que os Estados Unidos e muitos outros países são governados por uma seita pedófila, cuja principal preocupação é sequestrar crianças para devorá-las, além de abusar sexualmente delas, com o objetivo de consumir um hormônio que garanta a juventude eterna.
E há milhões de pessoas que acreditam em algo tão louco quanto isso. Por quê? Acreditar no incrível é próprio da fé. Não há fé que acredite em coisas cartesianas, isso não existe. Para isso existe a ciência. Contudo, as pessoas não se mobilizam com fanatismo por algo crível, mas por algo incrível.
Existe alguma vacina contra o conspiracionismo?
Desde o século XVIII, pensávamos que a vacina era a ciência, a lógica, o racionalismo. No entanto, isso está desabando. Até agora, pensava-se que, como disse Goebbels, uma mentira repetida mil vezes se torna verdade. Porém, hoje, paradoxalmente, isso se inverteu. Hoje, uma verdade repetida mil vezes se torna mentira.
Por que uma pessoa como Milei, na Argentina, vence as eleições primárias com as aberrações que está dizendo? Por que Trump, Bolsonaro e Duterte venceram? Por que a extrema direita está em ascensão? Como as pessoas podem seguir o Vox na Espanha? Precisamos entender que é isso que está funcionando hoje.
Recentemente, Trump foi indiciado por encorajar estas mentiras e estimular seus seguidores a invadir o Capitólio. Os processos que terá de enfrentar poderão impedi-lo de concorrer à presidência novamente?
Pelo que se está demonstrando, cada vez que o condenam, recebe mais publicidade e arrecada mais apoios. Com a foto de sua ficha policial, fez canecas e ganhou 7,5 milhões de dólares, em 24 horas. Além disso, a Constituição americana estabelece apenas três condições para ser presidente: ter nascido nos Estados Unidos e ser de nacionalidade americana, ter vivido nos Estados Unidos ao menos por 14 anos e ter mais de 30 anos. Trump cumpre as três.
Agora, uma série de juristas dizem que se ele for condenado na Geórgia, onde é acusado de crime organizado para derrubar e subverter a Constituição, seria possível recorrer a uma emenda ao artigo 13 da Constituição, que foi introduzida em 1868, três anos após o fim da Guerra de Secessão, para evitar que ele seja candidato.
Essa emenda diz que nenhuma pessoa que tenha participado ou sido condenada por subversão, por ser golpista, pode se apresentar como candidato. Foi redigida para evitar que os confederados pudessem ser presidentes. Outros juristas dizem que mesmo que isso funcione, se ele for impedido de ser presidente, isso levará a uma guerra civil, pois metade dos americanos está a seu favor.
Em uma entrevista recente, criticou duramente a cobertura informativa sobre a guerra na Ucrânia.
Basta abrir os olhos. Não sabemos nada sobre o que está acontecendo. Não estou dizendo que os meios de comunicação no Ocidente não tenham razão, eu mesmo sou contra a invasão da Ucrânia e penso que é uma agressão, mas o problema é que não sei o que está acontecendo, pois há uma espécie de censura geral.
Só é permitido falar bem de nossos amigos ucranianos, que nunca fazem nada de ruim, que são perfeitos, que travam uma guerra limpa, que não matam ninguém que não tenham que matar. Isso é um conto de fadas.
Algo assim nunca havia acontecido, nem mesmo durante a guerra no Iraque, quando em todos os países existiam pessoas que eram a favor e contra. Aqui não, há unanimidade, embora pensássemos que com a multiplicação das redes sociais teríamos mais pluralismo. A guerra na Ucrânia é a demonstração de que hoje, com redes ou sem redes, somos mais manipulados do que nunca.
Recentemente, o grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) anunciou que está abrindo as suas portas a novos membros. Considera que esta ampliação representa um desafio à hegemonia do Ocidente?
Estamos assistindo ao que poderíamos chamar de desocidentalização da política internacional. Por um lado, ninguém mais faz referências à Organização das Nações Unidas porque está totalmente ausente e silenciada, não funciona. Além disso, desde a guerra na Ucrânia, o mundo se dividiu em dois, a globalização feliz terminou.
E por último, vemos como para a imensa maioria dos 195 países do mundo não faz diferença as sanções dos Estados Unidos contra a Rússia, devido à guerra. Não as respeitam. Os Estados Unidos não são mais o império.
Além do fim da globalização, também pensa que o neoliberalismo acabou e que o capitalismo está buscando um novo modelo. Para onde vamos?
O capitalismo tinha como modelo a globalização, que durou 40 anos, até 2008, quando a crise financeira demonstrou que a riqueza não podia mais ser criada só através das finanças. Por outro lado, o modelo neoliberal que se baseava na transferência de unidades de trabalho para países do Sul, onde a mão de obra era barata, está desaparecendo.
Agora, existe uma vontade de reindustrialização, que é o modelo Biden. Contudo, não será tão fácil assim porque a reindustrialização supõe encontrar trabalhadores especializados, e não existem. As universidades não produzem engenheiros suficientes.
Em sua opinião, o socialismo é o futuro da humanidade, mas algumas tentativas de aplicá-lo, decididamente, fracassaram. Como considera que esse modelo deveria ser aplicado?
Essencialmente, foram os comunismos autoritários que fracassaram. Fracassaram em todos os lugares. Contudo, o que deve ser entendido por socialismo? Uma sociedade mais pacificada, em que o ser humano é levado em conta e em que a decisão, seja ela qual for, é mais coletiva.
Durante a pandemia de covid-19, descobriu-se que não era mais possível continuar vivendo como vivíamos, porque os 40 anos de neoliberalismo tinham desmantelado nossas sociedades. Agora, estamos em um momento em que duas dinâmicas muito fortes atravessam a nossa sociedade: a ecologista e a feminista. Estas só podem encontrar maior energia e maior tradução na transformação rumo a uma sociedade mais aberta e não a uma sociedade autoritária, machista, capitalista à antiga. É assim que vejo, mas é bastante utópico.