“É preciso radicalizar o processo participativo e garantir o controle social nos próprios territórios que são objeto das políticas. Um dos problemas do PAC é que ele ficou na mão das empreiteiras. É preciso recuperar o controle do setor público e o controle social”, diz o pesquisador do Observatório das Metrópoles
Por: Patricia Fachin, em IHU
“A urbanização brasileira tolera a informalidade dos pobres para não ter que resolver o problema da moradia”. A declaração de Adauto Cardoso, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, insere-se no diagnóstico de que a política habitacional brasileira segue a lógica de programas e não da instituição de processos. Para ele, “a emergência da política de resultados” é um dos problemas centrais no tratamento da questão no país.
“Quando grandes programas, como o PAC, surgem, busca-se aproveitar o tempo político para ter resultados. É importante ter resultados. Como o governo vai ficar gastando tanto dinheiro público durante muito tempo sem ter evidência de resultado? Mas o PAC é um pacote de projetos; não tem um plano por trás. Não tem um grande plano que diga onde estão as áreas mais precárias e quais são as melhores maneiras de tratar essas áreas ou como criar mecanismos para definir políticas que sejam sustentáveis ao longo do tempo, que possam se manter perenes e, aí, sim, ir reconstruindo as cidades, as periferias e as favelas, assentando habitações que são extremamente precárias, fazendo melhorias naquelas que são passíveis desse tipo de atuação, e regularização fundiária”, explica.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Cardoso lamenta o fato de os programas habitacionais ainda não terem legitimidade política. “O fato é que até hoje a habitação não conseguiu ter legitimidade política efetiva para se tornar uma política de Estado. Enquanto for assim, continuaremos com os surtos de políticas habitacionais”.
Adauto Lúcio Cardoso é graduado em Arquitetura e Urbanismo e mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
IHU – À luz das suas pesquisas sobre os impactos do PAC 1 e do PAC 2 nas metrópoles e favelas e da atual situação dessas regiões, o que significa o anúncio de um novo PAC na atual conjuntura?
Adauto Cardoso – Em primeiro lugar, o anúncio do PAC e, dentro do PAC, da retomada do Programa Urbanização de Favelas sob a responsabilidade da nova Secretaria Nacional de Periferias, é realmente importante e esperado. Mas devemos lembrar que dede 2015 não houve novos contratos para a urbanização de favelas com financiamento do governo federal. As contratações do PAC 2 acabaram em 2014. Depois desse período, foram feitos vários ajustes e cancelamentos de contratos de obras que não estavam em andamento.
O anúncio do PAC 3 é importante também porque a Secretaria Nacional de Periferias tem buscado incorporar as críticas feitas ao PAC 1 e ao PAC 2, apresentadas no sentido de aperfeiçoá-lo. Estão tentando estabelecer algumas mudanças no funcionamento do programa. É importante ressaltar a retomada do programa e a sensibilidade da Secretaria em ajustá-lo.
Lamentamos, no entanto, que os recursos anunciados são muito pequenos. Sabemos que há dificuldades em relação ao quadro econômico e aos limites do financiamento público para várias políticas públicas, mas, de fato, o que foi anunciado é muito pouco, inclusive se compararmos com o que foram as contratações do PAC 1 e do PAC 2. Teremos investimentos pequenos ao longo dos próximos quatro anos, e a consequência é que serão feitos poucos assentamentos, considerando a necessidade nacional.
É lamentável que o programa tenha sido elaborado sem a retomada imediata dos espaços de participação, para que dessa vez o PAC Favela fosse implementado com controle popular, com participação, como gestão democrática. Isso já era um problema da outra vez porque o PAC foi lançado fora dos esquemas de participação estabelecidos no Conselho das Cidades (ConCidades) e no Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (Conselho Gestor FNHIS). Ele foi executado à revelia dos fóruns de participação. É uma pena que o PAC 3 tenha sido anunciado antes de ser restaurado o Conselho das Cidades. O mesmo pode ser dito do Minha Casa, Minha Vida. Todo o programa foi formulado sem que fosse realizado um fórum formal de participação. Houve conversas da equipe do governo federal com os movimentos de moradia; a Secretaria Nacional de Periferias tem discutido propostas, mas não houve fóruns formais de participação.
IHU – O senhor, juntamente com outros pesquisadores, apresentou propostas para a reforma urbana e para o PAC. Em que consistiram?
Adauto Cardoso – A partir da avaliação feita em um conjunto de universidades do país, propomos recomendações na formulação do programa do governo do Lula, discutimos com a equipe de transição ano passado e, neste ano, apresentamos algumas propostas. Tivemos um diálogo importante com o Fórum Nacional da Reforma Urbana, que tinha recebido uma demanda da Secretaria Nacional de Periferias para apresentar propostas. A partir daí, formulamos um conjunto de propostas que está no documento encaminhado à Secretaria.
Controle social
Um dos pontos fundamentais sugeridos é a questão da participação no sentido de poder avançar no controle social sobre as grandes definições da política, sobre investimento, sobre ter uma participação maior no nível local. Ou seja, que os projetos pudessem ser desenvolvidos em uma forma de cogestão entre representação de grupos locais em conjunto com as instâncias governamentais que coordenam os projetos, isto é, as prefeituras responsáveis pela implementação dos projetos. É preciso radicalizar o processo participativo e garantir o controle social nos próprios territórios que são objeto das políticas. Um dos problemas do PAC é que ele ficou na mão das empreiteiras. É preciso recuperar o controle do setor público e o controle social.
Programas multissetoriais
O segundo ponto que encaminhamos foi na direção de ter programas multissetoriais. O PAC era voltado para a infraestrutura e, eventualmente, dependendo da prefeitura, era possível implementar outras ações, com a criação de um centro social ou alguma ação nas áreas da saúde e da cultura. Sugerimos que esses programas sejam voltados também às questões ambientais e da saúde, que são fundamentais a partir da experiência da Covid-19 e do enfrentamento dos riscos gerados por enchentes e deslizamentos. Espera-se que esses programas incorporem, de forma muito mais forte, essas duas dimensões. A questão sanitária é fundamental, mas não vem sendo incorporada aos programas de urbanização, apesar de várias ações poderem ser desenvolvidas como preparação aos territórios e prevenção contra surtos de doenças em vários níveis.
Outro ponto sugerido diz respeito à importância de financiar não só projetos específicos, com princípio, meio e fim, mas processos que podem ter uma duração mais longa. Esse é um ponto fundamental que muda a lógica do PAC, que é uma lógica de projeto e não de processos de duração e permanência.
IHU – Em seu artigo publicado no estudo “Urbanização de Favelas no Brasil. Um balanço preliminar do PAC”, o senhor diz que “confirma-se a percepção de que as urbanizações nunca terminam. Em muitos casos, trata-se de mais uma camada de urbanização”. Pode explicar essa ideia à luz da proposta de elaboração de programas que visem processos e não projetos, uma vez que muitas obras são feitas, mas, ao mesmo tempo, a demanda por moradia e reforma urbana é crescente? Qual a diferença entre pensar o PAC como processo e não como projeto?
Adauto Cardoso – Tem dois aspectos aí. O primeiro é que, mesmo quando a obra e o projeto terminam e se concluem todas as etapas previstas – o que é raro acontecer –, os territórios precisam ser acompanhados, revistos e refeitos ao longo do tempo. O território se desenvolve, muda, algumas áreas crescem, outras, não. O risco que às vezes está previsto em uma determinada área pode não acontecer e situações não previstas acontecem. Então é preciso estar sempre reinvestindo e refazendo a infraestrutura para adequá-la à própria mudança. As favelas crescem; elas não param de crescer e não vão parar. Por isso precisamos de outros tipos de ações.
No financiamento de um processo, as ações podem ser mais pontuais, acompanhando o processo de crescimento e desenvolvimento das favelas. O que acontece é que se encerra um projeto e, depois de 5 ou 10 anos, surgem novas demandas, seja porque algumas áreas não foram tratadas, seja porque elas passam a ficar precárias ou ainda porque a favela cresce e surgem demandas que antes não existiam.
Ao analisar os registros das favelas cariocas, percebemos que várias recebem investimentos ao longo do tempo, mas, usualmente, os projetos não são concluídos. Os contratos estabelecidos a partir da lógica de projetos, com início, meio e fim, não reconhecem a complexidade da urbanização das favelas. Eles são tratados como se fossem relativos a uma obra comum a ser feita em um terreno vazio, em que se começa do zero e onde todas as variáveis são controladas. Na favela não é assim. É muito comum precisar mudar o projeto no meio do caminho. Isso acontece com frequência. Por exemplo, quando se faz uma contenção em um determinado lugar, de repente é necessário fazer contenções em muitos outros pontos. Isso acaba gerando mudanças no projeto e, quando chegam ao fim da obra, não se fez muita coisa que precisava ser feita ou se fez de forma incompleta. As obras nunca terminam porque os projetos não dão conta de tratar tudo que é necessário dentro da favela. As pessoas não têm consciência de que os projetos não dão conta de tudo.
Nesse sentido, problemas permanecem, como a precariedade habitacional, áreas com muita densidade, com becos estreitos, com problemas de ventilação e iluminação, problemas de riscos que não foram detectados ou não foram sanados por falta de recursos. Ou seja, permanecem muitas situações precárias mesmo quando o projeto mais ou menos é concluído.
Acompanhamos a situação de alguns municípios que foram beneficiados pelo PAC. Por exemplo, em Belo Horizonte a prefeitura fez um contrato conforme o qual tinha que dar uma contrapartida de 20% e, no fim, para conseguir concluir a obra, precisou aumentar a contrapartida para 100%. O mesmo valor que o governo federal investiu, o município teve que investir para poder concluir a obra. Como o contrato é rígido e há limites do que se pode financiar, se há mudanças no projeto, não dá tempo de renegociar o contrato e fazer um novo financiamento, então se faz uma adaptação e a prefeitura, quando tem recursos, entra com uma complementação. Quando a prefeitura não tem recursos, problema que aconteceu muitas vezes no PAC, surge o problema de não conseguir executar o contrato. Isso implica renegociações e a situação fica mais difícil porque, quando a obra é retomada, três anos depois da obra parada, a realidade mudou completamente.
IHU – Como as propostas sugeridas ao governo foram recebidas?
Adauto Cardoso – Ainda estamos na expectativa. Pelo que sei, será lançado um programa para contemplar novas favelas. Para termos uma ideia, o Programa Periferia Viva, que está sendo lançado, tem uma previsão de recursos de R$ 2 bilhões para os próximos quatro anos. É pouca coisa. Parece que vão financiar apenas algumas ações exemplares e experimentar novas metodologias para financiar, nesses quatro anos, 55 projetos. Existem muitas obras do PAC 1 e do PAC 2 que ficaram paradas e podem ser concluídas. O governo está fazendo uma revisão dos contratos que ficaram paralisados e das obras que podem ser retomadas. Uma parte dos recursos é destinada à construção de conjuntos habitacionais para reassentar a população que até hoje vive com o recurso de aluguel social. Estava prevista a construção de conjuntos habitacionais para essa população através do Minha Casa, Minha Vida, mas isso acabou não sendo feito desde que iniciou o governo Temer e depois o governo Bolsonaro.
No PAC 3, é interessante e pode ser significativa a possibilidade de criar um outro modelo de intervenção e, a partir daí, um novo modelo institucional, administrativo e técnico para desenvolver, mais efetiva e democraticamente, estes programas. No momento, estamos com um legado de precariedade que se acumula com o tempo, com a pobreza e os impactos que tivemos nos últimos anos em função da ausência de políticas públicas.
IHU – Como avalia a proposta de parceria público-privada do PAC 3 na resolução dessas questões que o senhor levanta?
Adauto Cardoso – Não vejo como a parceria público-privada no campo da urbanização das favelas possa trazer benefícios porque não há mecanismos que criem incentivos para que o setor privado possa investir na área. A parceria público-privada é possível quando se faz um investimento em infraestrutura; ela dá um ganho de potencial construtivo. Eventualmente, alguma das operações urbanas pode contemplar recursos para a urbanização de favelas em troca de algum tipo de benefício urbanístico, mas não sei se isto é viável. De qualquer modo, se isso acontecer, será algo localizado.
Em Belo Horizonte, por exemplo, definiram perímetros para as operações urbanas e incluíram, dentro dos perímetros, as áreas de favelas. Essa era uma forma de ter algum tipo de recurso do setor privado para atuar nas favelas. Fora isso, não dá para contar com recurso privado porque é necessário recurso do orçamento. Talvez, uma possibilidade seja o governo federal fazer acordos com bancos multilaterais, como Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID ou Banco Mundial, para conseguir recursos e turbinar o programa. Isso não é impossível, mas não sei de nenhuma negociação.
IHU – Um dos grandes problemas que o país observou durante a pandemia de Covid-19 foi a precarização das moradias em regiões periféricas. Na sua pesquisa sobre moradia à luz do PAC 1 e do PAC 2, destaca-se a existência de “assentamentos precários”, que não são apenas as favelas, mas “loteamentos clandestinos ou irregulares, conjuntos habitacionais irregulares ou degradados, cortiços e ocupações”. A partir dessa realidade, o PAC é o melhor desenho de política pública para atender às necessidades das pessoas? Quais as vantagens e desvantagens de incluir as questões relativas à urbanização e à moradia dentro de um programa maior como o PAC?
Adauto Cardoso – A urbanização brasileira, na forma como se desenvolveu – com tolerância à informalidade decorrente da concentração dos investimentos em urbanização em áreas mais favorecidas e mais ricas da cidade –, tolera a informalidade dos pobres para não ter que resolver o problema da moradia. Isso gerou um déficit estrutural e uma precariedade habitacional estrutural que passa por diversos níveis, inclusive pelos conjuntos habitacionais. Muitos deles, desde o tempo do Banco Nacional da Habitação – BNH, nunca foram regularizados. As pessoas até hoje não têm título de propriedade. Houve muitos problemas no decorrer do processo: pessoas não conseguiram pagar os imóveis e os venderam informalmente, e quem mora nos apartamentos hoje não foi quem os comprou originalmente. A regularização fica difícil porque tem uma série de problemas, sem falar da situação dos loteamentos e cortiços. Existem vários níveis de precariedade.
Se fôssemos pensar essas questões de forma a resolver o problema, a primeira coisa a ser feita é um planejamento mais claro para cada cidade e metrópole. É preciso mapear onde estão as áreas mais precárias, criar e manter um programa de melhoramento dessas áreas dentro de um plano geral. Infelizmente, não temos isso nas cidades brasileiras, contra o esforço iniciado pelo Ministério das Cidades em 2005, que tentou criar planos locais de habitação e interesse social em um primeiro momento. Não existia nem uma metodologia para fazer estas coisas. Havia uma precariedade de dados também porque as prefeituras não têm todos os dados necessários.
Outro problema é que quando grandes programas, como o PAC, surgem, busca-se aproveitar o tempo político para ter resultados. É importante ter resultados. Como o governo vai ficar gastando tanto dinheiro público durante muito tempo sem ter evidência de resultado? Mas o PAC é um pacote de projetos; não tem um plano por trás. Não tem um grande plano que diga onde estão as áreas mais precárias e quais as melhores maneiras de tratar essas áreas, ou como criar mecanismos para definir políticas que sejam sustentáveis ao longo do tempo, que possam se manter perenes e, aí, sim, ir reconstruindo as cidades, as periferias e as favelas, assentando habitações que são extremamente precárias, e fazendo melhorias naquelas que são passíveis desse tipo de atuação, além da regularização fundiária.
Proeminência do Minha Casa, Minha Vida
Do modo como enxergo a situação da urbanização e da moradia, seria preciso termos um plano. O esforço do Ministério das Cidades de fazer isso foi atropelado pelo Programa Minha Casa, Minha Vida, que virou uma política que é, praticamente, a política habitacional do país. A proeminência política do Minha Casa, Minha Vida foi muito prejudicial para a política urbana e habitacional porque perdemos a dimensão do longo prazo e do planejamento. A demanda por moradia é enorme e, hoje, existem problemas graves relativos ao envelhecimento da população, que necessita de habitação adequada. Ao mesmo tempo, existem muitas crianças e é preciso habitação adequada para elas. É um momento difícil e mais difícil ainda por causa da precariedade existente.
Em algum momento, precisaremos elaborar um planejamento mais efetivo, criar um sistema institucional em que as prefeituras se capacitem para atuar na habitação, de modo que a política habitacional seja uma política de Estado, não de governo; não um programa que o governo Lula vai lançar, mas uma política permanente. Na área habitacional, precisamos chegar no mesmo patamar da área da saúde. Com todos os problemas, o Sistema Único de Saúde – SUS conseguiu resistir ao governo Bolsonaro. A saúde e a política de educação são reconhecidas como políticas de Estado. É necessário que a habitação chegue nesse nível.
No Rio de Janeiro, os conjuntos habitacionais Faixa I do Minha Casa, Minha Vida, feitos na Zona Oeste, estão degradados e precisam de reformas. As áreas comuns dos condomínios foram degradadas. As obras do Minha Casa, Minha Vida têm problemas de técnica construtiva, não têm tanta durabilidade e precisam de manutenção. Qualquer casa ou condomínio precisa de manutenção, mas, sendo áreas privadas, o governo diz que não pode entrar para fazer manutenções. As pessoas que vivem nestes condomínios recebem até três salários-mínimos. Como elas irão se cotizar para fazer uma reforma no condômino? Elas não têm condições. É necessário haver uma política pública de manutenção de conjuntos habitacionais porque, se as pessoas não têm dinheiro, o poder público precisa fazer algo. Enquanto se mantiver uma situação de pobreza, de precariedade, continuaremos precisando de intervenção pública. Muitas prefeituras que tinham competência técnica se sentem desmobilizadas por causa do Minha Casa, Minha Vida.
É preciso criar uma institucionalidade no país que permita que, ao longo do tempo, o déficit habitacional seja reduzido e que se atente a cuidar das emergências que nos assolam hoje, como a crise climática e as consequências que estamos esperando para o próximo verão. Se não tivermos um plano reestruturado de emergência de risco, com defesa civil, urbanização, criação de abrigos, logo viveremos outra tragédia como a do Rio Grande do Sul.
IHU – Uma das promessas de campanha do novo governo Lula é pensar o desenvolvimento do país e enfrentar as questões relativas à pobreza. Nesse sentido, o que impede a elaboração de um plano habitacional e de reforma urbana no país?
Adauto Cardoso – A emergência da política de resultados. Entregar resultados é importante. Dá para entender isso porque, nos últimos quatro anos, vivemos um governo de extrema-direita e precisamos criar condições para que isso não aconteça nos próximos quatro anos. Nesse sentido, um caminho é ter políticas que apresentem resultados. O Minha Casa, Minha Vida apresentou resultados rápidos no passado e teve um impacto muito positivo na população. Foi o programa mais bem avaliado depois do Bolsa Família, segundo as pesquisas de opinião feitas pelo governo à época.
O problema é que a habitação não é um tema que ganhou legitimidade política como a saúde e a educação conseguiram conquistar. Na Constituição de 1988, a educação e a saúde já estavam se construindo e já existia um sistema de saúde pública das décadas de 1930 e 1940. Com a habitação, houve surtos; é uma política que vai e volta. Ela começa a andar e, num determinado momento, sai de cena. Nos anos 80, o BNH estava se reestruturando para ser o Banco Nacional de Desenvolvimento Urbano, mas foi extinto por [José] Sarney. Levou anos até Lula criar o Ministério das Cidades e uma política habitacional mais estruturada. Como disse, em 2005, o Ministério das Cidades estava construindo a ideia de criar um plano nacional e planos locais com senso de prioridade para justificar, inclusive, o pedido de recurso ao governo federal a partir de um diagnóstico mais efetivo. Mas a ideia foi cortada pela emergência do resultado político.
O fato é que até hoje a habitação não conseguiu ter legitimidade política efetiva para se tornar uma política de Estado. Enquanto for assim, vamos continuar com os surtos de políticas habitacionais. Haverá um novo surto, com o novo Programa Minha Casa, Minha Vida e com o novo PAC de periferias e depois “entrega a Deus” porque é imprevisível saber se a política vai continuar. O Programa Viva Periferia vai ter continuidade? Será mais estruturado? Será feito um diagnóstico para dizer onde investir? Os municípios vão se preparar para isso? Por enquanto não tem nenhum sinal de que isso esteja acontecendo. Há uma consciência dessa situação entre os técnicos que estão nas periferias, mas uma coisa é a consciência no nível técnico, com uma rede que está conectada às universidades, às periferias e aos movimentos, outra é a consciência no nível político. Isso está longe de acontecer.
IHU – Qual é o retrato das metrópoles brasileiras hoje em termos urbanos e socioambientais?
Adauto Cardoso – Existe um problema metropolitano nacional, e aí tem uma questão estrutural e institucional que nunca se resolve porque somos uma metrópole que não tem um mecanismo de gestão administrativa de metrópole. Tudo fica na mão dos estados e das suas negociações com os prefeitos. Esses impasses não se resolvem e, por conta disso, os planos metropolitanos também não adiantaram muita coisa.
Quando se comparam as metrópoles do Norte e Nordeste com as do Sul e Sudeste, percebe-se uma grande diferença. A diferença de recursos é significativa. A pobreza e os problemas ambientais são muito maiores. Belém é de uma precariedade absurda. Essas regiões enfrentam situações mais difíceis porque concentram duas precariedades: a habitacional e urbana e a do poder público, que tem baixa capacidade de investir. Por causa disso é mais difícil resolver os problemas nessas áreas.
Nas metrópoles do Sul e Sudeste, os problemas são os municípios periféricos, que sofrem de falta de recursos. Também existem problemas de precariedade habitacional e urbana. Através do sistema de compensação, os municípios teoricamente seriam beneficiados pelas riquezas criadas nas áreas centrais das metrópoles, mas há um acúmulo grande de precariedades e uma dificuldade de criar gestões públicas mais eficazes.
IHU – Diante das enchentes, ciclones e eventos climáticos que temos assistido no país, que desafios a questão climática lança às propostas de reforma urbana? Que políticas poderiam ser pensadas?
Adauto Cardoso – Olhando especificamente para a questão dos territórios periféricos das áreas urbanas, precisaríamos de um esforço para criar planos mais estruturais de tratamento das áreas de risco. Isso significa atualizar o mapeamento dos dados de risco. Temos metodologias muito interessantes no sentido de construir mapas participativos de risco, com maior envolvimento da população. Isso ajudaria a dar maior precisão aos dados geológicos e climáticos e ajudaria as comunidades a terem consciência das áreas em que existem problemas. Precisamos criar planos locais de contingenciamento, e aí é preciso ter estruturas locais em cada território periférico que tem área de risco. Também é preciso projetar lugares de evacuação para que a população saiba aonde ir nesses momentos, porque não adianta tocar a sirene de alerta e as pessoas não terem para onde ir.
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Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil