Ativista pelos direitos humanos explica que aprovação de tese deve aumentar conflitos por territórios e levar a mortes de indígenas
Catarina Duarte, na Ponte
Ivaneide Bandeira Cardozo, 65 anos, ou Neidinha Suruí, como é mais conhecida, diz que o legado que vai deixar ao mundo são os cinco filhos. Mulher da Amazônia, como se apresenta, Neidinha é ativista pelos direitos humanos e da natureza, com trabalho há décadas para combater o avanço do desmatamento e pela preservação dos povos tradicionais. A batalha em maior evidência atualmente é contra a tese do marco temporal — em votação pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e que avança com rapidez nas comissões do Senado.
Neidinha é co-fundadora da Kanindé, organização que atua com mais de 60 etnias indígenas. A história da atuação da ativista foi contada no documentário O Território (2022), indicado ao Emmy 2023, principal premiação da televisão americana, em três categorias (cinematografia, direção e mérito excepcional).
A ativista tem se mobilizado contra a aprovação do marco temporal, que em sua visão reflete a falta de compromisso dos parlamentares com a pauta socioambiental.
“A gente vem de 1500 com a invasão do território e o Congresso Nacional, o Senado, e alguns políticos, querem impor que o dia 5 de outubro de 1988 é a data que podia demarcar terra porque os indígenas só poderiam estar nessa terra nesta data. Ocorre que nós podíamos fazer outro marco temporal. Poderíamos estabelecer e votar no Congresso Nacional que 1500 é a data que os brancos poderiam ter terra no Brasil”, propõe a ativista.
A tese do chamado marco temporal, estabelece que os indígenas só teriam direitos às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição Federal ou que já estivessem em disputa judicial nesta época.
Essa questão surgiu em 2009, quando o STF julgava o caso da Terra Indígena (TI) Raposa Terra do Sol, localizada em Roraima. Os ministros decidiram que os indígenas tinham direito à terra em disputa, pois viviam ali na data da promulgação da Constituição.
O critério agora é avaliado pelo mesmo STF para um caso de repercussão geral — entendimento que afetará outros processos semelhantes ao final do julgamento sobre a TI Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina.
Parte da TI criada em 2003 é alvo de disputa entre o povo Xokleng e agricultores da região e foi requerida pelo governo de Santa Catarina sob o argumento de que ela não era ocupada pelos indígenas em 1988. Já o grupo indígena alega que não estava no local na ocasião porque fora expulso.
Relator do caso, o ministro Edson Fachin votou contra a tese do marco temporal. Para ele, a proteção constitucional sobre as terras indígenas independe de data e o direito dos povos indígenas sobre a terra em ocupação tradicional é originário e anterior à própria Constituição.
O julgamento no STF deve ser retomado na quarta-feira (20/9) e tem o placar atual de 4 votos contrários (Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Roberto Barroso) e dois favoráveis (Nunes Marques e André Mendonça) à tese do marco temporal.
Entre votos contrários há diferença de proposições. Alexandre de Moraes defende que o Estado banque uma indenização para as pessoas que tenham ocupado de boa-fé áreas de territórios indígenas. Isso vincularia o processo de demarcação de terras ao pagamento pela União. A atual legislação prevê pagamento por eventuais benfeitorias feitas nas terras. O que o ministro Alexandre de Moraes propôs é que haja ainda indenização do Estado também pelo valor das áreas.
Além da discussão no âmbito judicial, também avança no legislativo o PL 2.903/2023 (que passou a ter esse número ao chegar ao Senado, mas ficou mais de 15 anos tramitando na Câmara como PL 490/2007).
O texto define que, para que uma área seja considerada terra indígena, é preciso comprovar que ela estava ocupada em caráter permanente e utilizada para atividades produtivas na data da promulgação da Constituição.
Os indígenas também terão que provar, caso o projeto tenha andamento, que as terras em disputa eram necessárias para a reprodução física e cultural. “É tão louco pensar que eles colocaram um texto no PL que tenta descaracterizar a identidade do povo indígena, do povo quilombola e das populações tradicionais”, critica Neidinha.
O PL também propõe que terras que se pretenda demarcação, mas que não estavam em disputa na mesma data, não poderão ser demarcadas. Além disso, o projeto vai mais além e proíbe a ampliação de áreas já demarcadas em processos anteriores.
Aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) sem mudanças no texto vindo da Câmara, o PL 2.903/2023 está agora na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e tem como relator o senador Marcos Rogério (PL-RO). A expectativa é que a matéria seja apreciada pelos parlamentares no mesmo dia em que o STF volta a julgar o marco temporal.
Em entrevista para a Ponte, Neidinha Suruí criticou o avanço do PL 2.903/2023 e disse que o Brasil desconhece a situação dos povos originários. “Há uma guerra na Amazônia que mata os povos indígenas porque, para o Brasil, os povos indígenas são invisíveis. Para o Brasil, o povo preto é invisível. Eles não os veem e o marco temporal é muito isso”, diz a ativista.
Ela falou ainda sobre como se enxerga em meio aos anos de ativismo, sobre o que deseja deixar de legado e a luta das mulheres. A conversa ocorreu no seminário “Clima, reparação socioambiental e filantropia comunitária: cenários do litoral norte de São Paulo”, realizado em Maresias, litoral norte de São Paulo, na última sexta-feira (15/9), onde ela participou como palestrante. Confira a entrevista a seguir:
Ponte Jornalismo — A senhora tem uma trajetória marcada pela luta em defesa dos povos indígenas e da Amazônia. Diante disso, como a senhora se define?
Neidinha Suruí — Eu sou mãe de cinco filhos. Antes de ser ativista, eu sou mãe. Sou ativista dos direitos humanos e da natureza, indigenista, mas, antes de tudo, uma mulher que luta por direitos. Direitos do ser humano, da natureza, das mulheres poderem exercer a sua autoridade, o que elas acreditam, em qualquer espaço, em qualquer lugar.
Ponte Jornalismo — A senhora também costuma se apresentar como uma mulher da Amazônia. Qual a importância disso?
Neidinha Suruí — É, eu geralmente me defino assim, uma mulher da Amazônia. Nós costumamos dizer que somos corpo-território porque o território nos define, nos dá identidade. É como alguém que é do litoral, que é caiçara, ele se define pelo território, que é o território dos caiçara. Quem é do quilombo se define como quilombola. Eu me defino como uma mulher da Amazônia, com a minha identidade que está aqui em mim, desde o jeito de falar, de vestir, de lutar, e que se junta a outras lutas.
Ponte Jornalismo — Por que é importante falar em território ao falar de luta e como isso é atravessado pelo feminismo?
Neidinha Suruí — Porque quando nós nos juntamos a outras lutas, a outras identidades, a gente é mais forte. Quando tu juntas o bioma Amazônia com o Pantanal, com o Pampa, com a Caatinga, nós somos mais fortes, somos mulheres mais fortes. Isso é super importante para a luta das mulheres. Nós, como mulheres, temos que superar várias barreiras que nos foram impostas por um patriarcado que não me respeita enquanto mulher, que passou a vida inteira de uma forma muito violenta, sendo subjugada. Hoje nós estamos na luta deixando muito claro que somos empoderadas e que levamos a luta para todos os lugares e exigimos respeito a nossas identidades.
Nós não estamos botando o homem para trás de nós, nem na nossa frente. A gente está deixando muito claro que eles têm que estar do nosso lado.
Ponte Jornalismo — A senhora pensa no legado que quer deixar?
Neidinha Suruí — Eu quero deixar de legado o respeito. Para mim, isso é fundamental. Se eu conseguir interferir o suficiente para que haja respeito ao povo indígena, tradicional, preto, LGBT+, às populações locais, que haja respeito à natureza. Se eu conseguir mover as peças de tal forma que consiga que haja esse respeito, eu acho que esse vai ser o meu legado. Mas eu estou deixando cinco filhos também [risos]. E meus filhos estão aí na luta. A Txai Suruí levando a voz da juventude da Amazônia para o mundo, a Kim (Walela Soeikigh) que tem toda uma luta pela questão dos animais e dos jovens. O Xener (Oyxener) na aldeia lutando pela proteção e para desenvolver um bocado de coisas, o Txepo (Oytxepo) que é rapper ou trapper, uma coisa assim [risos].
Eu falo ao meu filho “me ensina sobre esse negócio, pelo amor de Deus. A mãe precisa aprender quando é que é rap e quando é que é trap”. Mas ele faz umas músicas bem legais. E a Pi (Walela Soepiliman), que é fotógrafa, que está aí fotografando a natureza, fotografando os povos. Eu tenho cinco filhos, estou deixando cinco filhos para continuar a luta.
Ponte Jornalismo — Falando em luta, a tese do marco temporal avança no Senado enquanto é discutida pelo STF. Qual o impacto que a aprovação do PL 2.903 pode trazer para os povos indígenas?
Neidinha Suruí — É muito importante que as pessoas entendam que o PL 2903, que trata do marco temporal, não vai só prejudicar os povos indígenas. Às vezes, as pessoas estão lá aplaudindo esse PL achando que ele só vai prejudicar os indígenas. Também é importante que entendam que é uma estratégia de dominação do grupo do agronegócio, representado por políticos que defendem o segmento do agronegócio, que é um grupo de direita, de extrema-direita e do centro, que querem aprovar uma medida completamente inconstitucional, que fere os direitos das populações indígenas, populações tradicionais e os direitos quilombolas.
E isso para quê? Para se apropriarem dos territórios desses povos. É tão louco pensar que eles colocaram um texto no PL que tenta descaracterizar a identidade do povo indígena, do povo quilombola e das populações tradicionais. Eles tentam fazer uma interpretação do artigo 231 dizendo que indígenas que não mantêm as características não têm direito aos territórios. Agora, característica definida por quem? Quem é que define se você é indígena ou se você não é indígena? Quem define se você é quilombola ou que você não é quilombola?
E é isso que eles estão querendo dizer. Se você tem a pele mais clara, se você não é retinto, você não é quilombola, você não é preto, então eu posso ir lá e tomar o teu quilombo e colocar uma fazenda. Se você não tiver o cabelo estirado, cara de lua cheia, nariz achatado, você não é indígena. Porque eles querem definir quem é indígena. Se você usa celular, você não é indígena. Se você usa roupa, você não é indígena.
Como eles estão definindo quem é indígena, eles estão definindo quem se apropria do seu território. É uma estratégia muito clara para tomar as terras indígenas, para tomar os quilombos e para matar essa população. Esse Congresso composto na sua maior parte de gente de direita, de extrema-direita e quase todo branco, não interessa a eles respeitarem os direitos das populações indígenas e tradicionais.
O que interessa a eles é se apropriar da terra e para isso estão trançando dentro do PL várias estratégias de como descaracterizar a identidade para justificar o roubo e a apropriação do território. Isso as pessoas precisam ter muito claro.
Ponte Jornalismo — E em relação a tese do marco temporal discutida pelo STF, a senhora vê que a discussão até aqui tem caminhado para uma proteção aos povos indígenas?
Neidinha Suruí — As pessoas precisam ter a clareza de que, se aprovado o marco temporal, a devastação nos territórios, o desmatamento, a degradação de áreas vai atingir todo o planeta. Esses que defendem o marco temporal não olha para o território para manter as características. Eles olham para o território pensando como se apropriar e de forma gananciosa ganhar mais dinheiro.
Para isso eles preveem corte raso, desmatamento, degradação. Todos os compromissos do governo brasileiro com a diminuição do desmatamento, a diminuição da degradação, de manter as florestas, e eu não estou só falando de floresta amazônica, é todas as florestas brasileiras, não vai se sustentar. Você vai ter um aumento [do desmatamento] e vai aumentar o conflito no campo. Votar a favor do marco temporal não é reduzir o conflito no campo, é aumentar o conflito no campo, é aumentar as mortes e é principalmente matar povo indígena, preto, caiçara, extrativista e seringueiro. É decretar a morte da natureza e dos povos. Isso só interessa a quem está no Congresso que pertence ao agronegócio, a famosa bancada do boi, bala e bíblia.
Ponte Jornalismo — A senhora avalia que há desconhecimento da população sobre a real situação da luta dos povos originários no Brasil?
Neidinha Suruí — É real. É super real. Com o filme que fizeram comigo, O Território, quando a gente saiu apresentando pelo Brasil, foi evidente que os brasileiros não conheciam a nossa situação. Nós éramos invisíveis. Vou usar uma frase da Txai: “Há uma guerra na Amazônia que mata os povos indígenas porque, para o Brasil, os povos indígenas são invisíveis. Para o Brasil, o povo preto é invisível. Eles não veem”.
O marco temporal é muito isso. A gente vem de 1500 com a invasão do território e o Congresso Nacional, o Senado, e alguns políticos, querem impor que o dia 5 de outubro de 1988 é a data que podia demarcar terra porque os indígenas só poderiam estar nessa terra nesta data. Ocorre que nós podíamos fazer outro marco temporal. Poderíamos estabelecer e votar no Congresso Nacional que 1500 é a data que os brancos poderiam ter terra no Brasil.
A gente podia estabelecer isso como a data, 1500. Afinal, [eles] não são daqui. Seria interessante. Nós deveríamos estabelecer ainda outra coisa: os brancos vão indenizar os povos indígenas por todos os danos causados ao território de 1500 para cá. O Brasil é território indígena.
Se nós tivéssemos um Congresso Nacional com representações dos povos indígenas, do povo preto, LGBT+, representação da sociedade. Ocorre que o nosso Congresso é a representação de um grupo que a vida inteira explorou os pobres, escravizou pretos e indígenas e os escraviza até hoje. Se a gente tivesse lá quem nos representasse, na maioria, a gente podia inverter e conquistar as pautas.
Esse povo que está pressionando, querendo votar coisa para matar o povo indígena, para matar a natureza, não percebe que, ao fazer isso, eles estão se autodestruindo também.
Se tu pensares que um político “x” quer o marco temporal porque quer ampliar a fazenda dele para cima do território indígena ou para cima do quilombo, o que nós vemos é um avanço do agronegócio para cima das nascentes. No futuro, eles não vão ter água. Se eles não vão ter água, não vão ter como plantar, produzir, não vão ter como subsistir. Ou seja, eles estão nos matando, mas eles também estão se matando, só que eles não percebem.
O planeta não acaba, quem vai acabar são as pessoas, se elas não mudarem a atitude. Se quem está votando, se os ministros que estão votando não param para pensar de forma preventiva nas futuras gerações, na importância da natureza para o planeta, na importância dos povos indígenas e tradicionais, porque foram e são esses povos que mantêm a natureza viva.
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Neidinha Suruí é ativista pelos direitos humanos e da natureza e mãe de cinco filhos | Foto: Catarina Duarte/Ponte Jornalismo