Tucano foi o primeiro presidenciável a questionar o resultado das urnas. Precedente antidemocrático admitido até no PSDB. Agora, outro Aécio surge: o primeiro depredador a ser condenado pelo 8 de Janeiro. A História tem suas ironias…
por Felipe Addor, em Outras Palavras
No papel, nas leis, o Brasil entrou no mundo democrático a partir de 15 de novembro de 1889, com a proclamação da República, que abriu caminho para a primeira Constituição republicana, de 24 de fevereiro de 1891, quando deixamos o universo monárquico para adentrar a galáxia dos países que possuem um sistema político “igualitário”. Apesar das inúmeras lutas populares que precisam ser reconhecidas e destacadas, a elite política e econômica brasileira conseguiu, nos principais momentos de transição do país, “manter o seu quinhão”, sempre tendo protagonismo nessas mudanças e garantindo a manutenção de boa parte de seus privilégios. Assim, ainda que nos orgulhemos de viver num país “democrático”, o fato é que nossa democracia é extremamente lenta no sentido da inclusão política da população brasileira. Dois exemplos ilustram bem esse fato.
O primeiro pode ser retratado a partir do registro do cientista político brasileiro Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019) no livro O paradoxo de Rousseau (Editora Rocco, 2007). Analisando o período da Primeira República (1891-1930), Wanderley afirma: “o comparecimento às urnas foi, durante todo o período, inferior a 4% da população, exceto na eleição de 1930, quando atingiu o espantoso recorde de 5,6% dos habitantes, ainda abaixo dos 10% alcançados pelo Império, em meados do século XIX”.
O segundo exemplo é a tardia implantação do elemento mais básico de um sistema democrático: o sufrágio universal. Foi apenas a partir da Emenda Constitucional No 25, de 1985, quase cem anos após a instauração da república brasileira, que os analfabetos passaram a ser considerados “cidadãos” e passaram a ter o direito ao voto. Ou seja, não completamos ainda quatro décadas de eleições formalmente democráticas.
Além disso, os quase 134 anos de “democracia brasileira” também foram afetados por momentos de ruptura política, provocados pelas elites, que ainda são profundas feridas na construção democrática no país. Destacam-se, naturalmente, a chamada Revolução de 1930 (e todo o processo que resultou na instauração do Estado Novo, em 1937, e só voltando ao estado democrático em 1945) e o Golpe empresarial-militar de 1964 (só voltando a ter eleições presidenciais democráticas em 1989). Portanto, dos 134 anos, sobram efetivamente 94 anos de período de vivência democrática no Brasil.
Entretanto, um fato político do século XXI maculou a história política recente do país, iniciando um novo ciclo não democrático. Dessa vez, não estruturada a partir de armas e tanques, mas baseada na manipulação jurídico-política impetrada por juízes, procuradores, políticos e congressistas, em um ataque claro e direto ao jogo político-democrático brasileiro. Recentemente, vimos a perspectiva desse ciclo se fechar, de forma exemplar. E, por uma coincidência típica de um conto de Nelson Rodrigues, um nome pouco comum aparece no início e no fim desse ciclo: Aécio.
Desde 1989, as eleições brasileiras ocorreram, na medida do possível, de forma democrática. Apesar de todas as falhas do sistema (como o financiamento empresarial e o coronelismo presente em muitas regiões), as eleições eram realizadas e os vencedores eram empossados. Os derrotados se dignavam (tinham a dignidade) de aceitar a derrota e voltar para o campo do jogo político, já pensando nas estratégias para as próximas eleições. Assim foi até 2014.
Vale recuperar o processo histórico pré-2014. Em 2002, em resposta à crise gerada pelas políticas neoliberais implantadas anteriormente, foi eleito presidente da república, com grande apoio popular, o candidato Lula da Silva, do PT. Foi a primeira vez que uma pessoa pobre, da classe trabalhadora, que passou pelas dificuldades que a maioria da população brasileira passa, elegeu-se presidente do país. A elite político-econômica brasileira ficou incomodada; mas aceitou a derrota. O desgaste de uma ruptura institucional seria mais desestabilizante e prejudicial do que aturar 4 anos de governo. Provavelmente, pensavam que o torneiro mecânico ia se embaralhar nas próprias pernas e que em 4 anos a direita estaria de novo no poder. Mas não foi o que ocorreu. Lula não apenas se reelegeu, ficando um total de 8 anos, como ainda conseguiu eleger sua sucessora, Dilma Rousseff, em 2010.
Alguns fatores, como a crise econômica mundial e a dificuldade de Dilma manter algumas políticas sociais no primeiro mandato, além de uma menor habilidade política para gerir a governabilidade em Brasília, fizeram com que as eleições de 2014 fossem especialmente acirradas. E a direita, encabeçada pelo candidato do PSDB Aécio Neves, acreditava que, finalmente, após 12 anos aturando os petistas nadando de braçadas, retomaria o Palácio do Planalto. Mas não foi o que aconteceu. Por uma diferença de menos de 3% dos votos, na eleição mais acirrada desde a redemocratização do país até então, Dilma é reeleita. Diferentemente das eleições anteriores, o PSDB, encabeçado por Aécio, questiona o resultado das urnas. Primeiro, pede recontagem dos votos. Em seguida, pede auditoria nas urnas, alegando fraude no processo eleitoral. Dez dias após as eleições, Aécio faz um discurso afirmando que fará uma “oposição incansável, inquebrantável e intransigente”.
Esse comportamento antidemocrático de não aceitação dos resultados eleitorais e que foi continuado com a busca da inviabilização do 2o governo de Dilma foi a catapulta que jogou a democracia brasileira em um trágico período nos 8 anos seguintes. O próprio ex-presidente do PSDB, Tasso Jereissati, reconhece que a contestação da vitória eleitoral da Dilma foi um “erro gravíssimo”, o que, segundo ele, “criou um fato que abriu um precedente”. Além disso, reconhece o equívoco de posicionar contra uma série de políticas no governo Dilma, como forma de “inviabilizar o Brasil”, o que alimentou ainda mais a crise política: “O segundo erro foi votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT”.
Podemos considerar que o período de 2014 a 2022 foi mais um período de ruptura institucional contra a nossa democracia, composto por uma série de acontecimentos que corroem nossa frágil e recente democracia:
i – o partido derrotado nas urnas em 2014 usa de sua força política e apoio das elites para inviabilizar o governo Dilma, levando o país ao caos econômico e político;
ii – constrói-se uma articulação política para dar um golpe jurídico parlamentar, com base em uma acusação de crime contábil da qual depois Dilma foi inocentada;
iii – um grupo conservador de magistrados arma uma arapuca para tirar das eleições presidenciáveis de 2018 o candidato favorito, Lula, tendo como protagonista um juiz que depois seria nomeado Ministro de Estado pelo candidato que venceu as eleições graças à sua atuação como juiz, no que vem sendo classificado como “o maior escândalo judicial da história do país”; o STF, anos depois, reconhece a manipulação jurídica de ataque a Lula e anula todas suas condenações;
iv – Bolsonaro, mais forte com a exclusão de Lula do pleito, vence as eleições presidenciais de 2022 baseado na contratação, por caixa 2, de uma máquina de manipulação baseada em fake news, aproveitando-se do descalabro antidemocrático potencializado pelas redes sociais e seus algoritmos, repetindo o que ocorreu em outros casos no mundo (como a eleição de Trump e o Brexit).
Felizmente, em algum momento, esse jogo começou a virar. A comprovação da inocência de Dilma e a liberação de Lula da cadeia e garantia de sua participação nas eleições de 2022 talvez tenham sido os dois elementos mais importantes para a saída do caminho autoritário que o país vinha tomando.
Em 2022, Lula liderou as intenções de voto para presidente do início ao fim do pleito. Bolsonaro, tendo a máquina pública na mão, fez de todo o possível e impossível para comprar votos e reverter sua derrota. Chegou a decretar estado de emergência do país, sem qualquer justificativa, para que pudesse aumentar os gastos no período eleitoral. Segundo o atual Ministro da Fazenda, Bolsonaro gastou mais de R$ 300 bilhões no período eleitoral para tentar ganhar votos. Felizmente, ainda que tenha conseguido reduzir a diferença e gerado a eleição presidencial mais disputada da história recente do país, com diferença de menos de 2%, Bolsonaro perdeu.
Assim como em 2014, Bolsonaro, seguindo os passos do Aécio e sua turba, não aceitou o resultado eleitoral. Reclamaram de fraude, bloquearam estradas e, indo mais longe do que aquela antiga direita teria coragem, começaram a pedir um golpe de estado; pediam desesperadamente às Forças Armadas uma intervenção militar. O auge veio no dia 08/01/2023, com a invasão de prédios dos Três Poderes, em cenas lamentáveis para qualquer pessoa que preze a democracia. O objetivo daquela malta era o golpe de Estado, mas parecia mais uma farsa grotesca protagonizada por um grupo de baderneiros desorientados, estimulados pelas hostes bolsonaristas, sem ter sequer o apoio formal de partidos políticos, dirigentes, forças armadas, etc. O objetivo por trás da farsa parecia ser o de gerar o caos na capital do país, para que o governo Lula ordenasse uma missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), colocando Brasília na mão dos militares.
Na semana passada, o STF condenou os três primeiros acusados pelo ataques aos prédios públicos. Ainda que a punição aos envolvidos tenha só começado, pegando, por enquanto, apenas “peixes pequenos”, o julgamento é um fato histórico por dois motivos. Primeiro, porque de alguma forma muda nossa retrospectiva vergonhoso de ser um dos poucos países latino-americanos que não puniu os civis e militares envolvidos nos assassinatos, execuções, torturas, sequestros, ocultações de cadáveres durante a ditadura empresarial-militar; estamos virando a página da nossa história recente punindo pessoas que atacam as instituições democráticas brasileiras. Oxalá essa punição também chegue aos militares envolvidos no 8 de janeiro. Segundo, porque ela fecha o mais recente ciclo antidemocrático do país, iniciado em 2014, quando houve o questionamento do resultado eleitoral por parte de Aécio Neves.
E, curiosamente, qual o nome do primeiro condenado pelos crimes realizado no dia 08 de janeiro de 2023?
O velho Karl Marx já dizia: “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. O primeiro Aécio, e sua postura antidemocrática de não aceitar a derrota eleitoral de 2014, levou o Brasil a uma tragédia, a um período antidemocrático, de ataque aos direitos e destruição do país. O segundo Aécio foi carregado, como gado, a uma das maiores farsas de tentativa de golpe de estado da história mundial, em uma incitação irresponsável via redes sociais, com objetivo implícito de gerar a desordem para, quem sabe, incentivar .
O STF julgou e condenou de forma exemplar os primeiros três réus do processo dos atos golpistas de 8 de janeiro. Torçamos para que esse julgamento represente o fechamento desse ciclo nefasto e antidemocrático que rondou o país pelos últimos 8 anos, e que voltemos a construir uma disputa política saudável, de diálogo, que permita o aprimoramento da nossa democracia e a melhoria de vida da maioria da população brasileira.
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Foto: AFP/Getty Images