Marcas do racismo na memória. Por Abrao Slavutzky

Terapia Política

O racismo é uma paixão dominada por um pensamento que justifica o ódio, e despreza o outro como se fosse um resto, uma imundície. O racismo é um fenômeno de grupo, e, sendo uma paixão, é um desejo posto em tensão. O desejo racista é exterminar o seu objeto de ódio, todo o mal está fora de si: o inimigo vira um sub-humano.

As marcas psíquicas do racismo em quem sofre e em quem goza são essenciais para se entender o mundo, em especial o nosso país. Pensar, por exemplo, como a humilhação do negro marca seu inconsciente através das marcas mnêmicas. A luta antirracista passa por desconstruir as imagens cruéis dos negros como seres inferiores. Na busca de compreender os efeitos do racismo e criar novas imagens, há livros novos como “A cor do inconsciente – Significações do corpo negro”, da psicanalista Isildinha Baptista Nogueira. Ela foi uma menina pobre nascida na periferia que estudou psicologia na USP; apoiada pela mãe, fez mestrado e doutorado, que concluiu em 1998. A partir de sua história, da análise pessoal e de seus analisandos, chegou às raízes da imagem do corpo negro.

A imagem do corpo é fundamental, pois ele é estruturante na identidade do sujeito, e é na fase do “estádio do espelho” do bebê que é construída essa identidade. A construção se apoia na dimensão imaginária, a partir do reconhecimento da criança de sua imagem virtual que não é ela, mas é onde ela se reconhece. Trata-se de um conhecimento imaginário, mas que se fundamenta na experiência. O “estádio do espelho” é uma fase na vida da criança – entre os seis e 18 meses – quando ela ainda se encontra na maturação, e, aos poucos, adquire consciência do próprio corpo.

O subtítulo do livro, “Significações do corpo negro”, leva Isildinha a fazer um mergulho na complexa questão do corpo em psicanálise. Parte de Lacan quando estuda o corpo sob três pontos de vista: “Do ponto de vista do real, o corpo é sinônimo de gozo; do ponto de vista simbólico, o corpo é o conjunto de elementos diferenciados entre si e que determinam um ato no outro, e como corpo imaginário, identificado como uma imagem externa e prenhe, que desperta o sentido num sujeito. Importante destacar que a imagem do corpo é ligada à sua história, bem como ela é inconsciente e sustentada no narcisismo”. E assim o livro alcança o seu cerne na pergunta: “O que somos nós, os negros?”. E responde: “Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Eu do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro”.

Assim Isildinha vai costurando as marcas da cor a nível inconsciente, a partir do ser branco como uma condição genérica. Ser branco constitui o elemento não marcado, o neutro da humanidade, logo é possível supor que ele se tornará um sujeito a partir do outro, da alteridade. Então experimentará, eventualmente, o sentimento de “estranho inquietante”, diante de uma experiência inesperada, como a de ser, inesperadamente, refletido em um espelho ou em uma superfície refletora. Assim experimentará sentimentos de medo e constrangimento, para em seguida se recompor, reconhecendo-se e não se repudiando, sendo confirmado sujeito pelo olhar do outro. Já as identificações do ser negro são bem mais difíceis, pois são tanto constituídas pelo olhar negro como pelo olhar branco de desprezo pelo preconceito.

A luta antirracista tem crescido no Brasil e sonho que os judeus, e brancos em geral, possam construir com os negros, pontes na luta contra o racismo como ocorreu nos Estados Unidos. Um exemplo foi dado pelo reverendo Martin Luther King e o rabino Abraham Joshua Heschel quando marcharam juntos de Selma a Montgomery em 1965 pelos direitos dos negros. Heschel disse que marchar era rezar com as pernas.

Nos últimos anos, a questão racial no Brasil passou a ser vista como a raiz das desigualdades sociais bem como um fantasma sádico onipresente. Livros como “O genocídio do negro brasileiro”, de Abdias Nascimento, “Racismo estrutural”, do ministro Silvio Almeida, e “A cor do inconsciente” iluminam. Isildinha na abertura de seu livro situa o racismo nacional na História: “Libertos do cativeiro, mas jamais libertos da condição de escravizados, de um estigma, os negros têm sofrido toda sorte de discriminações, que têm como base a ideia de seres inferiores”. O livro de Isildinha me fez lembrar as palavras da famosa psicanalista francesa Françoise Dolto, quando escutou Isildinha pela primeira vez há 40 anos: “Sua fala sangra. Sua fala é você, a psicanálise lhe deve isso, temos que pensar sobre isso.”  (Zero Hora, 16/09/2023)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli

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