“Estamos surpresos que os fenômenos estão mais severos e intensos do que estimávamos nas previsões numéricas e matemáticas mais robustas”, afirma o climatologista
“Não temos dúvida técnica e científica de que a mudança climática atual é muito acelerada e totalmente antrópica”, disse o climatologista Francisco Eliseu Aquino no debate virtual intitulado “Colapso Climático no Rio Grande do Sul. Causas, desafios e perspectivas”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 14-09-2023. Para ele, os cálculos comparativos acerca das emissões de gás carbônico decorrentes das erupções vulcânicas das últimas décadas e das emissões de gases do efeito estufa geradas pela humanidade indicam que as primeiras são dezenas de vezes inferiores às taxas emitidas pela humanidade. “Nos assustamos, nos últimos três, cinco anos, com a severidade de eventos extremos, sejam as ondas de calor, sejam as ondas de frio, seja ainda a precipitação extrema na América do Sul, na Austrália, na África do Sul. Inclusive, na Antártica as ondas de calor e eventos climáticos estão muito mais extremos do que imaginávamos ser possível”, relata.
Segundo Aquino, “a grande aposta que temos para o enfrentamento da crise de emergência climática é a restauração das áreas naturais o mais rápido possível”. A recuperação de áreas úmidas, sublinha, “é importante porque as áreas de banhado são amortecedores de cheias, são o berço de biodiversidade e mantêm o sistema climático funcionando”. E acrescenta: “Essa é a melhor forma de amenizarmos o aumento da temperatura global e o aumento de eventos extremos e inundações. Isso é urgente e precisa ser feito de norte a sul no planeta”.
Os efeitos dos eventos extremos na vida da população, de acordo com o pesquisador, evidenciam como “tem sido desafiador e difícil aplicar o conhecimento teórico na prática cotidiana do ambiente urbano”.
A seguir, publicamos, no formato de entrevista, a exposição de Aquino no evento “Colapso Climático no Rio Grande do Sul. Causas, desafios e perspectivas”.
Francisco Eliseu Aquino é graduado em Geografia, mestre em Geologia Marinha e doutor em Geociências, com ênfase em mudanças climáticas entre a Antártica e o Sul do Brasil, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professor do Departamento de Geografia da UFRGS.
Confira a entrevista.
IHU – Como podemos entender este momento que vivemos no Rio Grande do Sul e em outras partes do mundo?
Francisco Eliseu Aquino – Como climatologista ou paleoclimatologista, inicio mencionando o cenário que temos chamado de pano de fundo. Desde que veio se desenvolvendo, crescendo, inovando, a humanidade assumiu um crescimento tecnológico e científico extremamente importante e impressionante. Ao longo desse desenvolvimento, especialmente nos últimos 200 anos, dedicamos muito tempo ao uso de combustíveis fósseis e à alteração da superfície do planeta de forma bastante elevada. Estas ações geraram efeitos que há muito tempo a ciência estuda e explica. É o que chamamos de ciência do clima, que se sobrepõe à própria área de conhecimento que a originou.
Com o sistema terrestre, que envolve oceanos, biodiversidade, continentes, atmosfera, aprendemos que quase toda a massa atmosférica cabe nos primeiros dez metros de lâmina d’água dos oceanos, que cobre 70% do planeta e tem quatro quilômetros de profundidade. Os oceanos têm muita massa, muita energia, quando comparados à atmosfera. Quando falamos de fenômenos como o El Niño ou de fenômenos que associam a atmosfera e o oceano, mais fácil fica compreender por que o humor do oceano reage rapidamente na atmosfera. Registros paleoclimáticos de sedimentos de fundo marinho, de lagos, de anéis de crescimento de árvores, e testemunhos de neve e gelo, como comumente coletamos no interior da Antártica, mostram o comportamento da temperatura, da umidade, do fluxo de precipitação no interior da Antártica ou no interior da Groenlândia. Com estes dados, conseguimos afirmar tranquilamente que o planeta mais quente abre um cenário que permite, com facilidade, que temperaturas mais elevadas fortaleçam eventos meteorológicos: chuva, períodos de estiagem, tempestades mais intensificadas e assim por diante.
Eventos extremos
Em curtas sessões de congressos internacionais, ao longo dos últimos 50 anos, a comunidade científica internacional, composta por geocientistas e meteorologistas, tem dito que é preciso haver um maior espaço para entender o sistema climático e as projeções das quais já temos conhecimento. Em 1970, com os testemunhos de neve e gelo, a química da atmosfera permitiu calcular e prever o aumento das temperaturas. Naquela década já era possível estimar que os eventos climáticos seriam intensos. Obviamente, estamos surpresos que os fenômenos estão mais severos e intensos do que estimávamos nas previsões numéricas e matemáticas mais robustas. Às vezes, tentamos ser mais cautelosos para não errar e, de modo geral, todos os painéis internacionais subestimaram esses efeitos.
Lamentavelmente, os efeitos estão crescendo em uma velocidade maior. Alguns cientistas do clima, especialmente os de regiões polares, esperavam não observar gelo marinho no verão do Ártico em 2050, mas talvez isso ocorra em 2035. Nos últimos 35 anos, a diminuição do gelo marinho em todas as estações é crescente, e a espessura do gelo, em vez de ter 5 metros, está com 1,5 metro. Com a diminuição do gelo marinho no Ártico, as regiões do entorno, como o Canadá, amplificam o aquecimento. No hemisfério sul mais oceânico, todos esperavam que os efeitos das mudanças climáticas não seriam tão intensos, mas não é verdade. Nos assustamos, nos últimos três, cinco anos, com a severidade de eventos extremos, sejam as ondas de calor, sejam as ondas de frio, seja ainda a precipitação extrema na América do Sul, na Austrália e na África do Sul. Inclusive, na Antártica as ondas de calor e os eventos extremos estão muito mais extremos do que imaginávamos ser possível.
O planeta mais quente altera a circulação oceânica, altera a circulação atmosférica. Os oceanos nunca estiveram tão quentes como neste ano. É por isso que observamos imagens e cenas reais, lamentáveis, que nos fazem refletir sobre o que estamos fazendo ou sobre os desafios que a humanidade tem.
IHU – Quais os desafios diante deste cenário de intensificação dos eventos extremos?
Francisco Eliseu Aquino – A maior parte da humanidade vive em cidades. As cidades não cresceram nem se desenvolveram observando os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Não conseguimos fazer um planejamento territorial nem um ordenamento adequado que desse equilíbrio para a humanidade e que fosse um ambiente seguro. Costumo dizer que as cidades são ruidosas; elas não são agradáveis para o cidadão. Vemos as praças degradadas, as avenidas crescendo, e confundimos essa visão de desenvolvimento, perdendo a vida ambiental. As árvores e o solo são importantes para a saúde das cidades, para a qualidade do ar, para a redução das temperaturas extremas, ou seja, são benéficos à vida de modo geral. As árvores, o solo etc. nos salvam e nos protegem de inúmeros efeitos do ambiente. Portanto, a maior parte da população mundial está vulnerável em ambientes urbanos, seja por causa da poluição, seja por causa do estresse de modo geral, das ondas de calor. Quando tentamos entender os números de mortes da população mundial, percebemos que eles estão associados a doenças cardiovasculares, respiratórias, às ondas de calor, ao ambiente urbano. Diante disso, temos um enorme desafio, mas também temos enormes e boas perspectivas.
Expectativas
A ciência e a tecnologia avançaram demais. Há 20 ou 30 anos teríamos uma imagem de satélite somente com muita dificuldade; precisaríamos estar em um centro de pesquisa, com alta infraestrutura, com custo enorme. Hoje, com um aparelho celular qualquer indivíduo consegue acompanhar uma imagem de satélite de dez em dez minutos. As estações meteorológicas estão cada vez mais automatizadas, milhares de dados trafegam diariamente de estações oceânicas continentais, aviões, satélites e assim por diante. Temos um enorme conhecimento. Devemos investir em ciência, tecnologia e formação para que possamos melhorar os alertas.
Nos últimos 50 anos, relatórios importantes da Organização Meteorológica Mundial mostram que os desastres crescem no mundo, ainda mais com as mudanças climáticas. Então temos um prejuízo, isto é, mortes associadas à emergência climática. Ao mesmo tempo, a partir da década de 1990 observamos uma diminuição do número de mortes por desastres em função do planejamento dos países, da meteorologia, da climatologia, do alerta antecipado. Entretanto, 50% dos países do mundo não possuem sistemas adequados de alertas.
Desde 2011 e 2012, o Brasil investe em uma franca e clara infraestrutura de defesa civil, em órgãos privados e públicos de previsão do tempo, com facilidade de comunicação. No entanto, ainda existe uma lacuna enorme na forma como a população e os tomadores de decisão percebem e entendem a emergência climática, sua previsão, seu enfrentamento, ou seja, a percepção do risco. Boa parte dos escritórios de defesa civil dos municípios ainda está alocada em alguma secretaria. Os escritórios não são independentes, com corpos técnicos que cruzam por gestões. Obviamente, isso dificulta toda a infraestrutura.
IHU – Como analisa os eventos climáticos no RS?
Francisco Eliseu Aquino – Tenho ousado explorar os eventos extremos entre a mudança climática global e seus impactos na Antártica e no Brasil. Obviamente, o gaúcho sabe que a entrada de uma frente fria muda a temperatura do ar, muda o ânimo, a expectativa do que está acontecendo. Quem vive no Pampa sabe que uma frente fria gera sistemas meteorológicos que podem ser muito vigorosos, com tempestades severas. Isso me levou a explorar sistemas convectivos que reúnem várias nuvens. De modo geral, estudei aquelas nuvens que têm raio e granizo, tempestade severa e chuva pesada. Na Bacia do rio da Prata, essas nuvens se reúnem durante a noite e geram eventos extremos de precipitação. A modelagem numérica já apontava, 15 dias antes, um evento extremo de precipitação no Sudeste da América do Sul, entre Uruguai e Rio Grande do Sul. Na medida em que o tempo avançava e os modelos iam se ajustando, mantinha-se a previsão de precipitação acima de 100 ou 150 milímetros. 100 milímetros de precipitação é considerado extremo, gera impacto e então começa o estado de atenção.
O ciclone extratropical é o mais falado no momento. Todo mundo pergunta quantos são, se estão mais intensos. Nós estamos tendo um inverno ativo em termos de número de ciclones: quase 1,5 por semana. Isso gera entrada de ar frio, que está rivalizando e encontrando o ambiente atmosférico propício para formar tempestades mais severas. Quando o planeta está quente, os oceanos estão quentes, o El Niño se configura e culmina a entrada rápida de umidade da Amazônia que vem em direção ao Sul do Brasil, em especial ao Rio Grande do Sul. O cenário fica propício para desenvolver nuvens extremamente desenvolvidas por várias horas, as quais podem gerar uma precipitação muito acima do esperado. O modelo previa um evento extremo e ele provavelmente foi mais extremo do que o previsto pelo modelo.
Não temos dúvida de que já passamos por eventos como este. A região de Caxias do Sul em direção a Passo Fundo, que desemboca no Rio Taquari-Antas, historicamente tem esse registro. O prefeito de um dos municípios atingidos esteve em Brasília dizendo que ocorreu uma precipitação de granizo extremamente impactante no município e, nesse meio tempo, a cidade inundou. Isto mostra exatamente o que o ambiente atmosférico de 30 de agosto até 4 ou 5 de setembro organizou, em um ano quente, com influência do El Niño, mais a presença do ciclone, que trouxe a frente fria e rivalizou com a umidade vinda da Amazônia. Nós temos a previsão do tempo. Não foi falta de aviso. É uma conjuntura. Como disse no início, metade dos países do mundo tem muito o que fazer nesse campo. O Brasil vem fazendo, mas tem muito a melhorar.
Em uma notícia publicada no jornal A Hora, do Vale do Taquari, dois professores que foram a campo mostram que o nível da água passou acima de 50 centímetros da enchente de 1941, no auge do extravasamento. Colegas do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) mostraram que quase 24 horas antes das enchentes já se percebia claramente o sinal de que vinha um volume d’água absurdamente acima do esperado. Portanto, a previsão indicava um evento extremo e ele aconteceu com mais envergadura. Nós poderíamos ter entendido isso melhor antes, ter se prevenido e, de novo, caímos naquela realidade: realizamos um trabalho técnico-científico, depois passamos a informação para o tomador de decisão se comunicar com a sociedade. Um cidadão que, vamos supor, tem 40 anos de idade e não viveu a enchente de 1941, não compreende esse cenário e não tem percepção de risco. Existem profissionais formados e qualificados para trabalhar; a questão maior é como inserir os tomadores de decisão neste processo.
Se desmatamos áreas de preservação ambiental, de encostas, de margens de rios, de matas ciliares, aceleramos a entrada da água no sistema e obviamente aceleramos a inundação. Mas nós ocupamos essas áreas. Erramos. Precisamos fazer um regramento melhor daqui para frente. Não vamos mudar uma cidade da noite para o dia, mas podemos elaborar um plano para que em 15 ou 20 anos a cidade seja mais bem estruturada e organizada. Não fizemos isso. Se eu perguntar qual é a melhor cidade planejada do Sul do Brasil, todos responderão Curitiba. Esta cidade começou o seu planejamento urbano em 1970. Não vou dizer se a cidade é perfeita ou não, mas sabemos que existe uma diferença enorme quando há planejamento.
Em Pelotas, por exemplo, o meio-fio é alto por causa do escoamento da água. Quando a cidade foi construída, não existia o sistema de drenagem que existe hoje. É óbvio que estamos, do ponto de vista da universidade, formando profissionais que estão atualizados com as demandas do mercado e da sociedade. Nós temos que ser sinceros ao dizer que tem sido desafiador e difícil aplicar o conhecimento teórico na prática cotidiana do ambiente urbano, seja em um ambiente urbano com uma população de 3 a 5 mil habitantes, seja em um ambiente com quase três milhões de pessoas, como é a região metropolitana de Porto Alegre. Esses são os desafios.
Uma rápida análise de complexos convectivos de média escala indica deslizamentos e mortes no Rio Grande do Sul. Ou seja, em menos de 15 anos aconteceu um evento severo na região de Novo Hamburgo, onde uma família inteira morreu. Levo meus alunos para visitarem aquela área de risco. Entramos na casa onde as pessoas moravam e perguntamos para a família que lá reside atualmente se sabe que aquela é uma zona de risco, se sabe que morreu uma família inteira naquele lugar. Ninguém sabe. Esse é o desafio que temos, o desafio de avançarmos na comunicação com a sociedade.
IHU – Considerando que a humanidade tem apenas 200 mil anos e que temos registros climáticos de, no máximo, 200 anos, será que essas mudanças não fazem parte de um ciclo natural do planeta?
Francisco Eliseu Aquino – No mestrado, estudei geologia marinha, sedimentação de fundo marinho e, depois, climatologia e mudança do clima na atmosfera em grande escala. Tive a oportunidade de estar em laboratórios, trabalhando com pesquisadores de áreas diversas, e me sinto à vontade para falar sobre isso.
Quando pegamos testemunhos de gelo da Antártica, contamos perfeitamente a história do passado e a recente. Ou seja, o carbono negro de tudo que nós queimamos na Amazônia, na África ou na Austrália, está depositado na Antártica. Toda a produção de cobre está registrada na química da neve do gelo da Antártica. Todas as atividades humanas realizadas de 1500 para cá estão registradas nas regiões polares. Nesse sentido, temos tranquilidade para afirmar que as mudanças climáticas, aquelas que nos assustam e nos encantam, como períodos glaciais e interglaciais, ocorreram em escalas de 100 mil anos para se construir no período frio e 20 mil anos no período que chamamos de quente.
Se analisarmos o último milhão de anos, estamos, sem dúvida, no período mais quente, no período com a maior concentração de CO2 possível. Se analisarmos todas as erupções vulcânicas das últimas décadas e fizermos um cálculo das emissões de gás carbônico, que são gases do efeito estufa, veremos que elas são dezenas de vezes inferiores às taxas de emissões de gases geradas pela humanidade. Não temos dúvida técnica e científica de que a mudança climática atual é muito acelerada e totalmente antrópica. Existe uma discussão entre os colegas da estratigrafia sobre em qual escala geológica ficará o Antropoceno. Considerar as marcas normais de 1961 a 1990 é um risco, porque passamos, entre 2000 e 2010, e entre 2010 e 2020, para uma aceleração. Os anos e meses mais quentes estão nas últimas duas décadas. Nesse sentido, as normas anteriores estão superadas. Os eventos de precipitação extrema estão todos superados.
Manuais de climatologia dos anos 1990 registram a ocorrência de evento extremo na ilha Papua-Nova Guiné. Isso caiu por terra nos últimos 4 ou 5 anos porque a atmosfera está extremamente intensificada. A troposfera tropical e equatorial está uma centena de metros mais elevada, o que faz com que acelere a circulação atmosférica superior. Se acelera, ela induz, por exemplo, a ocorrência de mais ciclones – e ciclones mais intensos – no hemisfério Sul. Por sorte, isso está acontecendo mais ao sul. Estamos detectando um aumento da quantidade de ciclones que se formam na Argentina e cruzam mais ao sul, na região do Mar del Plata, eventos que nos afetam em alguns casos.
A circulação atmosférica mudou; podemos concretamente dizer que isso ocorre em decorrência da atividade humana. Os ciclos naturais ainda existem, mas são menores. Em termos de watts por metro quadrado, a humanidade está mexendo com quase 2,5 watts por metro quadrado, enquanto a natureza, no seu excesso, talvez chegue a 0,5 watts por metro quadrado. Nós superamos, em quatro vezes pelo menos, a mudança energética do sistema climático terrestre. Mas, sem dúvida, todas as marcas estão sendo revistas, lamentavelmente.
IHU – Os prejuízos do furacão Katrina foram intensificados pela drenagem dos pântanos no sul dos EUA. No RS, não haveria o mesmo efeito pela conversão dos banhados e destruição das matas ciliares?
Francisco Eliseu Aquino – Sem dúvida, a recuperação de áreas úmidas é importante porque as áreas de banhado são amortecedores de cheias, são o berço de biodiversidade e mantêm o sistema climático funcionando. Aliás, a grande aposta que temos para o enfrentamento da crise de emergência climática é a restauração das áreas naturais o mais rápido possível. Essa é a melhor forma de amenizarmos o aumento da temperatura global e o aumento de eventos extremos e inundações. Isso é urgente e precisa ser feito de norte a sul no planeta.
Hoje, partes da Amazônia registram secas bem-marcadas, que caracterizam o El Niño. No sul da América do Sul, marca-se um regime de precipitação extremamente elevado, o que caracteriza o El Niño. Os atuais El Niños e as atuais La Niñas são mais intensos do que os que ocorriam entre os anos 1960 e 1990. Quer dizer, dentro de uma perspectiva recente os eventos naturais também estão mais intensos. Não existiam oceanos quentes, com as atuais temperaturas, a três quilômetros de profundidade, dez, vinte milhões de anos atrás. Digo isso para mostrar que a variabilidade natural se mantém, mas a superamos largamente.
É importante dizer que o Katrina causou impacto porque o governo não agiu. O governo não quis agir e morreram mais de 20 mil pessoas na inundação e após a inundação do Katrina. A maior força bélica do mundo, isto é, a Marinha, a Aeronáutica e o Exército americanos, não conseguiu operar na área de inundação do Katrina. O Katrina foi um evento absurdamente exagerado e os dados mostram que ele é um sinal da mudança da temperatura dos oceanos.
Aliás, o fenômeno híbrido, o Catarina, que classificamos como sendo o primeiro furacão do Atlântico Sul, abriu o cenário para uma série de ciclones extratropicais que passaram a mudar de categoria por causa do grau de intensidade. Em função disso, estamos revisando a lista de nomes para os ciclones subtropicais no Atlântico Sul. Isso é um sinal claro de que os eventos meteorológicos ganharam intensidade. Significa que um ciclone extratropical explosivo no Rio Grande do Sul pode causar muito mais mortes e danos do que um evento como o Catarina. Obviamente, o Catarina foi classificado como Categoria 1. Ele é uma grande mudança paradigmática para a climatologia e a meteorologia brasileiras.
A confluência Brasil-Malvinas, isto é, entre água fria, água quente e oceano ao lado do Rio Grande do Sul, com continentalidade, é um ambiente perfeito para gerar intensidade na ciclogênese. Em função da mudança climática, nós, da oceanografia, sabemos que as correntes quentes, por exemplo, as correntes do Golfo e as do Brasil, estão mais intensas e migrando para o Sul. Isso é natural porque as células de alta pressão semipermanentes estão mais intensas. Mas a combinação entre o desmatamento na Amazônia, o desmatamento no Cerrado, a corrente quente na costa brasileira é o ambiente perfeito para que as instabilidades, que já ocorriam, ganhem intensidade ou mudem de patamar. O Catarina é icônico exatamente por isso. Aprendemos muito com esse evento impactante. Evoluímos absurdamente com este evento.
IHU – Como avalia a estruturação do órgão da Defesa Civil no Rio Grande do Sul?
Francisco Eliseu Aquino – O espaço para a Defesa Civil vem sendo construído de modo geral no Brasil. Quando comparamos a situação por estados, percebemos que Santa Catarina tem um elevado engajamento e isso vem sendo construído há bastante tempo. Tive a chance de entender e acompanhar a Defesa Civil em alguns momentos, e de me inspirar porque ela tem uma infraestrutura de dar inveja. Inúmeras vezes visitei Santa Catarina a convite da Defesa Civil do estado ou a convite da Assembleia Legislativa.
A partir do evento extremo que presenciamos recentemente no Rio Grande do Sul, precisamos melhorar o alerta, isto é, que tipo de alerta será emitido: sirene, SMS, alerta através da Defesa Civil municipal. Podemos revisar os métodos; estamos prontos para isso. É importante dizer que a Defesa Civil precisa ser extremamente qualificada e estar em interação com a universidade. Nas universidades, hoje, estamos obrigados a fazer um curso de extensão. A extensão é a forma como estamos mostrando o que fazemos na universidade com nossos alunos.
Nas áreas de meteorologia e geografia, existe aplicação social direta com a sociedade. Inclusive, existem disciplinas de desastres nos cursos de graduação. Portanto, é preciso incentivar a independência e o melhoramento da infraestrutura da Defesa Civil. Isto é, realmente criar uma estrutura de pessoal, equipamento, sede, de modo a facilitar a comunicação com as pessoas mais vulneráveis.
Quando o agente da Defesa Civil chega a um bairro que frequentemente tem alagamento e diz que a população precisa sair, a população sai. Se o professor diz que vai chover e as pessoas precisam sair, elas não saem. A população necessita entender a informação e estabelecer uma ligação de confiança com o agente. Os EUA têm um sistema muito bom de alerta. As pessoas conhecem como funciona e ele é extremamente híbrido: há interação com as universidades, com a sociedade, com treinamento de alunos. Não à toa lá surgiram classificações e catalogações de furacões e tornados, justamente pela necessidade de comunicação com a sociedade.
Nós estamos “chegando depois”, mas precisamos melhorar a nossa comunicação. Qual é o efeito imediato quando se faz esse movimento? O salvamento de vidas. O evento não deixa de ocorrer, mas salvamos vidas. É exatamente isso que precisamos buscar priorizar através dessas iniciativas.
IHU – Qual é a perspectiva em relação ao futuro?
Francisco Eliseu Aquino – Em 2030, 2040, 2050, esses eventos estarão mais presentes.
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Foto: Defesa Civil/RS