Flores para Allende: o Chile ri e canta. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

¡Canto que mal me sales,
cuando tengo que cantar espanto!
(Victor Jara. Estadio Chile. 1973)

Um Chile que ri e canta. O outro que grita de dor e chora. As lembranças dos dois Chiles, às vezes fugidias, às vezes intensas, ocuparam a mente de mais de cem ex-exilados brasileiros da comitiva Viva Chile, que nesta semana visitaram Santiago para percorrer os caminhos da memória. Buscamos recolher os passos dados há mais de meio século. Depositamos flores no monumento a Allende e agradecemos ao povo chileno a generosa acolhida.

No Estádio Nacional, agora musealizado, a água salgada de algumas lágrimas engrossou o rio Mapocho como no poema do chileno José Soffi do séc. XIX: “rio, rio, si lo aumenta el llanto mio”.  Alguns puderam ver seus nomes e fotos na visita ao local do crime. Angelina Peralva e Solange Bastos reconheceram a cabine usada como cela na qual estiveram presas, assim como o paraibano Yedo, cuja filha Yeda, nascida no exílio, espera que o pai a partir de agora consiga dormir sem sobressaltos.

Cantando o espanto

Impossível registrar aqui nomes de todos os integrantes da comitiva Viva Chile. Muitos foram encarcerados em outro centro desportivo – o Estádio do Chile, onde foi torturado e assassinado com requintes de crueldade o cantor Victor Jara, que agora dá o seu nome ao Ginásio. Seus últimos versos escritos no Estádio do Chile falam da dificuldade de cantar o espanto diante das atrocidades. Qué parabienes tristes tengo que cantar yo – profetiza  Rolando Alarcón, falecido meses antes do golpe.

A caravana brasileira, que reviveu 50 anos em 10 dias, percorreu outros lugares que registraram a barbárie: o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, a Casa Londres 38 – conhecida como a Casa do Terror, a Casa José Canas, de propriedade do casal de sociólogos brasileiros exilados Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra  cedida à Embaixada do Panamá para acolher dezenas de asilados e depois transformada em prisão e centro de tortura.

Outros eventos contaram com a presença dos ministros Flávio Dino e Silvio Almeida, do deputado federal Nilmário Miranda e do atual embaixador do Brasil no Chile, Paulo Pacheco, que discursaram na inauguração de duas placas na praça Brasil com os nomes dos brasileiros assassinados. Mas o discurso potente feito em espanhol veio da diplomata aposentada Sílvia Whitaker, que era criança exilada no Chile e de repente virou adulta naquele 11 de setembro de 1973:

– Soy una de tantos niños brasileños que fueron felices en Chile en aquellos años tan especiales de la Unidad Popular […] Esa fue la cuna en la que tuvimos la suerte de crecer antes que nos atropellara la violencia y el espanto. Todos sabían lo que se venía, pero nosotros no. Éramos niños. Fuimos abruptamente arrancados a nuestras vidas – la casa, los amigos, el perro, la inocencia.

Cada instituição visitada e cada evento exigem crônica à parte, incluindo a exposição de Evandro Teixeira, o único fotógrafo a registrar em imagens a morte de Pablo Neruda. Mas hoje, aqui, o foco será centrado nas lembranças do Chile democrático no qual vivi. No momento do golpe, já me encontrava longe do terror, no Peru, encenando peças com o Teatro de Bonecos Dadá. Agora, nessa visita coletiva, tentei buscar vestígios do Chile que ria e cantava.

La Piojera

Chile Rie y Canta era uma peña – nome pelo qual nos países hispanos americanos é conhecido o lugar onde artistas cantam músicas folclóricas. Foi criada pelo radialista René Largo nos anos 1960. Faz mais de meio século, com o casal Euclides e Adair, fomos lá para curtir o Conjunto Cucumén (Murmúrio d’água em mapudungun – a língua do povo Mapuche). Ouvimos Rolando Alarcón cantar  Parabíen de la paloma e Silvia Urbina canções que não me lembro mais. Foi a primeira vez que vimos bailar cueca.

O golpe sangrento de Pinochet emudeceu o Chile, que parou de rir e cantar e começou a gritar e a chorar. As peñas foram fechadas. Victor Parra foi assassinado. Perseguidos e presos, muitos cantores encontraram o caminho do exílio como Isabel Parra, seu irmão Ángel, Payo Gondrona  e o próprio René Largo, que abriu a peña nos países por onde andou – Argentina e Colômbia entre outros.

Na busca do lugar da antiga Peña Chile Rie y Canta,  que na minha lembrança era próxima ao Mercado Central, a memória me traiu. Lá encontrei La Piojera, cujo nome foi dado sem querer por Alessandri, ex-presidente de direita conhecido como La Viejuja nas páginas irreverentes de El Clarin. Reza a lenda, que convidado a ouvir música num bar pé-sujo, que lembra a Lapa dos velhos tempos do Rio, La Viejuja sentiu cheiro de suor de pobre e  foi embora, reclamando:

– Qué mierda es esa piojera?  

A partir de então, o bar, que sempre existiu ali com outro nome adotou esse, algo assim como “A Piolhenta” ou “Ninho de piolhentos”.  Só de birra.

O canto e o riso

Lá em La Piojera um velho chileno me informou que Chile Rie y Canta funcionou em dois lugares: primeiro na rua Alonso Ovalle 775 até 1973. Me mandei para lá, mas encontramos um edifício de 12 andares, a casa havia sido demolida. Depois, em seu retorno do exílio, nos anos 90, o radialista instalou a peña num casarão na rua San Isidro, 266. Com o assassinato de René em circunstâncias que ninguém soube explicar, a peña fechou. Fui lá. Encontrei um edifício de 27 andares sem nenhuma placa alusiva à sua anterior ocupação, como é comum encontrar nos edifícios de Paris. Mesmo assim, acredito ter ouvido sons de guitarra na frente dos dois edifícios. Afinal, a gente ouve o que precisa.

A memória do Chile que gritou e chorou está mais documentada do que a do Chile que ri e canta. Recolhendo meus passos, observei, como no poema do amazonense Ernesto Pennafort, que “dos passos que foram dados, nem marcas restam no chão”. E onde foram parar os nossos sonhos alados? Não encontramos nem resquícios de suas asas pois “foram todos sonhados no espaço de um porão”.

Uma das funções nobres do canto e da poesia em sociedades oralizadas como as nossas, além de inundar a alma de alegria e de provocar um prazer estético, é contribuir para preservar a memória. Por isso, nos regimes ditatoriais que censuram as manifestações artísticas, o povo fica triste, deixa de ouvir música e de cantar. Desta forma, se rompe um elo na cadeia de transmissão de uma geração à outra. Foi o que aconteceu com Manuel Rodríguez, herói da Independência do Chile, que corresponde mutatis mutandis ao Tiradentes no Brasil.

Neste mesmo Estádio Nacional, antes de virar centro de tortura, assisti, em 1970, Santos x Colo-Colo. Os alto-falantes começaram a tocar antes do jogo a Tonada de Manuel Rodríguez, o poema musicado de Pablo Neruda. Os torcedores se levantaram e cantaram a plenos pulmões, solenemente, como se fosse o Hino Nacional. O poema conta a trajetória de Manuel Rodríguez, sua luta, seu assassinato aos 33 anos pelo exército espanhol.

Taquiprati, carabineiro

Em 2006, de passagem por Santiago, procurei nas lojas de cds La tonada, assim como Un hijo llamado Manuel de Violeta Parra. Os vendedores jovens desconheciam as músicas e sequer sabiam quem foi Manuel Rodríguez. Cantarolei para eles as duas canções, inutilmente. Como foi possível em apenas três décadas e meia esse esquecimento e o do próprio  Manuel Rodríguez, nome de rua no centro de Santiago? O apagamento da ditadura pinochetista foi eficaz?

No dia da sua Festa Nacional, segunda-feira (18), o Chile voltou a rir e a cantar no meio de todas as contradições do governo Boric. A imagem de Allende inundou Santiago, está nas camisas, nas bandeiras, no metrô, nos bares, nos muros da cidade. Por todos os lugares, “se siente, se siente, Allende está presente”. Ou como cantam as crianças “Pica el ajo, pica el ají, Allende presente, claro que si”.

Quanto à repressão, quem resumiu os nossos sentimentos foi a exilada Solange Bastos, que deu um bombástico cotoco para os carabineiros, responsáveis pelas mortes de tantas palomas, símbolos da paz, “sabiendo que eram inocentes”. Embora sob certo controle do governo democrático de Boric, eles continuam atuantes. Nós também. A esperança não morre.  Como canta Rolando Alarcón, “castiguemos al culpable por la muerte de la paloma, no lo perdona el palomo”. A resistência continua: Ni olvido, ni perdón.

P.S. Veja nos próximos capítulos: visita às antigas moradas dos brasileiros exilados, na Michimalongo com Silvio Tendler. Também a participação no evento com lideranças mapuches em Temuco, Sul do Chile.

Obs: Créditos: fotos retiradas do grupo Viva Chile, entre outros autores Miguel Bastos e Maria José Freire, que acompanharam seus genitores ex-exilados.

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