Edmundo obediente. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Edmundo tem hora para acordar, hora para pegar o ônibus e hora para começar a trabalhar. Trabalha obedecendo protocolos e chefes que também obedecem seus próprios protocolos. Edmundo nunca foi livre. Nunca se sentiu livre. Nem mesmo sabe se o que sente é coisa sua mesmo ou só obediência às circunstâncias que o conformam.

Sempre foi obediente no cativeiro de sua vida de trabalhador. Obedeceu, esperando a promoção que não veio. Esforçou-se pelo aumento que não veio. Mas nunca reclamou, porque tem medo da fome que pode vir se perder o emprego. Sabe que reclamar é coisa de quem é livre. Sabe que não é livre. Liberdade é para quem pode. E ele só pode obedecer e sorrir. Edmundo é risonho, mas não é feliz.

Num dia de melancolia, depois de humilhado por um sujeito que manda nele porque o pai dele manda em toda a empresa, desabafou com Cândido, seu vizinho. Conforme-se, aconselhou o amigo. Hoje, a vida traz tristeza, amanhã, alegria. Obedeça e aguarde.

Edmundo obedeceu e aguardou. E a vida lhe trouxe Edite. Apaixonou-se. Sentiu-se cativo de seus sentimentos por Edite. Enfim, um bom cativeiro, pensava. Talvez a vida não passe de cativeiros bons e ruins. De prisões perversas ou amorosas ou, ainda, de algum equilíbrio entre elas. Edmundo as equilibrava. Conformava-se no trabalho para juntar dinheiro para viver preso em seu amor por Edite.

Na favela em que morava, Edmundo vivia obediente às regras do tráfico. E também às da polícia, que sempre o tratava como bandido até que sua submissa obediência lhes demovesse os paranoicos ânimos violentos.

Viveu muito tempo assim, na corda bamba a engolir sapos e obediente entre necessidades, desejos e conflitos. Leva a vida oscilante entre a conformidade e a esperança de um dia ser deixado em paz e não mais precisar obedecer a mais ninguém que não sua própria razão e sentimentos.

Da espera, veio um tiro. Bala perdida, disseram na comunidade. Acertou em cheio o coração de Edite. Coração que já era seu. Que já era o seu. Edmundo desconformou-se. Pulou sobre o corpo frio de Edite, empurrando para longe o policial que queria arrastar seu corpo pelo pé. Recebeu um chute na cara. E outro. E outros. Foi preso. Traficante, disseram. Mais um vagabundo.

Por muito tempo, Edmundo calou-se. Nada disse ao delegado que o interrogava sobre drogas, planos, traficantes e outras coisas para as quais, ainda que falasse, não tinha o que dizer. Nada disse ao juiz e nem ao promotor. Ficou o que a polícia dissera dele antes: traficante.

Enjaulado, era de se esperar dele ainda mais obediência, agora submisso ao aperto do espaço quente e fedorento da cela superlotada. Estranhamente, os outros presos o deixavam em paz. Talvez, por estranharem seu silêncio e olhar que oscilava entre o vago e o penetrante. Ou, talvez o contrário, por conhecerem muito bem aquele silêncio e aquele olhar.

Sob o silêncio de sua boca, sua mente era puro som e fúria. Revolta por tudo que obedeceu. Por toda violência moral, econômica e social a que se submeteu, resignado e esperançoso, até aquele momento em que a violência no seu estado mais bruto corroeu-lhe em definitivo a alma já carcomida de tanta obediência calada.

Segue no silêncio. Como uma bomba inerte. Terra obscura onde germina a brutalidade plantada por quem mantém obediente gente como Edmundo. À espera de libertar-se, de eclodir em revolta, sangue e morte, Edmundo segue preso em si mesmo, obediente a obediências que não suporta mais, que nunca soube seus porquês, tampouco seus para quês e nem até quando.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

 

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