O marco temporal, os Mapuche e a corrida da cerca. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

“Alados guardianes de nuestra tierra que nos alertan de cualquier peligro.
Orador incansable de la madre tierra:¡Trüliliu Trüliliu Trüliliu Trüliliu”.
(Lorenzo Aillapán Cayuleo. El Queltehue. El Guardián Avisador, 1997).

Quando contei a líderes Mapuche em Temuco, no sul do Chile, que no Brasil se estava discutindo a tese do “marco temporal” para demarcar as terras indígenas, eles comentaram que haviam passado por algo similar. Relataram que a forma de luta usada foi aquela conhecida como a corrida da cerca. Foi durante o Seminário de Educação Artística, do qual participei a convite do Ministerio de las Culturas, las Artes y el Patrimônio na quinta-feira (14). No Chile, o Ministério é “das Culturas”. No plural. Como corresponde a um país que reconhece a sua diversidade.

Uma semana depois, na quinta (21), cantos e danças de lideranças indígenas de várias culturas acampados em uma tenda em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, comemoraram a rejeição histórica do Plenário por 9 votos a 2 da tese do “marco temporal”. Agora, a data da promulgação da Constituição Federal de 1988 não pode mais ser usada para impedir a demarcação de terra indígena.

A presidente do STF, Rosa Weber, última a votar, foi clara: “o direito dos povos indígenas sobre suas terras é um direito fundamental, anterior à criação do estado brasileiro, que deve respeitá-lo”. Os Kanamari vão sentir falta de sua Raminah e os Yanomami da doce Xororima (Andorinha), nomes com os quais a batizaram. O Brasil sedento de justiça vai ter saudades dela, que se aposenta agora. Esperamos que a ministra Carmen Lúcia, a Maiama guerreira dos Yanomami, não fique sozinha no meio do macharal.

Boa-fé?

Foi uma vitória sim, mas a luta continua, porque vários ministros, embora contrários ao “marco temporal”, condicionaram a demarcação das terras indígenas à indenização aos “ocupantes de boa-fé” pelas benfeitorias realizadas e até pela terra nua.  “Hic culum cotiae sibilare”, como diria Orozimbo Nonato. Aqui a porca torce o rabo e o fiofó da cutia assovia.

Que boa-fé é essa? Sabemos que todo o continente americano era habitado por povos, que não consideravam a terra como uma “propriedade”, eram eles que pertenciam à terra e não o contrário. Não precisavam registrar as terras em inexistentes, dispensáveis e lucrativos cartórios trazidos pelo colonizador.

A compra e venda de terras começou a ser certificada por tabeliães a partir da administração colonial. Nos arquivos cartoriais, porém, não existe sequer um único documento no qual conste que os povos originários venderam suas terras aos que dizem ser seus atuais proprietários ou a seus antepassados.

Portanto, toda propriedade privada de terra tem em sua origem o roubo de terras ancestrais ocorrido, muitas vezes, em data recente. O marco temporal da ocupação por não indígenas no Brasil é 22 de abril de 1500. Quem registrou a propriedade da terra após essa data, deve desocupá-la e pagar a seus ancestrais habitantes as benfeitorias encontradas: a preservação da vida na floresta, os rios cristalinos, as flores, os frutos, os pássaros e até a sumaumeira, onde mora o Curupira.

Ninguém é santo nessa história. Quem deve indenizar o “ocupante de boa-fé” – se é que existe – é quem para ele vendeu de má-fé. O orçamento do Estado não vai poder cobrir tais gastos, o que vai gerar mais conflitos ainda, como ocorreu com os Mapuche que somam mais de 1.800.000 pessoas, segundo o Censo do Chile de 2017, além dos 113.680 que habitam a Argentina. Os exércitos desses dois países, já independentes, apoiaram a usurpação das terras indígenas, num processo de colonialismo interno.

Corrida da cerca

Somente depois do processo de “pacificação” da Araucanía, final do séc. XIX, é que o estado-nação chileno reconhece, através dos Títulos de Merced, o território Mapuche, já bastante reduzido em tamanho. Esses documentos foram entregues às comunidades mapuches entre 1884 e 1929.

Mesmo assim, tais acordos não foram cumpridos. As invasões continuaram ao longo do séc. XX: indústrias papeleiras desmataram áreas enormes para plantar eucaliptos, que consomem muita água. Animais e plantas foram extintos. O uso de agrotóxico destruiu o meio ambiente e poluiu os rios.  As hidroelétricas acabaram com os peixes.

Sem consultar os Mapuche como manda o Direito Internacional e desrespeitando os acordos legais, empresas e fazendas cercaram o território das comunidades indígenas e transformaram a área em um deserto. Esse filme nós já vimos aqui no Brasil protagonizado, entre outros, pelos Tupinikin. Foi aí que os Mapuche perderam a paciência e adotaram como forma de luta a “corrida das cercas” a partir de 1969, no governo Frei (Democracia Cristã) e intensificada no governo Allende.

A mobilização mapuche estava vinculada ao MCR – Movimiento Campesino Revolucionário. Naquelas terras que lhes foram roubadas, os Mapuches agiam coletivamente. Durante a noite, arrancavam as cercas das fazendas, corriam com elas madrugada adentro, quando fincavam as estacas no lugar delimitado pelos Títulos de Merced incorporando assim as terras que lhes foram subtraídas recentemente.

Essa forma de reapropriação do território foi interrompida em setembro de 1973 pela ditadura de Pinochet, que reprimiu o povo Mapuche, perseguiu e assassinou seus dirigentes, em massacres documentados no Memorial Meli Che Mamül, com quatro esculturas em madeira, em homenagem a 162 mapuches presos, executados ou desaparecidos.

Vale de Lágrimas

Fresia Catrilaf Balboa, que conheço há mais de 20 anos e Sara Carrasco Chicahual, profissionais do Arquivo Regional da Araucanía, nos guiaram em visita ao Memorial situado no Parque Municipal Isla Cautín, às margens do rio Cautín, em Temuco. O lugar abriga um Kuel, uma pirâmide ritual que lembra os mortos para que suas almas descansem em paz. Sua construção é produto de pesquisas da Asociación de Investigación y Desarrollo Mapuche (AID), em base à documentação escrita e entrevistas com familiares das vítimas.

O espaço, conhecido como “Vale de Lágrimas”, era usado até 2004 como lugar de manobra militar, exercícios de tiro e treinamento do Regimento Tucapel. Lá, em janeiro de 2018, foram colocadas pedras de granito de Quinquén, nas quais foram embutidas placas de metal com os nomes, as idades, as comunidades de cada uma das 162 vítimas, entre elas um bebé assassinado com 15 dias de vida. Uma placa perto de uma centenária e gigantesca árvore de boldo informa:

A los mártires Mapuche detenidos, desaparecidos y/o ejecutados políticos durante la dictadura (1973-1990).  

A esperança se reavivou na visita feita a Zunilda Lepin Henriquez – la Zuni – cuja função é a de “cuidadora de sementes”.  O cuidado, o cultivo e a troca de sementes – o trafkintu – mantém viva a tradição milenar de preservar a variedade genética das plantas. Ela mantém um restaurante, que só usa alimentos orgânicos da própria horta cultivada há mais de trinta anos, com sementes locais e de outros países, inclusive do Brasil, de onde importou um tipo de feijão chamado de “poroto bombero”.

La Zuni foi reconhecida oficialmente pelo Estado chileno como Tesoro Humano Vivo da mesma forma que o poeta Lorenzo Aillapán Cayuleo, conhecido como “Homem Pássaro”. Capaz de interpretar o canto das aves, publicou vários livros de poesia, entre outros “72 pájaros” e editou o disco Veinte poemas alados, uma espécie de tratado de ornitologia em versos.

A lembrança do poeta surgiu durante a palestra que fiz no Seminário de Educação Artística sobre os projetos de literatura do Peru– Los Cuentos Pintados, da Colômbia – Territórios Narrados e do Brasil – Narrativas Gráficas. Ramón Cayumilln e Joel Maripil, dois líderes mapuches me pediram o texto integral do conto “A sogra do Jacamin”, um mini-tratado de ornitologia das aves da Amazônia.

Senti a proteção do  Queltehue, o pássaro orador guardião da Mama Pacha, que nos alerta sobre os perigos: ¡Trüliliu Trüliliu Trüliliu Trüliliu”.

P.S. Fotos de Maria José Alfaro Freire, que foi ao Chile para dirigir o documentário “Recolhendo os passos” da Raccord Produções. Outras fotos capturadas na internet.

Referências:

1. Lorenzo Aillapán Cayuleo: Hombre Pájaro. Casa de las Américas. La Habana. 1994
2. José Bengoa: Historia del Pueblo Mapuche, Chile. Ediciones Sur. Colección de Estudios Historicos. 1985
3. Conversas com Fresia Catrilaf, Sara C.Chicahual, Ximena Barberán, Milla Rai, Daniela Cobos, Zunilda Lepin, Ramón Cayumilln e Joel Maripil. A eles, meu muito obrigado: Chaltu may.

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