De volta ao lar no Chile: a nossa cetutxiá. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

Si van para Chile / les ruego viajeros /
visiten las casas / donde vivieron.

(Paródia da canção “Si vas para Chile”)

Foi o que fizemos alguns de nós ex-exilados no entremeio da agenda oficial da Comitiva Viva Chile: visitamos as pensões onde moramos, percorrendo os caminhos da memória. O que buscávamos, na verdade, era a cetutxiá – assim os Fulniô de Pernambuco, denominam “moradia” na língua Yaathé. A tradução  mais próxima é “lar” e não “casa”, cetutxiá não é um imóvel, que se pode vender, mas um lugar inegociável de alegria, de afeto, de paz e serenidade.

Com fixação obsessiva pelas lembranças das diversas cetutxiás que me abrigaram ao longo da vida, cada vez que retorno a Manaus faço o longo trajeto do aeroporto até o bairro de Aparecida. Somente para contemplar o Beco da Bosta, onde jogávamos bola driblando o esgoto a céu aberto, e a casa onde nasci e vivi – um lugar de alegria, ao menos nas lembranças seletivas e idealizadas da infância. Foi isso o que ocorreu agora, no Chile, na busca das cinco cetutxiás por onde passei.

Na chegada a Santiago, em outubro de 1969, houve a acolhida da dona da pensão da Calle Dieciocho, 48 com panqueca salpicada de mel no café da manhã. Algumas recordações e sentimentos se embaralham. Como esquecer o cheiro de óleo de peroba exalado pelo assoalho de madeira brilhante da sala da pensão, se era com esse óleo que a Das Dores, nossa vizinha de infância, hidratava os seus longos cabelos negros espalhando o perfume por todo o beco?

Às vezes, a memória olfativa do passado é mais forte do que a experiência do presente, explode o tempo e a geografia. Não lembrava mais como era a fachada original do prédio em Santiago, que deixou de ser pensão. Mas quando posei agora diante dele para uma foto, juro – quero ver minha mortinha no inferno se minto – que senti o aroma dos cabelos da Das Dores vindo lá de Manaus.

Aquisito nomás

Foi curta a passagem pela “Dieciocho¨. Almino Afonso, o Demóstenes do Alto Purus, então consultor da OIT – Organização Internacional do Trabalho, logo me encaminhou, através da “Caixinha”, para outra pensão na Calle Michimalongo, 141, com 3 quartos e 12 camas ocupadas por brasileiros. Meio século depois, marcamos, no sábado (16), uma visita em companhia do cineasta Silvio Tendler, que lá morou e está dirigindo documentário sobre a memória, com foco sobre exilados no Chile.

Depois de mais de meio século, a casa mudou, mas as recordações ficaram. Lembramos da doce Juanita, a empregada mapuche, que nos servia cazuela ou paila de huevos no almoço; de dona Adriana, a proprietária, que preparava o pastel de choclo e de seu maridodon Carlito, que retirava os penicos dos quartos e jogava seu conteúdo na rua.

– A pensão era um enclave do Brasil em pleno Chile. Recém exilado, eu aprendia a língua aquisito nomás – disse Silvio, apontando a casa e completando: – Aqui  testava novos sabores e outros cheiros.

Dona Adriana sempre amanhecia gritando, dando esporros na Juanita, mas nos raros dias em que despertava cantarolando, don Carlito assobiava uma cueca. O titiriteiro Euclides, colega de quarto, vaticinava em portunhol com um trocadilho pornográfico:

–  Esta noite, don Carlito pediu papa em bar e convidou dona Adriana: “Si tú me amas como yo te amo, amémonos por donde meamos”.

Na conversa diante da antiga pensão, o sacana do Sílvio confidenciou para minha filha algo já narrado com detalhes, em 2012, na crônica Na cama com Silvio Tendler:

– Nesta casa, seu pai e eu dormimos na mesma cama. Posso ser sua mãe. Exijo, embora tardiamente, um exame de DNA.

Não foi preciso. Ao se despedir, Maria José retomou costume antigo e pediu:

– Sua bênção, mamãe!

Vovô Salvador

O cineasta antes de abençoar mostrou foto do dia anterior, na qual aparece ao lado de Márcia Allende, neta do ex-presidente, na casa onde viveu o avô dela. Com uma cara de desembargador, sentenciou:

–  Devolva imediatamente as moedas roubadas do cofre da Márcia.

A sentença me fez voar para outra cetuxiá. Isabel Allende, mãe de Márcia, viajou de férias e cedeu por um mês seu apartamento em uma torre do bairro da Providencia a Thiago de Mello e Lurdinha, que me levaram com eles. Num fim de semana, o poeta viajou para Valparaíso. Seu filho Manduka e eu ficamos sozinhos, nada havia para comer e estávamos sem um escudo, a moeda chilena da época.

Foi aí que vimos o cofrinho. Na realidade, não pertencia à Márcia, que nem era nascida, mas a seu irmão Gonzalo, então com quatro ou cinco anos. Com um arame, retiramos as moedas, o suficiente para comprar um pacote de macarrão, que matou nossa fome. Posto que Thiago no seu retorno repôs as moedas, não procede a sentença prolatada pelo desembargador Tendler. Era ab re esse como diria o jurista de nome retumbante, Orozimbo Nonato, ex-presidente do STF.

Da calle Michimilango refiz o trajeto percorrido diariamente há meio século com o titiriteiro Euclides até a Biblioteca Nacional, lá ele pesquisava sobre teatro de bonecos e eu devorava literatura hispano-americana. Daí, um pulo à Calle San Diego, 245, ao lado do qual se instalou depois uma farmácia, em frente ao Teatro Cariola, onde outro amigo, Tarcísio Lage, hoje residente na Holanda, alugou apartamento, que compartilhou generosamente comigo. Se esse apartamento falasse, Tarcísio, que estava na comitiva do Viva Chile, seria deserdado por sua mãe dona Feliciana, lá de Abaeté (MG), católica apostólica romana, que rezava diariamente o rosário pela alma de seu filho. Em vão.

Fijáte

A pensão da Calle Grajales foi a última cetutxiá visitada. Fiz questão de fazer o mesmo caminho a pé, quando há mais de meio século descíamos pela Alameda Bernardo O´Higgins. Costumávamos habitualmente acelerar o passo diante da Embaixada do Brasil, um palacete do séc. XIX, protegido com grades de ferro, que ocupa um quarteirão, com outra entrada pela Alonso de Ovalle. O embaixador Câmara Canto, um pilantra a serviço da ditadura, que apoiou o golpe de Pinochet, espionava os exilados brasileiros.

No anexo da Embaixada, funcionava o Centro Cultural Brasil-Chile, que no governo de Goulart era dirigido por Thiago de Mello e depois foi ocupado por adidos militares. Atualmente leva o nome do poeta: Espacio Cultural Thiago de Mello, onde nos detivemos. Dobramos à esquerda na Calle Vergara, três quadras depois, na esquina con Grajales, 1898, estávamos diante da antiga pensão, um prédio de três andares, hoje sede da Facultad de Psicologia da Universidad Diego Portales. 

O prédio agora cinza, antes amarelo, albergava o triplo de hóspedes da Michimalongo, talvez por isso a comida não era tão boa. Minha imaginação entrou por cada uma de suas janelas, invadiu os quartos para ver agora os fantasmas dos exilados com suas histórias e entrou no refeitório. Duas vezes na semana, serviam rim bovino, que não era bem lavado e exibia nervos e gordura, com cheiro duvidoso, que o caldo Maggi e a parca dose de vinho branco não conseguiam dissimular.

Vi a janela do quarto que hospedou Vitório, meu amigo da Casa do Estudante do Brasil, no Rio, que chegou a Santiago com histórias mirabolantes. Na sua fuga, na fronteira com o Uruguai, a polícia brasileira teria atirado nele e em sua companheira. Os dois pularam no rio Jaguarão. “Tchibum” – ela complementava a narrativa dele com o barulho dos corpos caindo na água para dar mais realismo a cena. Era excelente contrarregra, mas não sabia nadar. Ele gritou:

– Pula no toco, minha Nêga.

E saiu nadando, empurrando o toco: chuá, chuá. A gente se divertia, o casal de imaginação fértil gostava da brincadeira.

A dona desta pensão, cujo nome deslembrei – fíjate – tinha uma espécie de cacoete ao falar – fíjate – equivalente ao nosso “sacou”.  Ela intercalava após uma sequência de palavras – fíjate – a expressão aspirada, que saía lá de dentro da laringe em longo suspiro – fíjate – como se estivesse se afogando – fíjate – e assim retomava o fôlegoParo por aqui – fíjate – porque leitores que já são raros – fijáte – estão reclamando do textão. Fíjate. Saudades do Chile de Allende, onde antes do terror, foi possível viver – fíjate – em alegres cetutxiás.

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Referências do Taquiprati

http://www.taquiprati.com.br/cronica/1713-o-marco-temporal-os-mapuche-e-a-corrida-da-cerca-con-version-en-espa – O marco temporal, os Mapuche e a corrida da cerca (24/09/2023)

http://www.taquiprati.com.br/cronica/1712-flores-para-allende-o-chile-ri-e-canta-abajo-version-en-espa Flores para Allende (17/09/2023)

http://www.taquiprati.com.br/cronica/1711-chile-aos-17-o-casaco-do-thiago-e-a-caixinha-abajo-verson-en-espa Chile aos 17: O casaco de Thiago e a Caixinha (10/09/2023)

http://www.taquiprati.com.br/cronica/1710-indo-recolher-os-passos-no-chile  Indo recolher os passos no Chile (03/10/2023)

https://www.taquiprati.com.br/cronica/1403-te-recuerdo-victor-jara-la-vida-es-eterna – Te recuerdo, Victor Jara: la vida es eterna (08/07/2018)

https://www.taquiprati.com.br/cronica/1052-o-dia-em-que-fiz-um-cafe-para-allende-un-cafecito-para-allende – O dia em que fiz um café para Allende – Un cafecito para Allende (15/09/2013)

https://www.taquiprati.com.br/cronica/1012-na-cama-com-silvio-tendler-  Na cama com Silvio Tendler. (23/12/2012) 

https://www.taquiprati.com.br/cronica/162-um-filho-chamado-manuel- Um filho chamado Manuel (26-11-2006)

https://www.taquiprati.com.br/cronica/1021-dona-taci-a-sabedoria-fulnio – Dona Taci: a sabedoria Fulniô (24/02/2013)

 

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