No dia 27 de setembro, senadores aprovaram, em regime de urgência, o projeto; o documento foi protocolado no dia seguinte
A Comissão Guarani da Verdade protocolou, na última quinta-feira – 28 de setembro de 2023 –, um documento direcionado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No texto, os indígenas solicitam o veto total ao Projeto de Lei (PL) 2903/2023, antigo PL 490/2007. A proposição foi aprovada pelo Senado Federal no dia 27 de setembro – tanto pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) quanto pelo Plenário da Casa.
“Além do marco temporal, o PL insiste na ‘emancipação do índio’ conforme projeto do Rangel Reis durante a ditadura militar. Também retira o usufruto exclusivo ao permitir, sem consulta aos povos, a construção de obras, arrendamentos e exploração mineral, bem como a liberação do cultivo de transgênicos em terras indígenas”, explicam representantes da Comissão Guarani da Verdade.
Um dos aspectos centrais do PL 2903/2023 é o estabelecimento da tese do marco temporal como critério para a demarcação de terras indígenas: na prática, a proposta busca inviabilizar novas demarcações de terras indígenas, barrar os processos demarcatórios em curso e abrir as terras já demarcadas para a exploração predatória.
Confira abaixo o documento na íntegra:
Presidente da República
Sr. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Brasília – DF
Assunto: Veto Imediato do PL 2903/2023 Senado Federal
Ilmo. Sr. Presidente,
Falamos em nome da Comissão Guarani da Verdade, empenhada em trabalhar pelas reparações históricas ao nosso povo Avá-Guarani, no território do Paraná Rembey (moradores nas margens do rio Paraná), afetado pela Itaipu Binacional em 1982 – e ainda não reparado.
No último dia 27 de setembro de 2023, fomos surpreendidos pela aprovação, em regime de urgência, do Projeto de Lei (PL) 2903/2023, do Senado Federal, que “Regulamenta o art. 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas; e altera as Leis nºs 11.460, de 21 de março de 2007, 4.132, de 10 de setembro de 1962, e 6.001, de 19 de dezembro de 1973”.
Queremos pedir a V. Exma., o veto imediato e total ao PL 2903/2023, porque ele representa o que há de mais atrasado em termos de civilidade no Brasil, e sua implementação vai gerar mais violência contra nossos povos. Seu alcance vai muito além de fixar o marco temporal de 1988, tema já deliberado pela Suprema Corte: ele modifica toda a possibilidade de seguirmos com nosso modo de vida e permite que aquelas violências históricas, superadas com a Constituição Federal de 1988, voltem a nos assombrar.
Vejamos alguns efeitos: ao dizer que somente teriam direitos às terras aquelas comunidades que estavam sobre elas no dia 5 de outubro de 1988, estão alimentando a injustiça histórica, já que nosso povo foi expulso em 1982 e nossa terra ficou submersa no lago da Itaipu, nunca reconhecendo nosso direito à terra; o § 4º do Artigo 16 ao tratar da “alteração dos traços culturais” é profundamente racista ao não aceitar que as culturas são dinâmicas e mudam, trata os povos indígenas como sem histórica e congelados no tempo.
Essa violência já passamos com a Funai (atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas), quando em 1980 o órgão indigenista fez laudos fraudulentos dizendo quem era e quem não era Guarani em virtude de traços físicos; inclusive no inciso I desse parágrafo diz que, na medida que os indígenas vão “alterando seus traços culturais” e se integrando a sociedade, às terras por nós ocupadas podem ser retomadas pela União “dando-lhe outra destinação de interesse público ou social”, retomando o projeto de integração do índio a sociedade nacional” do ex-ministro da ditadura militar Rangel Reis; o Art. 20 além de afrontar a constituição Federal afronta também a convenção 169 da OIT ao liberar nossas terras para todo tipo de projeto governamental, “independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”.
O § 2º Art. 26 abre as terras indígenas para arrendamento e qualquer outra atividade de terceiros através de “celebração de contratos que visem à cooperação entre indígenas e não indígenas para a realização de atividades econômicas, inclusive agrossilvipastoris”; o Art. 30. “modifica o art. 1º da Lei nº 11.460, de 21 de março de 2007”, para permitir o cultivo de plantas geneticamente modificadas nas nossas terras.
Essas são algumas maldades contidas nesse PL, que, se mantido, será o maior gerador de violência contra nossos povos.
Contamos com seu veto na totalidade.
Paraná Rembey, 28 de setembro de 2023.
Teodoro Tupã Alvez – Tekoha Itamarã
Simão Vilialva – Tekoha Ocoy
Oscar Benites – Tekoha Yva renda
Pedro Alves – Tekoha Itamarã
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Marco temporal é uma escolha retórica oportunista e criminosa de convencimento, desprovida de fundamento jurídico e doutrinário que busca açoitar ainda mais os povos indígenas do Brasil. Foto: Bianca Feifel