Ao enviar a Força Nacional ao Rio, Ministério da Justiça dá um passo em falso. Medida compõe um inventário de soluções imediatistas — e falsas — para a insegurança. E parceria permitirá a governador dividir o ônus do banho de sangue que promove
por Luiz Eduardo Soares, em Outras Palavras
Como a violência tem sido dramática e constante, é compreensível que as primeiras perguntas dirigidas a quem estuda, pesquisa ou trabalha com segurança pública exijam respostas práticas. Por exemplo: quais deveriam ser as medidas imediatas para de fato diminuir o “poder paralelo do crime” no Rio? O que fazer, concretamente, objetivamente? Os advérbios variam, ecoando a expressão “de fato”, que enfatiza a cobrança para que a resposta solicitada na indagação anterior seja realista e aplicável. Pois é aí que começam os problemas. A busca por medidas imediatas tem sido parte de nossa tragédia, no Rio de Janeiro. De um lado, há as forças da inércia, interesses corporativistas e articulações corruptas, que se aliam ao medo da população, bloqueando mudanças. Por essa razão, o discurso hegemônico é: mudar significa render-se aos bandidos; é preciso fazer mais do mesmo com mais intensidade. O que falta é intensidade, força, violência, mais execuções extrajudiciais e mais encarceramento em massa. Do outro lado, há os que desejam mudanças, mas clamam por “medidas imediatas”. E assim vivemos sob o regime do pêndulo: ou se aplaude a barbárie policial e penitenciária, que vem provocando a insegurança generalizada e o genocídio de jovens negros dos territórios vulneráveis, ou se exige solução imediata, que, por ser absolutamente impossível, ante um quadro tão complexo, acaba se tornando apenas uma autorização para pseudo-soluções militarizadas (GLOs, ocupações, intervenções das Forças Armadas, etc).
Já passou a hora de amadurecermos, como sociedade, e de adotarmos uma perspectiva minimamente racional, o que nos levaria a reconhecer, em primeiro lugar, que as políticas e os métodos empregados até aqui não funcionaram. Ao contrário, seu fracasso tem agravado os problemas. O negacionismo é o primeiro obstáculo a vencer. A militarização é nossa cloroquina. Temos de partir da admissão do imenso fracasso do que tem sido feito. Fracassaram a lei de drogas, o encarceramento em massa de varejistas do comércio de substâncias ilícitas, a entrega do sistema penitenciário ao domínio de facções criminosas, a invasão bélica de favelas como forma de “combater o crime” e controlar o fluxo das armas, a sistemática violação dos princípios constitucionais, por parte das polícias, em nome de uma inexistente efetividade no enfrentamento do crime. Tem fracassado também a cumplicidade, por omissão, do Ministério Público com as execuções extrajudiciais – quanto a esse ponto, a postura do STF na ADPF 635 pode vir a representar uma oportunidade histórica de inflexão, desde que seja respeitada pelo governo do estado do Rio, o que ainda não aconteceu.
Junto com esse legado de desastres, fracassou a tolerância com a corrupção policial, tratada, cinicamente, como se houvesse apenas casos isolados de desvios de conduta individuais. Por corrupção, refiro-me principalmente aos seguintes fenômenos: (1) O “arrego”, tradicional acordo com traficantes, que tornou segmentos policiais sócios do crime; (2) As empresas ilegais de segurança privada, criadas e geridas por policiais (inclusive oficiais e delegados); (3) A expansão interna às polícias da presença de milicianos; (4) A projeção territorial e política dos interesses de milicianos policiais (e de policiais milicianos). Os quatro tópicos são fruto de uma só matriz, uma espécie de patologia (ferindo o espírito da Lei Maior): a autonomização alcançada pelas polícias, que as transformou em verdadeiro enclave institucional, refratário à autoridade política civil e ao Estado democrático de direito. Por isso, governadores não as comandam (os que tentam mudá-las). Por isso, a sua majoritária adesão ideológica ao fascismo bolsonarista, porque o enclave é herdeiro dos porões da ditadura, dos esquadrões da morte, da scuderie Le Cocq, dos homens de ouro, dos justiceiros cooptados pelo mercado do crime, dos eugenistas de plantão a serviço de poderes locais. Por isso também, o “estado de exceção” tem vigência em territórios vulneráveis. Autonomizações inconstitucionais engendram seus duplos e promovem tiranias metastáticas, degradando instituições e a vida social.
Esse inventário de fracassos nos dá régua e compasso para a construção de políticas de segurança democráticas e antirracistas, construção demorada, delicada, arriscada, mas que se impõe a nós como tarefa histórica indispensável. As transformações terão de identificar meios de reverter cada um desses quatro pontos, e dessa forma atingirão o núcleo matricial da patologia antidemocrática, que é também fundamento para a impotência do Estado.
Quanto às tentativas malogradas de resolver “de imediato” a insegurança, o Rio oferece farto repertório. Está em curso, na Maré, mais um ciclo das intervenções conhecidas. A população pobre e seus bairros são tratados como laboratórios para experiências já realizadas no passado, cujos resultados podemos, portanto, antecipar. Prisões, apreensões, mortes, suspensão de aulas e serviços médicos, mobilidade afetada, cotidiano dos trabalhadores dramaticamente abalado, o medo provocando sofrimento psíquico e adoecendo crianças, economia local atingida, e tudo isso apenas como preâmbulo ao eterno retorno do mesmo, na sequência previsível dos capítulos. Somando-se todas as iniciativas militarizadas, gastaram-se bilhões e os resultados foram pífios, dizem alguns, nulos, dizem outros, negativos, denunciam os que sofreram na pele (e por sua cor de pele) os efeitos desses experimentos perversos. Enquanto isso, a Polícia Federal dá uma pista sobre vias alternativas inteligentes e legais de ação, realizando apreensão recorde de fuzis em mansão na Barra da Tijuca, sem disparar um único tiro.
Nesse contexto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública apresenta o que denomina “Plano de Enfrentamento às Organizações Criminosas”. Sejamos francos:
não há plano, mas um conjunto de intenções genéricas, desprovidas de conteúdo claro ou articulação sistêmica, o que constitui sintoma da natureza reativa e política das medidas. Nada essencial é sequer tangenciado. Acima de tudo, choca o silêncio sobre as exigências determinadas pelo STF (as quais, vale ressaltar, não passam da saudável mistura entre o bom senso e os ditames constitucionais), no âmbito da ADPF 635. Essas exigências vêm sendo reiteradamente descumpridas pelo governo do estado. O governador resiste ao Supremo, mas o governo federal finge que não vê, e oferece ajuda, sem cobrar mudança radical de rumo. Enviar ao Rio grupamentos da Força Nacional nada significa, do ponto de vista prático, mas corresponde ao estabelecimento de uma parceria de grande significado político. O governo do Rio quer essa aliança para dividir os ônus do banho de sangue. Espero que o presidente Lula, cuja vitória já nos salvou do fascismo, recuse o abraço do afogado, que poderia nos tragar para um naufrágio futuro. Não nos esqueçamos de que o Rio é o principal berço dos inimigos da democracia.
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Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil