Direito ao aborto: perseguição e esperança

Quem é Helena Paro, médica perseguida por disseminar conhecimento sobre as melhores práticas para interromper a gravidez nos casos previstos em lei. O que seu trabalho revela sobre o uso do misoprostol – droga eficaz, segura e proibida

Reportagem especial de Gabriela Leite, em Outras Palavras

A luta pelo direito ao aborto seguro continua a agitar a América Latina. Em setembro, ele foi descriminalizado no México, via Suprema Corte. No Brasil, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou para despenalizá-lo. A discussão sobre a interrupção da gravidez em qualquer situação, por aqui, ainda se arrasta. Mas há outra luta, necessária e urgente, que deve ser travada agora: a garantia do direito ao aborto nos casos em que já é legal – a saber: quando o bebê é diagnosticado com anencefalia, em caso de risco à vida da mãe e quando a gravidez resulta de um estupro.

Uma das mulheres que está na linha de frente desta batalha é Helena Paro, médica ginecologista que trabalha no Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual, o Nuavidas, no ambulatório de ginecologia e obstetrícia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (MG). Ela atua em um dos poucos locais onde o aborto é realizado no Brasil – segundo relatório publicado em junho de 2019 pela organização de direitos humanos Artigo 19, apenas 76 hospitais realizam o procedimento. A médica está sendo perseguida.

Helena e o Nuavidas foram tema de reportagem em vídeo (que você assiste acima) realizada pelo Outra Saúde em parceria com a rede global Movimento pela Saúde dos Povos (MSP). Na ginecologia do HC de Uberlândia, funciona um dos principais centros de acolhimento de mulheres vítimas de estupro, onde o aborto pode ser realizado com rapidez e segurança. Como mostra nossa reportagem, brasileiras chegam a viajar longas distâncias para chegar ao Triângulo Mineiro e ter seu direito garantido pelo SUS.

A ginecologista já era referência na realização do aborto seguro nos casos previstos em lei, mas um projeto específico a fez ficar conhecida pelo grande público. Foi a elaboração de uma cartilha para orientar a realização do abortamento medicamentoso por telessaúde. Ela sentiu a necessidade de abrir essa alternativa às mulheres que procuravam o Nuavidas durante a pandemia. Criou um protocolo de acolhimento presencial da paciente, seguido por assinatura de termos de compromisso que permitem que ela retire um número restrito de comprimidos de misoprostol e faça o procedimento em casa, com acompanhamento por telefone. Caso necessário, ela pode entrar em contato direto, a qualquer momento, com as médicas e psicólogas do Nuavidas. Ao perceber a eficácia do protocolo, Helena quis que outros centros de saúde pudessem realizá-lo.

Perseguição

A cartilha lançada pelo Núcleo ficou mais conhecida após uma matéria do Universa, de abril de 2021. A partir de então, os ataques começaram. Eram baixos e mentirosos, como é comum na direita reacionária brasileira. Alegavam que a médica estava ensinando a fazer aborto em casa. Vereadores lançaram moções de repúdio a ela. Pipocaram matérias com manchetes falaciosas. Sua vida foi exposta. Na mais grave das ameaças, o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais abriu um processo em que a acusava de “corromper os bons costumes”, “favorecer o crime” e “não utilizar os conhecimentos científicos em prol da saúde das pessoas”.

Para Helena, o seu trabalho é justamente o contrário: disseminar o conhecimento que adquiriu com estudos e em contato com outras mulheres. Ela critica enfaticamente a falta de formação específica para realizar aborto nas escolas de ginecologia. “A maioria das médicas e médicos brasileiros não aprendeu sobre os métodos seguros para aborto induzido, o que se traduz em 95% das 200 mil internações anuais no país para realização de curetagem uterina, um tratamento obsoleto e não recomendado pela OMS há mais de 10 anos”, defendeu, em vídeo recente.

Por seu ativismo e participação em palestras para passar à frente o que aprendeu, há ainda quem tente calar a voz de Helena. A médica teve sua participação cancelada em dois eventos: em Brasília, na Defensoria Pública da União (DPU) e no I Encontro do Fórum Aborto Legal de Minas Gerais, promovido pela Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG). “Os cancelamentos ocorreram por pressão de deputados bolsonaristas e ultraconservadores. […] Repudiamos o fato de que as autoridades tenham cedido diante da intimidação moralista e reacionária de parlamentares que não têm compromisso nem com a ciência, nem com os Direitos Humanos”, escreveu a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, da qual Helena é sócia-fundadora.

A segurança do aborto com misoprostol

Um debate largamente interditado pela ignorância da criminalização é o do aborto por misoprostol, um medicamento disponível em comprimidos. A interrupção da gravidez por esse método é altamente segura, certificada por fortes evidências científicas. Pesquisa recente, feita pelo Research Group on Postovulatory Methods of Fertility Regulation, da Organização Mundial da Saúde (OMS), constatou sua alta segurança em um grupo amplo. Apenas em 0,04% dos casos houve sangramento vaginal com necessidade de retorno ao hospital por precaução. Não houve nenhum evento adverso sério.

A OMS recomenda desde 2013 o uso domiciliar seguro e eficaz do misoprostol. Em 2018, em seu principal guia sobre o tema, Medical management of abortion, a organização concluiu que o aborto medicamentoso no início da gravidez pode ser realizado em unidades de atenção primária à saúde e atendimento ambulatorial, com a finalidade de ampliar o acesso à assistência.

Aborto na América Latina

No continente, alguns países já acabaram com a proibição do aborto: Colômbia, Argentina, Uruguai, Cuba, Guiana, Guiana Francesa. A mudança mais recente aconteceu no México, com uma decisão da Suprema Corte que, em 6/9, declarou que é inconstitucional a proibição da interrupção da gravidez – um marco para a luta feminista no país. Até então, 10 dos 31 estados mexicanos já haviam legalizado o procedimento. No Brasil, Rosa Weber aproveitou os últimos dias antes de sua aposentadoria no STF para reabrir a discussão, votando para que deixe de ser criminalizado até a 12ª semana.

“A maternidade é escolha, não obrigação coercitiva”, declarou Rosa em seu voto. “Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas.” A reação da direita brasileira foi virulenta, e o tema foi um dos desencadeadores de uma crise ainda não resolvida entre o Congresso – liderado pelo “Centrão”, que atende aos interesses conservadores – e o STF.

Sobre a descriminalização geral do aborto, Helena defende: “Temos que pensar se somos a favor de que as mulheres que praticam o aborto sejam penalizadas, criminalizadas. Eu não sou a favor de que aquelas que praticam um aborto induzido sejam presas. Não existe motivos fúteis pra um uma mulher que decide realizar um aborto”.

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