Presidente derrubou pontos mais críticos do projeto aos direitos indígenas, mas ruralistas ameaçam reverter decisão
Por Texto: Anna Beatriz Anjos | Edição: Giovana Girardi, em Agência Pública
Apesar de o veto parcial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao projeto de lei que institui um marco temporal ter sido encarado como uma vitória pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e trazido algum alívio momentâneo à causa, um gosto amargo permaneceu para lideranças que pediam a rejeição total do PL 2903/23.
O tom de celebração do ministério, que atuou ativamente nas negociações que levaram à construção do veto parcial de Lula à proposta, divulgado nesta sexta-feira (20), não se reflete totalmente na opinião da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“Há que se falar, sim, de forma positiva sobre os vetos. Isso temos que reconhecer”, afirmou à Agência Pública Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib. “Pela perspectiva do governo, pode ter sido uma vitória ter alcançado o veto parcial. Mas, para o movimento indígena, acaba sendo frustrante, porque esperávamos o veto total e lutamos para isso. Então, não há que se falar em vitória [para o movimento indígena].”
Por meio de campanhas nas redes e com o apoio de artistas, a Apib, que reúne sete organizações regionais indígenas com representação em todos os estados do país, demandava a rejeição total do projeto, pedido publicamente encampado pelo próprio MPI. A posição foi reforçada pelo Ministério Público Federal (MPF), que, por meio de nota pública divulgada na quinta-feira (19), qualificou a proposta como “inconstitucional e inconvencional”.
Após consultas a uma série de ministérios, o presidente optou por declarar discordância a pontos específicos do texto, derrubando não apenas o marco temporal, mas outros itens considerados os mais críticos aos direitos indígenas. Na justificativa enviada ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o petista afirma ter tomado a decisão por entender que o projeto trazia “contrariedade ao interesse público e por inconstitucionalidade”.
O MPI celebrou o posicionamento de Lula por meio de nota publicada no fim da tarde de ontem. A ministra Sonia Guajajara classificou os vetos como “uma grande vitória”. “O que é essencial para o cumprimento dos direitos indígenas está assegurado pelo veto. Acho que isso é o que importa nesse momento, que a gente conseguiu garantir tudo que tem relação com o processo demarcatório, com o usufruto exclusivo dos povos indígenas [sobre seus territórios tradicionais] e com o direito de consulta, que é o que nós já temos hoje”, declarou em entrevista coletiva após o anúncio da decisão.
“O que ficou ali é o que já está em algum dispositivo legal, que não vai alterar em nada o que já temos garantido na Constituição Federal e agora na última decisão do STF”, complementou.
No entanto, dois trechos sancionados por Lula, em especial, causam apreensão ao movimento indígena. O primeiro é o artigo 20, que determina que o usufruto exclusivo dos indígenas sobre seus territórios tradicionais, previsto pela Constituição Federal, “não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional”. O segundo, o artigo 26, diz que “é facultado o exercício de atividades econômicas em terras indígenas, desde que pela própria comunidade indígena, admitidas a cooperação e a contratação de terceiros não indígenas”.
Para a Apib, ambos os dispositivos podem flexibilizar o instituto do usufruto exclusivo. Enquanto o artigo 26 “pode ampliar o assédio nos territórios”, o 20 pode ser usado para justificar, por exemplo, intervenções militares nas áreas indígenas, argumentou a entidade em nota publicada na noite de ontem.
A deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), que nos últimos meses encabeçou a resistência ao PL 2903/23 no Congresso, no geral avaliou positivamente o veto parcial, embora também pedisse sua derrubada integral. Nas últimas semanas, a parlamentar liderou uma petição online com esse mote. “Foram vetados os pontos mais importantes”, declarou à Pública. Mas ela também demonstrou preocupação em relação ao artigo 26.
Xakriabá disse esperar que o posicionamento de Lula sobre o PL se reflita em um maior engajamento da base do governo no Legislativo para sustentar os vetos. A decisão do presidente volta agora ao Congresso, e cabe aos parlamentares rejeitá-la ou mantê-la.
Nas etapas anteriores de tramitação do PL, os governistas não tiveram força para barrar as articulações da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – a bancada ruralista –, ferrenha defensora do marco temporal. Ontem mesmo, pouco depois de anunciada a decisão de Lula, o grupo declarou que derrubará os vetos, “respeitados os princípios de representatividade das duas Casas Legislativas, com votos suficientes para a ação”.
Para a deputada indígena, isso representaria um revés político para o governo federal, e não somente para os povos indígenas. “Agora tem um diferencial, que é exatamente o engajamento do governo. O presidente vetou esses artigos, então, certamente, contaremos com a maior mobilização por parte dos líderes na Câmara e no Senado”, pontua. De acordo com Xakriabá, já próxima semana ela e a ministra Sonia Guajajara iniciarão as conversas com deputados e senadores.
A manutenção dos vetos de Lula no Congresso é agora prioridade para o governo e para o movimento indígena. Depois do anúncio da posição da Presidência da República no fim da tarde de ontem no Palácio da Alvorada, Guajajara e o ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disseram que o Executivo está aberto ao diálogo com os parlamentares. A mensagem foi reforçada por Lula em suas redes sociais. “Vamos dialogar e seguir trabalhando para que tenhamos, como temos hoje, segurança jurídica e também para termos respeito aos direitos dos povos originários”, escreveu.
Vetos de Lula vão além do marco temporal
O PL 2903/23 é considerado uma ameaça aos direitos indígenas por lideranças e especialistas. O trecho mais nevrálgico da proposta, que pretendia instituir um marco temporal para a demarcação de terras indígenas e foi vetado por Lula, é uma das principais bandeiras da FPA. Para os ruralistas, isso traria “segurança jurídica” para suas propriedades. Pelo conceito, só poderiam ser demarcadas áreas ocupadas pelos indígenas na data de promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Na justificativa do veto enviada ao Senado, Lula explica que o marco temporal “incorre em vício de inconstitucionalidade e contraria o interesse público por usurpar direitos originários” previstos pela Constituição Federal. Lembra ainda que a tese foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) há menos de um mês, em 27 de setembro.
Outra pauta prioritária da bancada ruralista – que também estava prevista no PL e foi vetada por Lula – é a indenização pelo valor da terra nua às fazendas que se sobrepõem às terras reivindicadas pelos indígenas. O artigo 231 da Constituição Federal, que trata sobre os direitos indígenas, expressamente invalida qualquer título de propriedade relativo a áreas nesses territórios, permitindo apenas a indenização pelas benfeitorias de boa fé – por exemplo, a construção de casas ou cercas.
O artigo 11 do PL, no entanto, alterava isso, ao definir que “verificada a existência de justo título de propriedade ou de posse em área considerada necessária à reprodução sociocultural da comunidade indígena, a desocupação da área será indenizável”. Em sua justificativa ao veto, Lula argumentou: “Ao alargar as hipóteses de casos indenizáveis, o dispositivo pode gerar incentivo à ocupação e à realização de benfeitorias após a expedição da Portaria declaratória, ampliando eventuais custos com pagamento de indenizações a cargo da União”.
O presidente rejeitou ainda outras partes do projeto avaliadas como prejudiciais pelo movimento indígena. Entre elas, a permissão a ocupantes não indígenas de permanecer na terra até ser concluído o procedimento demarcatório e serem pagas as indenizações das benfeitorias de boa-fé – esse pagamento, hoje, é uma das etapas finais do processo.
Foi derrubada também a proibição da ampliação de territórios já demarcados e o cancelamento da demarcação em razão “da alteração dos traços culturais da comunidade indígena ou de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”. Assim como o artigo que estabelece que o usufruto dos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional, como intervenções militares, expansão da malha viária e exploração de alternativas energéticas estratégicas.
Outros vetos foram a trechos que autorizavam o contato com comunidades isoladas para prestar auxílio médico ou intermediar ação estatal de utilidade pública e que permitiam a celebração de contratos de cooperação entre indígenas e não indígenas para a realização de atividades econômicas, como a agropecuária.
Caminho difícil no Congresso
Lula tinha até ontem para publicar vetos ao texto depois que o Senado o aprovou sob regime de urgência em 27 de setembro. Naquele dia, a FPA articulou para que a matéria passasse pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Casa pela manhã e, à noite, pelo plenário. Foi uma reação ao posicionamento, menos de uma semana antes, do STF, que havia derrubado a tese do marco temporal, após sete anos de julgamento.
Após a publicação dos vetos no Diário Oficial da União, em edição extraordinária que foi ao ar na noite de ontem (20), a Presidência da República tem 48 horas para encaminhar mensagem ao Congresso explicando seus argumentos. Quando isso ocorrer, é disparado o prazo de 30 dias corridos para que senadores e deputados apreciem o veto, em sessão conjunta que deve ser convocada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PDS/MG).
O legislativo tem o poder de derrubar os vetos presidenciais. Para isso, é necessária a maioria absoluta dos votos, ou seja, 257 votos de deputados e 41 votos de senadores, contados separadamente.
Considerando-se os placares das votações do projeto de lei nas duas Casas Legislativas, a derrubada dos vetos presidenciais não parece uma tarefa tão árdua: ele foi aprovado na Câmara, no fim de maio, por 283 votos a favor e 155 contra; e no Senado, por 43 votos favoráveis e 21 contrários.
Na nota em que anunciou “que os vetos realizados pela Presidência da República à Lei do Marco Temporal serão objeto de derrubada”, a FPA declarou ter como membros 303 deputados e 50 senadores.
“Diante das decisões recentes responsáveis por estimular conflitos entre a população rural brasileira – indígenas ou não, em desrespeito à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, a FPA não assistirá de braços cruzados a ineficiência do Estado brasileiro em políticas públicas e normas que garantam a segurança jurídica e a paz no campo. Buscaremos a regulamentação de todas as questões que afetam esse direito no local adequado, no Congresso Nacional”, afirmou, ainda, a frente.
O grupo também argumentou que “a decisão dos dois Plenários é soberana e deve ser respeitada pelos demais Poderes da República” e que “o Parlamento brasileiro representa a pluralidade da sociedade em sua amplitude de Estados, partidos e de ideais”.
Impactos para o avanço das demarcações
Caso os vetos de Lula sejam derrubados pelo Congresso, o marco temporal e outros pontos do projeto considerados prejudiciais aos direitos indígenas serão transformados em lei. Como o STF acaba de firmar entendimento contrário à tese, isso deve criar uma confusão jurídica que pode comprometer o avanço das demarcações até que o impasse se resolva, segundo Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) de 1995 a 1996.
“Esse tipo de confusão não ajuda nas demarcações, porque, em grande parte dos casos, elas mobilizam interesses contrários. Pessoas, empresas ou entes federativos podem judicializar esses processos”, diz Santilli.
Para ele, a Funai, que tem a atribuição de realizar a demarcação de terras indígenas, não teria “força para resolver sozinha a situação” e precisaria receber do governo federal uma diretriz sobre como agir.
A Pública questionou a Funai sobre como suas atividades seriam afetadas pela coexistência de uma lei e de uma decisão do Supremo com determinações opostas sobre o marco temporal. Também perguntou quais seriam as possibilidades de atuação do órgão frente ao imbróglio, mas não recebeu um posicionamento até o fechamento desta reportagem.
A Apib já declarou que, caso o PL 2903/23 seja efetivamente transformado em lei, questionará sua validade no STF por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Enquanto a Corte não julgar a ação, entretanto, a lei seguirá vigente e produzindo efeitos. Nas ADIs, há a possibilidade de concessão de medidas cautelares, que antecipam os efeitos da decisão quando se entende que a demora no julgamento pode causar prejuízos. A lei poderia ser suspensa a partir desse instrumento.
Durante o período em que estiver em vigor e em conflito com a decisão do Supremo, a Funai deveria realizar uma análise dos processos demarcatórios menos comprometidos pela tese do marco temporal, destaca Santilli. “É necessário fazer uma avaliação do que é mais fácil de conduzir no meio dessa confusão e o que é mais difícil. E, obviamente, o governo deveria priorizar, num primeiro momento, o que é mais fácil, até pra sinalizar que o processo não está paralisado, que as coisas estão acontecendo”, argumenta.
No entanto, no fim de junho, a Funai negou resposta a um pedido da Pública, feito por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), sobre quantas e quais terras indígenas, cujos processos de demarcação estão em andamento no órgão, seriam diretamente afetadas caso a tese do marco temporal começasse a vigorar.
A fundação informou que a realização desse levantamento requer “trabalho adicional de análise, interpretação ou consolidação de dados e informações, dado o impacto significativo da denominada tese do marco temporal nos procedimentos de identificação e delimitação de terras indígenas”. A reportagem apurou que esses dados não foram sistematizados pela Funai.
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Veto parcial de Lula ao PL do marco temporal foi divulgado na tarde de sexta-feira (20) ao lado da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, do advogado-geral da União, Jorge Messias (esq.) e do ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha