Ricardo devasso. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Ricardo é poeta por inteiro. De rima e vida. Escreve poemas eróticos. Às vezes, dos mais despudorados, lascivos, obscenos e todos os outros adjetivos que usamos para qualificar os prazeres do desejo. Apaixona-se frequentemente. Todos amores únicos e verdadeiros. Mas apesar da devassidão de sua vida e textos, na escolha das palavras é um puritano. Cada palavra é tratada com respeito. Cada uma é única porque naquela poesia só ela é capaz de fazer o que faz.

Ofendeu-se com Caio quando este afirmou que se lembrava de uma poesia de Ricardo com uma rima que repetia a palavra “catraca”, seria a onomatopeia do coito em um ônibus urbano. “Catraca, não. Jamais! Catraca não tem densidade poética.”

Lê muito. Irrita-se na mesma medida. Principalmente com notícias. Não pelos fatos escabrosos e entristecedores. Ou mesmo pelo viés de alguns jornalistas que tecem ilações que ofendem, numa tacada só, a lógica e a inteligência de quem os lê. Na gramática, nem repara mais. O que realmente o apoquenta é o uso despudorado das palavras fortes.

Ele guarda palavras como genocídio, barbárie e hediondo para fatos que são, realmente, dignos da força destas descritoras do que de pior podemos fazer de nossa humanidade. Mas ele as vê sendo usadas com banalidade. Como quem abusa do amor de alguém em busca de um prazer banal. “Como poderia ser uma barbárie a ofensa a um sujeito importante? Como, se é só uma grosseria contra um rico? Que palavra usaria então para descrever o horror da violência assassina?”.

De banalização em banalização, sente que as palavras, que são as ferramentas de sua escultura literária, se enfraquecem. Como se o significado do mundo começasse a ruir. Verdadeira decadência semântica. E, como em toda decadência, há aqueles arroubos de excesso e perversões da pior espécie. Usam e abusam das palavras como que em uma orgia literária onde os sentidos se misturam como corpos entrelaçados. Assim, vê-se com clareza um genocídio, com toda brutalidade e indiferença digna do termo, sendo chamada de “direito de defesa” ou alguma expressão insossa como “operação terrestre”.

Bacanal de sentidos onde os sentidos se perdem. Onde a humanidade se apequena por maltratar sua mais nobre habilidade, a fala, a capacidade de expressar até o que não se vê, mas o que sente ou acredita. A capacidade de dialogar e entender-se. Ou até de se desentender, mas com honestidade, pelo menos. Esta é, para Ricardo, a mais pútrida devassidão. A face mais abjeta da nossa inteligência, que agride as palavras que cria apenas para facilitar suas ações de poder.

Poder é o problema. Ele corrompe mais que a luxúria. Mais que qualquer outro pecado. Sem ser pecado, é a causa pecaminosa de todos os pecados. Mas na perdição moral deste mundo, alcova bruta de amores condenados à marginalidade ou à tragédia, o devasso, o imoral, o perigoso é Ricardo, que jamais matou alguém. Que sequer desejou matar, a não ser de prazer.

Resta a Ricardo assistir, da sua marginalidade literária, os despudores de tanta gente poderosa que violenta palavras e pessoas. Que para fazer menos sórdidos seus prazeres mórbidos, não hesitam em abusar de Deus, Pátria, família ou qualquer outra palavra densa de significado, ditas de forma tão reiterada quanto vazia de significado em seus espíritos obscenos.

Ilustração: Mihai Cauli  

 

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