Saúde Coletiva para conduzir a reconstrução do SUS

Congresso realizado em Recife, na semana passada, reuniu pesquisadores desta área em que o Brasil é pioneiro. Em debate, a necessidade de que cientistas sociais ajudem a pensar políticas de Saúde – inclusive para combater as práticas neocoloniais

por Gabriel Brito, Outra Saúde

Foi realizado, em Recife, o 9º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas (CBCSH), encontro de estudiosos e pesquisadores da Saúde Coletiva. Trata-se de um campo da sociologia no qual o Brasil é pioneiro, cujas elaborações vêm do final da década de 1970, a partir da conexão entre epidemiologistas, cientistas sociais e políticos, em meio às lutas contra a ditadura militar e elaboração de um modelo de saúde que daria origem à chamada Reforma Sanitária. O SUS foi construído nesse contexto.

Com as últimas três décadas de neoliberalismo e agenda de Estado mínimo, a importância da Saúde Coletiva na concepção do modelo de saúde brasileiro ficou ofuscada. Agora, como explica Rosana Onocko Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), organizadora do encontro, a especialidade pede por mais inserção dentro do sistema público de saúde.

“Precisamente, estamos dizendo que os cientistas sociais precisam entrar em campo, reivindicando mais inserções práticas de trabalho no próprio sistema, nas equipes multiprofissionais, no desenho do SUS”, resumiu Rosana.

Com a socióloga Nísia Trindade na chefia do Ministério da Saúde, o Congresso não poderia deixar de refletir uma mudança de época na compreensão da saúde pública do país. O tema do evento, “Emancipação e Saúde: decolonialidade, reparação e reconstrução crítica”, é eloquente a respeito desta necessária mudança. O contexto político brasileiro, ainda bastante tensionado pelo avanço ultraconservador e ainda com marcas causadas pela pandemia, traz muitos percalços ao mesmo tempo em que mostra a necessidade da mudança de perspectiva.

“Agora, com a pandemia, todo mundo começou a falar em sindemia, um termo que veio de fora. São os gringos descobrindo o que chamamos ‘determinantes sociais de saúde’ desde os anos 1970. Sempre soubemos que toda epidemia era diferente uma da outra, que uma epidemia em um local é diferente de ouro. Olha que interessante: a saúde pública mundial do Norte, vou chamar assim, descobriu na pandemia da covid o conceito de sindemia. Logo alguns brasileiros, sobretudo do campo médico, mas não só, até dentro da própria saúde coletiva, saíram falando de sindemia como se fosse um conceito novo. E não é. É um nome estrangeiro para o que sempre soubemos”, ironizou Rosana.

E o que seria, afinal, um modelo decolonial de saúde? Talvez o conceito seja mais fácil de compreender do que se sugere. “[O modelo colonial] se dá, por exemplo, a partir da prevalência do modelo médico hegemônico, da biomedicina, concentrado em prescrever o que as pessoas devem fazer. A saúde pública, e não a Saúde Coletiva, é mestra em prescrever estilos de vida. Estamos falando de ser decoloniais nesse sentido de sair da posição prescritiva, de que supostamente sabemos fazer bem para os outros, e falamos de construir posições mais dialógicas, de proximidade, estar em contato com o outro e se abrir à diferença de maneiras de estar no mundo”, sintetizou Rosana, também psicóloga.

Na prática, os sociólogos da saúde querem mais espaço dentro do sistema. A presença de Nísia, não à toa ovacionada no congresso, e a reformulação dos Núcleos de Atenção à Saúde da Família, agora transformados em Equipes Multiprofissionais, com a finalidade de aumentar o leque de especialidades da atenção primária, simbolizam o que pode ser uma renovação prática na Saúde Coletiva do país. Como esclarece Rosana, a ideia é “aumentarmos o peso dos cientistas sociais junto ao sistema de saúde e aos equipamentos sociais”.

Quanto ao primeiro ano de Nísia Trindade Lima à frente do ministério, Rosana Onocko diz que ela e sua equipe fazem um trabalho heroico. “Dito isso, com certeza ainda precisa avançar muito. E aí eu acho que o desafio da gestão do próximo ano vai ser esse, porque houve uma espécie de retomada urgente, e estava correto, mas há o perigo de retornar ao mesmo nível de antes. O SUS precisa de transformações estruturais se não quisermos nos encontrar no final do governo Lula perante os mesmos dilemas que tivemos no final do Lula 2”.

Confira a entrevista completa com Rosana Onocko.

Como resume o 9º Congresso de Ciências Sociais e Humanas em Saúde? O que o evento reuniu e condensou em suas mesas e trabalhos?

Foi bem interessante, mostrou a força da renovação e a pujança da área das ciências sociais e humanas aplicadas à saúde. Tivemos mais de 1.700 trabalhos aprovados, o que mostra uma vitalidade muito boa da área no contexto da saúde coletiva brasileira. Mas, sobretudo, destaco a presença de novos temas, de novas agendas, de uma discussão que não dissocia a produção científica da produção de transformações sociais.

Por que ciências sociais em saúde? Qual o percurso histórico desta disciplina do conhecimento?

É muito interessante porque às vezes eu brinco que a Saúde Coletiva é como uma jabuticaba, uma coisa brasileira. Mas agora se espalhou pela América Latina, em muitos outros países se usa o termo Saúde Coletiva. Classicamente, nos anos 1980, 90, estudávamos a partir da noção de saúde pública. E este encontro da Saúde Coletiva com as ciências sociais foi fundamental para produzir a grande força da saúde coletiva brasileira.

Agora, com a pandemia, todo mundo começou a falar em sindemia, um termo que veio de fora. O que é o conceito de sindemia? São os gringos descobrindo o que chamamos “determinantes sociais de saúde”. Mas nós estávamos falando disso desde os anos 1970. Sempre soubemos que toda epidemia era diferente uma da outra, sempre soubemos que uma epidemia em um local é diferente de um outro local. Olha que interessante, a saúde pública mundial do Norte, vou chamar assim, descobriu na pandemia da covid o conceito de sindemia. Logo alguns brasileiros, sobretudo do campo médico, mas não só, até dentro da própria saúde coletiva, saíram falando de sindemia como se fosse um conceito novo. E não é um conceito novo. É um nome estrangeiro para o que sempre soubemos.

O próprio texto histórico do Sergio Arouca, O dilema preventivista, já questionava a saúde pública tradicional. Ele é um dos primeiros autores a colocar em contato as questões que tinham a ver com a saúde pública e com a prevenção de doenças. É uma tradição muito rica e valiosa da nossa área. Para nós, Saúde Coletiva é um campo de muito, muito valor. A carta também aponta que ao longo dos anos 2000, no começo do século 21, houve um espírito muito quantitativista, inclusive nas avaliações da CAPES, de indução ao produtivismo acadêmico, que de certa forma prejudicou as ciências sociais.

Uns 10 anos atrás, se você pegasse todos os pesquisadores da Saúde Coletiva, tínhamos, mais ou menos, um quarto deles focado no planejamento e gestão, um quarto em ciências sociais e outra metade na epidemiologia. E os programas e os cursos tanto de graduação quanto de pós-graduação priorizavam contratar epidemiologistas, porque o fator de avaliação mais preponderante era o número de publicações. No entanto, a lógica e a velocidade de publicação da epidemiologia são diferentes das ciências sociais.

Assim, a carta final do Congresso, de uma certa forma, tensiona o passado recente e chama a atenção para a mudança de cenário e a mudança necessária ao presente do país, a retomada da dimensão da política e das avaliações que sejam mais sensíveis do ponto de vista cultural e social. Isso inclui a necessidade de aumentarmos o peso dos cientistas sociais junto ao sistema de saúde e aos equipamentos sociais.

E existe uma influência histórica das ciências sociais em saúde na concepção do modelo de saúde brasileiro, no SUS?

O SUS foi desenhado, vamos dizer assim, a partir de visões de outros sistemas de saúde. Dessa forma, isso acontecia praticamente ao mesmo tempo em que o campo chamado Saúde Coletiva se constituía. Mas, naquele momento, a linha teórica prevalente nas ciências sociais em saúde era dos estudos marxistas, às vezes mais gramscianos. Tais influências tiveram a ver com o momento da 8ª Conferência Nacional de Saúde [realizada em 1986 e considerada marco de fundação do SUS] e do que dela acabou indo parar no desenho do sistema de saúde.

A carta final fala em políticas públicas de saúde que não reproduzam modelos coloniais de desenvolvimento social. Como seria, em linhas gerais, uma visão de tipo decolonial num sistema de saúde?

É importante contextualizar, em especial para nós da saúde coletiva. Como falei na abertura do evento, temos sempre trabalhado com a história do próprio campo, desde o surgimento do campo da Saúde Coletiva, de encontro da saúde pública clássica com as ciências sociais. Portanto, para nós, a presença das ciências sociais é fundante. Não há Saúde Coletiva sem ciências sociais. E, ao longo da história da Saúde Coletiva, houve diferentes correntes que foram tendo mais hegemonia ou prevalência dentro do pensamento social.

O título do Congresso “Emancipação e Saúde: Decolonialidade, Reparação e Reconstrução Crítica”, é demonstrativo de um momento específico da história do Brasil, um momento difícil e duro também em termos globais. E o Congresso também colocou tais questões como muito nevrálgicas, muito centrais. Acho que isso produz um certo deslocamento dos cientistas sociais da saúde coletiva, pelo menos apareceu em várias mesas. Na minha fala de abertura, fiz o convite de sermos cientistas sociais que não estão na Torre de Marfim, mas estão ao lado das pessoas, das comunidades, do povo. É uma forma viva de encarar o pensamento teórico.

É claro que as ciências sociais sempre contribuíram com reflexões teóricas em seu campo, mas falamos de uma teoria que não se descola de uma prática emancipadora, de uma prática de transformação, de uma prática de combate às desigualdades e aos preconceitos.

O Congresso também destacou uma marginalidade da sociologia da saúde no Brasil e que esse tipo de profissional poderia fazer parte das equipes multiprofissionais da atenção primária. Quais seriam os ganhos na saúde pública se essa reivindicação da carta fosse assumida pelo Estado brasileiro no seu sistema de saúde?

Essa, para mim é uma grande e ótima questão que saiu do Congresso porque, precisamente, está dizendo que os cientistas sociais precisam estar em campo, reivindicando, como a Abrasco se comprometeu, com mais inserções práticas de trabalho, diríamos assim, dos cientistas sociais no próprio sistema, nas equipes multiprofissionais, no desenho do SUS.

A saúde coletiva sempre trouxe a ideia de produzir diagnóstico, estudos, a ciência social sempre contribuiu muito, mas eu acho que, de fato, o Congresso conseguiu colocar de uma forma mais contundente a necessidade de estar junto das equipes de saúde, de ter cientistas sociais para ajudar a pensar a realidade e a prática.

E o que seriam práticas neocoloniais em saúde?

Por exemplo, quando o sistema de saúde chega numa comunidade quilombola ou indígena corre-se o risco de reproduzir práticas neocoloniais, isto é, deixar de escutar o que uma comunidade pede. Isso se dá, por exemplo, a partir da prevalência do modelo médico hegemônico, da biomedicina, concentrado em prescrever o que as pessoas devem fazer. A saúde pública, e não a Saúde Coletiva, é mestra em prescrever estilos de vida.

Estamos falando de ser decoloniais nesse sentido de sair da posição prescritiva, de que supostamente sabemos fazer bem para os outros, e falamos de construir posições mais dialógicas, de proximidade, estar em contato com o outro e se abrir à diferença de maneiras de estar no mundo.

O que coincide com ideias de gestão social e coletiva do sistema de saúde.

Exato. E existem coisas muito interessantes. Temos um campo que cresce muito, o da vigilância popular em saúde, por exemplo. Estamos chamando para fazer juntos os espaços que foram classicamente relegados aos técnicos, especialistas. E podemos sair dos especialismos, ainda que não devamos prescindir de especialistas. Mas trata-se de colocá-los em diálogo com quem precisa do serviço e tem demandas próprias para endereçar ao sistema de saúde.

Como a presença da Nísia Trindade, ela mesma uma socióloga com especialização em Saúde Coletiva, e atual ministra da Saúde, dialogou com este momento histórico vivido no Congresso?

Foi bonito, o momento do encontro da Nísia com o seu povo, sabe? Porque estava cheio de cientistas sociais e ela disse no discurso “eu não sou uma ministra não-médica, sou uma ministra socióloga”. E aí o auditório caiu em palmas, as pessoas não paravam de aplaudir. A figura da Nísia nesse momento e lugar é muito emblemática do momento que vivemos dentro das ciências sociais e humanas em saúde.

E como você avalia seu primeiro ano de ministério na prática? Acredita que essa posição ainda marginal das ciências sociais em saúde começa a se alterar?

Vejo um trabalho quase heroico dela e sua equipe. São sementes de um governo que teve de remontar o que estava destruído. Eles encontraram um ministério profundamente sucateado, destruído no seu sistema de informação, destruído no seu corpo técnico, destruído do ponto de vista dos recursos humanos. Ao colocar tudo para funcionar, conseguir mobilizar as questões dos recursos e iniciativas, a exemplo da retomada das vacinas, da retomada das autorizações de algumas medicações, da inserção da saúde no PAC, da retomada do Mais Médicos, agora com uma política de especializações, da criação da ideia das equipes multiprofissionais como reformulação dos Núcleos de Atenção à Saúde da Família (NASF), mostrou-se muita coragem.

Considerando o ritmo sempre lento da máquina federal, é um trabalho muito bom que eles fizeram. Dito isso, com certeza ainda precisa avançar muito. E aí eu acho que o desafio da gestão do próximo ano vai ser esse, porque houve uma espécie de retomada urgente, e estava correto, mas há o perigo de retornar ao mesmo nível de antes. O SUS precisa de transformações estruturais se não quisermos nos encontrar no final do governo Lula perante os mesmos dilemas que tivemos no final do Lula 2.

Precisamos garantir estabilidade e formas de pensar o provimento de recursos humanos, discutir claramente o financiamento da saúde e como esse financiamento, de fato, reforça o caráter público do SUS e não simplesmente aumenta a torneira para que mais serviços privados se apropriem do recurso público. São dois ou três pontos centrais muito estratégicos, que, de fato, vão ser necessários enfrentar. E é bem difícil a conjuntura política, porque quando vemos que algumas transformações têm de ser feitas o panorama não é tão alentador.

Imagem: Nísia discursa no Congresso. Foto: Roan Nascimento, Abrasco

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