Evento contou com representantes de 10 estados e ressaltou sabedorias, denúncias e a coragem das guardiãs do bioma
Por Ludmila Pereira e Helen Borborema | Brasil de Fato / CPT
Fortalecidas pela ancestralidade e as experiências construídas nos territórios, cerca de 70 mulheres vindas de diversos estados do Cerrado brasileiro se reuniram, em Montes Claros (MG), para o 3º Encontro Nacional Vozes e Práticas das Mulheres do Cerrado. O evento aconteceu na Área Experimental de Formação em Agroecologia do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM), entre os dias 5 e 7 de outubro.
A chegança teve início com três vivências em comunidades tradicionais do norte de Minas Gerais: Grande Sertões, Coletivo de Mulheres do MST Flores Pequi e Grupo de Mulheres de Riacho dos Machados. Em que compartilharam os resultados com a agricultura familiar, a feitura de doces e como as mulheres se uniram, nesses territórios, para anunciar outras formas de trabalhar com a terra e garantir o sustento de suas casas.
Como síntese, foi elaborada uma Carta Final do encontro, divulgada na última segunda-feira, dia 16, e ressalta as sabedorias, as denúncias, mas, sobretudo, os anúncios, a coragem, a luta e a esperança das guardiãs do bioma, considerado o berço das águas do Brasil.
“Somos mulheres de vários povos, Apinajé, Xerente, Xakriabá, Akroá Gamela, Kiriri, Tuxá, comunidades quilombolas, geraizeiras, ribeirinhas, veredeiras, sem-terra, raizeiras, benzedeiras, caatingueiras, apanhadoras de flores, vacarianas e quebradeiras de coco babaçu, reafirmando nossos modos de vida tradicionais como plantadeiras de semente boa. Somos a Sociobiodiversidade do Cerrado”, afirmou o documento construído ao longo do evento pelas muitas mãos das mulheres reunidas.
“Eu sou o Cerrado. A luta das mulheres pela libertação dos corpos não é uma luta separada do território. O primeiro impacto que a gente sente das violações do Cerrado, são em nossos corpos, justamente porque a gente tem essa relação direta de cuidado e tem uma sensibilidade melhor para sentir as coisas benéficas pra gente e infelizmente também as mazelas que chegam até nós, em nossos territórios”, contou Emília Costa, do Quilombo Santo Antônio do Costa e do grupo Mulheres Guerreiras da Resistência, do Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM).
Para Maria Emília Pacheco, assessora da ONG Fase e integrante do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), esse encontro é histórico e marca um tempo muito significativo nessa construção, principalmente do ponto de vista metodológico, porque ele foi precedido por visitas que apresentam os anúncios do fazer agroecológico e tradicional, e a potência das mulheres.
“As experiências visitadas mostraram o papel predominante das mulheres, como elas exercem a liderança na construção e inovação da sociobiodiversidade. Vimos aqui que o aproveitamento dos frutos nativos reforça as culturas alimentares, e isso se opõe a uma realidade que vivemos hoje, que é da monotonia alimentar, exatamente porque é um país que predominantemente está aí com os monocultivos”, analisou Maria Emília, que foi a primeira mulher presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
Várias dimensões da luta e seus vários sentidos
O evento foi uma realização da Articulação de Mulheres do Cerrado, que integra a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, com apoio da Cese, Misereor e Comissão Pastoral da Terra (CPT). Segundo Aline Silva de Souza, da coordenação técnica do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais (CAA-NM), entidade que acolheu o encontro, “o objetivo do evento foi trocar experiências e atualizar as formas, as estratégias e as lutas pela água, pelo território e pelos direitos das mulheres”.
Segundo ela, a Articulação das Mulheres do Cerrado é um espaço que vem da necessidade de fortalecer e ampliar a voz das mulheres. “A gente acredita que para falar de agroecologia, de direitos dos povos, do Cerrado é preciso um espaço próprio das mulheres”, explicou.
No total, mulheres de cerca de 10 estados brasileiros participaram do evento. ”Saímos desse encontro aqui muito fortalecidas, com intuito da gente poder planejar nossas atividades, planejar novos trabalhos, pra gente poder construir novas políticas públicas para a vida das mulheres e para a vida do povo do campo. O Cerrado é super importante na vida de todo mundo, então, devemos estar todos juntos e lutar para proteger esse bioma”, afirmou Maria de Lourdes Souza Nascimento, coordenadora da Rede Cerrado e diretora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha.
Diversas mulheres indígenas estiveram presentes. A cacica Elsa Xerente, de Tocantins, foi uma delas. “Temos que fortalecer a luta que nós temos. Temos que levantar e falar de nós mesmas. É o momento de sair, de falar na frente o que sentimos. Se calarmos a boca, ninguém vai falar por nós, não,” encorajou as outras mulheres. “Se nós não cuidarmos, como vai ficar o futuro? Estamos preocupados com as cabeceiras que estão secando. Sem água, não temos vida, não. Nós queremos é bem viver para nosso futuro, nossos netos, nosso ancião, nossos filhos e o futuro que vai vir”, ressalta a Cacica Elsa, denunciando as monoculturas e empreendimentos do agronegócio que estão destruindo o meio ambiente e desrespeitando os territórios indígenas em seu estado.
Um dos momentos da programação do Encontro foi a partilha da experiência da Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais, uma rede que atua, principalmente, no Norte de Minas Gerais, através da conexão de oito povos: geraizeiros, vazanteiros, veredeiros, caatingueiros, apanhadores de flores, vacarianos, quilombolas e indígenas.
“Gostaria de falar da importância que é a gente ouvir o relato de vocês em torno da Articulação Rosalino Gomes, que isso sirva de inspiração para nós que estamos nas outras regiões. O Mato Grosso tem mais de 120 comunidades quilombolas, nenhuma conseguiu ser titulada”, partilhou Cidinha Moura, da ONG Fase.
Ela atua no Mato Grosso e é conselheira do Consea Nacional representando a ANA. “Precisamos mostrar que no Mato Grosso também tem agricultura familiar, tem povos quilombolas, tem povos indígenas. Que existem povos e comunidades tradicionais que estão ali há muitos e muitos anos, que estão ali antes da chegada do do agronegócio, com seus malefícios. O Mato Grosso não pode ser visto pelo mundo como um lugar do agronegócio”, desabafou.
“Eu comparo esse encontro à adubação das raízes. Precisamos visar muito a união dos povos em suas diferenças e pluralidade, mas também em sua igualdade de direitos. A memória de povos que aqui viveram, aqui vivem e aqui viverão precisa ser respeitada. Os povos precisam ter qualidade de vida,” falou a Irmã Porcina Amônica de Barros, mais conhecida como Irmã Mônica, que atua há mais de 25 anos com plantas medicinais e terapias naturais através da Associação Casa de Ervas Barranco de Esperança e Vida (ACEBEV).
Também esteve presente, no último dia do evento, a deputada estadual Leninha, militante do movimento agroecológico e que há muitos anos contribui com a Campanha em Defesa do Cerrado. Atualmente, ela é vice-presidenta da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Leninha falou sobre os desafios e oportunidades para avançar na defesa dos territórios e na garantia de direitos, tanto no contexto nacional como estadual, e refletiu sobre a importância das pessoas da luta socioambiental ocuparem a política, sobretudo as mulheres.
“Para poder ter a política olhando para os pobres, defendendo os povos tradicionais, os povos originários, as populações que mais precisam, a sociobiodiversidade, nós precisamos pensar estratégias inteligentes, com nosso jeito. É preciso ocupar os espaços de participação social para fazer o debate sobre a luta de classes no Brasil, sobre a inclusão que queremos fazer, de forma politizada e não politiqueira, construindo políticas públicas e contribuindo com a formação cidadã”, afirmou.
Entre os apelos das mulheres do Cerrado reivindicados no evento, estavam: o veto integral do presidente Lula ao PL 2903/2023, que diz respeito ao marco temporal proposto pela bancada ruralista do Congresso Nacional e que fere o direito constitucional originário dos povos indígenas; e a aprovação da Emenda Constitucional (PEC 504/2010), que reconhece o Cerrado e a Caatinga como Patrimônios Nacionais.
“A carta que acabamos de aprovar fala de uma situação limite, porque lá onde tem o alimento, não há água para preparar esse alimento. São situações extremas que nos convocam em permanência para que política de agroecologia e produção orgânica, política de segurança alimentar e nutricional, política de biodiversidade, mas que respeitam o conhecimento tradicional, sejam consideradas como ancoragens para a gente enfrentar esse período das mudanças climáticas”, revelou Maria Emília.
A ex-presidenta do Consea ainda completou: “Então, esse encontro nos mostrou várias dimensões da luta e seus vários sentidos. A liderança das mulheres é extremamente importante e precisa ser reconhecida, por isso que nós nos posicionamos de forma muito incisiva contra todas as formas de violência. Não podemos continuar no país com essas formas de violência, que também são, muitas vezes, violência do Estado. Precisamos combater com políticas que reconheçam o direito das mulheres e que a gente construa políticas igualitárias, tanto do ponto de vista de gênero como políticas étnico racial”.
A Carta Final do III Encontro Nacional de Mulheres está publicada no site da CPT Nacional, acesse aqui.
*Helen Borborema é comunicadora da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), e Ludmila Pereira, comunicadora da Articulação Agro é Fogo. Edição: Rodrigo Durão Coelho.
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Bandeiras e símbolos mostram as lutas e as representatividades das lideranças. Foto: Ludmila Pereira / Articulação Agro é Fogo