No setor privado, enfermeiros seguem sem receber o salário digno que prevê a nova lei. Sindicatos deixam claro: propostas de parcelamento e infinitas reuniões na Justiça são tática dos empresários para não pagar
por Guilherme Arruda, Outra Saúde
Há dois anos, em novembro de 2021, o Senado Federal aprovou o primeiro projeto que estipulava uma remuneração mínima para os profissionais da enfermagem. Em maio do ano seguinte, a Câmara dos Deputados também deu seu aval e, em agosto, a Presidência sancionou a Lei nº 14.434/2022, que instituiu o Piso Salarial Nacional da categoria. Entre muitas idas e vindas, devido à suspensão da lei pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso ainda aprovou duas Emendas Constitucionais e uma nova lei – a EC124, a EC127 e a Lei nº 14.581/2023 – para viabilizar o pagamento efetivo dos valores aprovados. Em junho de 2023, viria a decisão aparentemente final: o STF opinou pela constitucionalidade dessas leis e ordenou que, após um período de 60 dias para negociações finais, fosse finalmente iniciado o pagamento do piso aos enfermeiros, técnicos e auxiliares no setor privado.
A despeito de todas essas decisões, que passaram pelos três Poderes da República, muitos profissionais da enfermagem ainda não estão recebendo a remuneração digna que conquistaram após anos de luta. Isso porque, na maioria dos estados, os empresários do ramo da saúde seguem criando óbices à implementação do Piso Salarial da Enfermagem – alegando problemas financeiros e solicitando à Justiça infindáveis reuniões de conciliação com os representantes dos trabalhadores, em um claro sentido de protelação.
Na última terça-feira (7/11), a CNSaúde, representante dos maiores grupos econômicos da saúde suplementar, apresentou ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) uma proposta tão rebaixada de alternativa ao pagamento imediato do piso que a corte nem mesmo a apresentou aos enfermeiros. O plano envolvia o parcelamento dos salários por mais 2 a 3 anos. “É uma proposta indecente, quando os trabalhadores fossem receber esses valores, eles já teriam sido corroídos pela inflação”, resume Solange Caetano, presidente da Federação Nacional de Enfermeiros.
“O que eles não querem é diminuir o lucro deles. Se fosse o setor filantrópico, que depende do repasse do governo, vá lá, mas a saúde suplementar é altamente lucrativa. Saiu um relatório apontando que o lucro do setor foi de R$2 bilhões no primeiro semestre de 2023”, denuncia Solange, que apresentou a Outra Saúde um panorama geral do atual estado da luta pela implementação do piso dos trabalhadores da enfermagem.
Artimanhas do empresariado
Depois da publicação do acórdão da decisão do STF em 12 de julho, com o calendário aberto de 60 dias para negociação entre enfermeiros e empresários, não se viu muito diálogo concreto. Findado o prazo, em vez de receber seu Piso Salarial integralmente como a própria Suprema Corte havia definido, a categoria foi surpreendida com mais um pedido da CNSaúde para que a Justiça promovesse audiências de conciliação, desta vez mediadas pelo TST. “Foi mais uma forma de protelar o pagamento”, avalia a presidente da FNE.
Mas a ânsia dos patrões da saúde suplementar por mais rodadas de negociação não necessariamente significa que haja disposição para uma interlocução honesta. Há indícios de que sua participação nessas reuniões não seja plenamente de boa-fé. A tática seria a seguinte: trazer repetidamente à mesa propostas tão ultrajantes que levem à recusa imediata das bases da enfermagem – apenas para, em seguida, afirmar que são os trabalhadores que estão dificultando o diálogo e atrasar ainda mais a implantação do Piso.
Um dos exemplos mais claros dessa manobra vem da Paraíba. Milca Rêgo, presidente do Sindicato dos Enfermeiros da Paraíba (Sindep-PB), conta que em seu estado os empresários da saúde apresentaram uma proposta de parcelar o pagamento do piso em até 5 anos – um prazo ainda mais extenso que a já questionável proposta nacional da CNSaúde. “A categoria não quer esse parcelamento, ela quer o piso”, ela aponta, e as negociações não avançaram.
O Sindep-PB enviou ofícios à maioria dos principais hospitais do estado se dispondo à negociação. “Pouquíssimos nos procuraram, e sempre com propostas de pagar abaixo do piso”, ela lamenta. Frente a isso, o sindicato entrou na Justiça e conquistou liminares que obrigavam vários estabelecimentos a pagá-lo imediatamente a seus funcionários. Porém, com o novo pedido de mediação feito pelos empresários, as liminares foram suspensas enquanto a negociação estivesse em vigor – negando mais uma vez a remuneração digna aos enfermeiros, técnicos e auxiliares paraibanos.
As diferenças entre o público e o privado
O início do pagamento do Piso da Enfermagem no SUS, apesar de ainda existirem alguns ruídos entre profissionais e governos, aumenta a pressão para que a saúde suplementar remunere corretamente seus trabalhadores. Quando os profissionais veem seus colegas de categoria que trabalham para o Governo Federal, para os estados e prefeituras ou para o setor filantrópico já receberem os novos valores, isso gera “uma gigantesca expectativa e até um adoecimento também”, diz Milca.
Devido à luta dos enfermeiros, frisa a presidente do sindicato local, a Paraíba se tornou o primeiro Estado a implantar o piso – e o governo estadual o paga com base em uma carga horária de 30 horas semanais, mais próxima da realidade da jornada dos enfermeiros brasileiros do que a base de 44 horas semanais proposta pelo Governo Federal. Nacionalmente, Solange conta que “a maioria dos profissionais que trabalham em prefeituras já estão recebendo o piso, as reclamações que chegam até nós diminuíram muito”, pois os recursos prometidos pelo Ministério da Saúde para garantir o Piso já estão sendo enviados às administrações locais.
Ainda está sendo questionada uma orientação da Advocacia-Geral da União (AGU), considerada “equivocada” pelos sindicatos, para que o piso seja alcançado através do pagamento de complementações, gratificações e abonos que cheguem ao valor exigido – e não com o aumento dos salários propriamente ditos. Mas a FNE afirma que segue em diálogo com a AGU buscando a mudança desse entendimento.
Está marcada para a próxima sexta-feira (17/11) uma nova reunião de mediação coordenada pelo TST, e as lideranças da enfermagem pretendem se manter firmes na negociação com os empresários. “Estamos aguardando a proposta que vai ser apresentada e nos mantendo em contato com os sindicatos. Vamos discutir com a categoria se fazemos outra proposta, se convocamos mobilizações, se chamamos para a greve. Nada está fora do radar”, conclui a dirigente da FNE.
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Foto: Hugo Barreto