O silêncio e o silêncio de Clarice. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Infância é momento de sonho, carinho e alegria, mas não para Clarice. Saía pouco de casa. Falava pouco. Não tinha amigos. Os limites do seu mundo coincidiam com as paredes de sua casa. Sabia, claro, que havia uma imensidão de mundo que se estendia para além de seu lar, mas sentia que aquela imensidão não era para ela.

Em casa, via a mãe apanhar do pai bêbado que, depois de um tempo, passou a espancá-la sóbrio também. A mãe, por vezes, retribuía os tabefes recebidos do marido em tabefes dados na filha. Aos cinco anos, sua mãe esquentou uma colher na chama do fogão até encandecer e enfiou-a na sua boca. Era um castigo porque Clarice, no seu desajeito de criança, deixou cair feijão na toalha de mesa nova. A lesão na boca deixou-lhe a fala estranha e menos falante desde então.

Adolescente, o pai viu nela um novo alvo para seus desejos. Apanhou como a mãe apanhava. Calada como a mãe ao apanhar. Atenta ao silêncio da mãe ao vê-la apanhar como ela apanhava até que a filha assumiu seu lugar de carne a ser usada. Percebia até alguma alegria na sua mãe, talvez, pelo alívio de não ser mais tão agredida. Num dia em que seu time de futebol perdeu o campeonato, o pai descontou sua frustração nas duas. Bateu mais e com mais força que o normal. Caíram lado a lado no chão da cozinha. Clarice ficou paralisada, fingindo inconsciência. O silêncio duradouro deu-lhe coragem de abrir os olhos. Viu a mãe caída a lhe olhar nos olhos com olhar estranho, distante, frio. Estava morta. O pai fugiu e nunca voltou.

Clarice seguiu a vida ordinária como sempre. Da casa ao trabalho mal remunerado e de volta ao silêncio da casa. No trabalho, seu chefe era como seu pai. Falava duro como seu pai. Agredia com palavras, como seu pai. A quis como mulher, como seu pai. Ela disse não, como dissera a seu pai. Numa noite de hora extra, ele a agarrou como seu pai. Esbofeteou-a como seu pai e a possuiu como seu pai. Clarice aguentou calada. Contou ao chefe do chefe no dia seguinte, que se calou como sua mãe se calava. Foi à polícia que, no final, nada fez. “É sua palavra contra a dele”, disseram. Como sabia que sua palavra, apesar de rara, não valia muito, calou-se. Quando lhe disseram que estava demitida por justa causa, simplesmente deu meia volta e foi-se embora silenciosamente.

No silêncio vazio da casa, Clarice ainda ouvia os gritos de seu pai e, ainda mais alto, o silêncio de sua mãe. Aquelas paredes ecoavam as memórias das coisas que endureceram seu espírito e a fizeram prisioneira dentro de si. Não chorava nem falava porque de dentro de uma prisão, nada sai. No pensar em si prisioneira sentiu, ao mesmo tempo, alívio e uma vontade imensa de deixar aquela prisão. Era preciso sair daquelas paredes de dentro de si. Também daquelas que, fora de si, a aprisionaram num lar de reminiscências dolorosas.

Lembrou-se da violação no trabalho. E do silêncio dos outros. Eram outras paredes. As muralhas mais periféricas e grandiosas da sua infinita prisão íntima. Tossiu como se houvesse algo entalando sua garganta. Sentiu o ar lhe faltar. Sufocada, levantou-se em agonia. Queria ir, mas não sabia para onde. Andou para um lado. Recuou. Foi para outro. Hesitou. Num ímpeto que lhe arrancou da hesitação, foi-se pela janela num salto. Planou naquela imensidão de ar e luz no seu curto voo do oitavo andar ao chão.

Sua morte foi notícia. Não pela sua história. Mas porque seu corpo atingiu um carro caro. Sábios da imprensa alertaram o público para os perigos de terem seus carros amassados nesta cidade tão civilizada.

Ilustração: Mihai Cauli  

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