Em Gaza nem os mortos estão em paz. Por Carol Proner

No Brasil 247

Israel acaba de ser denunciado ao Tribunal Penal Internacional pelo cometimento do crime de genocídio. Em ação coletiva que reuniu associações e sindicatos de todo o mundo e mais de 300 advogados liderados por Gilles Devers, um veterano advogado francês, os denunciantes alegam que a resposta militar aos crimes cometidos pelo Hamas tem as características do crime mais hediondo que a humanidade já conheceu e que, irônica e tragicamente, vitimara o próprio povo judeu em outros tempos.

Alguém poderia dizer que as regras convencionais humanitárias não são efetivas e menos ainda servem para explicar o contexto histórico e político do que ocorre na luta da Palestina pela sua existência como Estado. Tampouco serviram para inibir as ações violentas de grupos autodefinidos como de resistência armada contra a ocupação israelense de seus territórios. É fato que o direito internacional não resolve definitivamente um conflito armado e, não raro, pode até dificultar o entendimento entre partes no duelo de razões, mas é preciso reconhecer que o chamado Direito Internacional Humanitário, como ramo de autocontenção do jus in bello ou direito da guerra, cumpre um papel absolutamente fundamental neste momento em Gaza, seja para salvar vidas ou para evitar a escalada do conflito.

A sensibilização da comunidade internacional frente ao horror contra civis em Gaza tem sido capaz de produzir consensos inéditos, como o recente encontro entre chefes de nações árabes e muçulmanas que, certamente, representa um antes e um depois nas relações diplomáticas do Oriente Médio. Mesmo sem a definição específica de sanções contra Israel, líderes que podem ser considerados adversários e até inimigos em assuntos de política externa se uniram para condenar os crimes de guerra da resposta israelense e descartar qualquer justificativa de autodefesa alegada.

Também a vindicação de regras humanitárias prevaleceu no consenso onusiano quanto à necessidade imperativa de corredores humanitários para a proteção de milhares de civis sujeitos ao deslocamento forçado – considerado também um crime de guerra – e sob a pressão da fome e da sede – também entendidos como crimes de guerra (starvation crime) descritos no Estatuto de Roma.

Mesmo que o Conselho de Segurança da ONU não tenha sido capaz de emitir resolução quanto aos limites dos meios e métodos da resposta militar aos atos de terror cometidos pelo Hamas (assim definidos por todos os membros), é visível o esforço para formar maiorias nas Assembleias e defender o cessar fogo imediato ou, como mínimo, as polêmicas “pausas humanitárias”.

Pelas mesmas razões humanitárias, líderes europeus e o governo dos Estados Unidos guinaram o discurso e o apoio irrestrito à resposta coletiva e indiscriminada de Israel diante da morte de mais de 11 mil pessoas e do ataque  a alvos especialmente protegidos, como escolas e hospitais.

Em Gaza nem os mortos estão em paz. As imagens de corpos despedaçados após o bombardeio de covas recém sepultadas são espantosas. E o que dizer dos ataques deliberados a hospitais, a morte de médicos enquanto se deslocavam entre as alas do Hospital Al-Shifa, e dos bebês recém-nascidos levados à morte pelo desligamento das incubadoras. Robert Mardini, diretor geral do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, confessou ao canal Al Jazeera que, com a experiência de ter atuado em diversos conflitos bélicos, nunca viu nada igual. Assim como outros colegas do CICV que atuam como mediadores humanitários entre as partes combatentes, afirma que nada se compara ao que ocorre em Gaza como sofrimento humano, referindo-se aos sentimentos de raiva, desespero e frustração que alcançam níveis alarmantes.

E a perversidade não está apenas nas decisões do comando militar. Também ganham terreno os debates intelectualizados em redes de televisão dedicados a justificar as atrocidades pelas “exceções ao direito humanitário”. Comentaristas informados parecem satisfeitos em respaldar os crimes diante das hipóteses de “perfídia no direito internacional”, uma das chamadas excludentes de proteção humanitária, já que o Hamas usaria os espaços protegidos – neste caso os hospitais – como disfarce para operações militares.

Para enquadrar a colateralidade da morte de crianças nas hipóteses de excludência humanitária, os experts desenham cenários nos quais os bebês e as crianças – e os moribundos em geral – passam a servir de escudos, quando não bonecos maquiados ou atores mirins na guerra contra Israel. Isso quando o cinismo desumanizado não assume a versão mais ignóbil que já ouvi até agora: são essas crianças os terroristas de amanhã, as sementes do mal, os futuros inimigos de Israel.

Em pleno século XXI, o que ocorre em Gaza é um laboratório de desumanização absoluta e de experimentação de novas armas letais e indiscriminadas. Poderia eu, como leciono direito humanitário na universidade, elencar artigo por artigo das convenções e do jus cogens (direito imperativo) que estão sendo ignoradas, isso sem falar no uso das armas químicas, do fósforo branco e da aberrante utilização das bombas Ginsu voadoras, com lâminas que assassinam cruelmente qualquer vida ao redor. Mas não é o direito e a argumentação jurídica que poderão conter o morticínio e a vontade de vingança de quem comanda a ofensiva militar.

Faço coro com outras análises de que a contenção do genocídio em Gaza depende de muitos fatores combinados. Além dos protestos que crescem a cada dia, é de se esperar em breve tempo um adensamento da pressão internacional e das ações coordenadas da comunidade de nações obrigadas a agir para evitar a impunidade, a naturalização dos massacres e a deslegitimação de todo o arcabouço humanitário convencionado desde mais de um século. É também razoável esperar que a própria população de Israel supere a desinformação e o isolamento e passe a censurar o governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu que, entre outras nefastas consequências, tem provocado um perigoso e lamentável antissemitismo mundo afora.

Carol Proner é Professora de Direito Internacional da UFRJ, Membro fundadora da ABJD

Menina palestina. Foto de Ariel Feldman

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