Calor. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Tudo está abafado. O ar condicionado mal dá conta, é preciso auxílio do ventilador. Luísa sua pela nuca, testa e virilhas, mas não pelas axilas. Nunca soube o porquê. Só sabe que há coisas na vida que desconhecem porquês e para quês. Só são como são. Luísa é assim, sudorenta irregular. O calor lhe desperta seus “não sei porquês” do corpo e da alma. Fica mais manhosa, às vezes, letárgica. O lento espalhar com as mãos do suor do pescoço e peito lhe dá um ar sedutor e, ao mesmo tempo, seu rosto adquire traços de cansaço e devaneio. Para quem a vê, Luísa torna-se um mistério. Mais um, num mundo quente sem porquês.

Resolveu almoçar na cafeteria da Lorena, a dois quarteirões do trabalho. Foram dois quarteirões de sol a pino e calor inescapável. Vez ou outra, seu rosto era atiçado por baforadas de vento quente que vinham como marolas de ar provocadas pelos ônibus barulhentos que cruzavam a cidade apinhados de gente suada. “Caminhar foi uma má ideia”, pensou.

Chegou melada de suor e incomodada com o vestido que se agarrava à pele suada em desalinho com seu corpo. Sentia-se suja. Incomodada. O garçom, que a conhecia, cumprimentou-a sem o sorriso de sempre. Suava mais que ela. O ar da cafeteria não dava conta do calor da rua, do abre e fecha da porta e do calor que irradiava da cozinha com um forte cheiro de manteiga derretida. Entregou-lhe o cardápio molhado do suor que lhe escorria pelo queixo. Pensou em ir embora, mas para onde fosse, haveria de encarar o calor bafento e malcheiroso da rua. Preferiu ficar no calor amanteigado da cafeteria.

Na mesa ao lado, um sujeito de voz grossa, quase gutural, chamava aos palavrões pelo garçom. “Cadê minha lasanha? E esse ar que não funciona!…”. Gesticulava exibindo duas enormes manchas molhadas e esbranquiçadas de desodorante nas mangas da camisa sob as axilas. Pareciam duas bocas gigantes de xícara de capuccino.

O garçom lhe respondeu tão rápida e displicentemente que Luísa não entendeu o que ele dissera, mas entendeu pelo tom que não era a resposta gentil de costume. Sem retrucar, o sujeito levantou quase num salto seu corpo pesado da cadeira, precipitando a mesa e todos os apetrechos sobre ela ao chão. A mão voou fechada e atingiu em cheio o queixo do garçom, lançando ao ar um leque de gotículas de suor. Um segundo soco o tirou da letargia do susto. Reagiu a pontapés. A cena se passava para Luísa como em câmera lenta, como se não fosse real, como se nada fosse real. O choque de realidade lhe veio na cabeça, atingida por uma cadeira lançada ao ar sabe-se lá por quem.

Em pouco tempo, todos batiam, todos apanhavam. A cafeteria foi se desfazendo em mesas quebradas, vidros e louças estilhaçadas. O chão tornou-se um atoleiro de suor, sangue, comidas e bebidas. Luísa caiu e preferiu não levantar mais. Assistia à barbárie do chão molhado, sem se preocupar com as bochechas que se molhavam na lama do chão. Sentiu-se protegida naquela sarjeta de restos dos incômodos e brutalidade dos que lutavam com palavras, pernas e punhos pela manutenção de seus orgulhos e paciências apequenadas pelo calor indiferente aos incômodos e outras miudezas humanas.

Luísa deu-se por si suja, malcheirosa, ferida e, pela primeira vez na vida, com as axilas suadas. Sentia-se completamente despida de sua dignidade. Largou-se ali até quase adormecer naquele chão menos quente do que o ar fedorento de suor do que, um dia, foi a cafeteria da Lorena.

Ilustração: Mihai Cauli

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