Alfredo foi para Brasília de verde e amarelo. Acampou em frente a um quartel e, como nunca antes em sua vida meio solitária, participou de eventos coletivos como marchas, cantorias e outras pantomimas meio militares, meio devocionais. Rezou com fervor extraído do fundo de seu ateísmo.
Na refrega do dia oito marchou, cantou, quebrou e bateu como poucos. Chutou uma policial caída com o ânimo de quem parte, finalmente, do sonho à realidade. Destruiu, preferencialmente, o que parecia insubstituível. Foi preso.
Ao juiz, testemunhou, com a convicção de sempre, que não fizera nada do que fizera. Foram os outros. Nas poucas conversas que tinha com os colegas de cadeia, culpava ministros corruptos, infiltrados e generais covardes.
Elizabete, sua filha mais nova da quarta ex-esposa, dizem, é a que mais se parece com ele. Mas de aparência apenas no comportamento, não nas ideias. Elizabete é comunista, segundo o pai. Militante de esquerda, segundo ela mesma. Chata, segundo o resto da família, com exceção de sua avó, Gertrudes, que acha toda a sua família linda e perfeita.
Num momento de mimo da avó, Elizabete revoltou-se com ela. Racista! Gritou a plenos pulmões enquanto dava dois tapas na mesa de natal, com tanto ímpeto e desajeito que lançou ao ar alguns pedaços de peru com farofa. Meio segundo antes, a avó comentara que a situação do país estava negra.
Alfredo não deixou por menos. Mandou a filha calar a boca, também aos tapas na mesa. A mesa apanhou os tapas que pai e filha queriam estatelar um no outro. Foi o fim da noite de natal que começou com as rezas da fervorosa Anelisete, irmã de Alfredo, carola e solteirona – encalhada, segundo seu irmão; doida, segundo sua sobrinha; diferente, segundo sua mãe -, rezara com voz trêmula e cara retorcida pelo esforço de demonstrar devoção com os músculos do rosto.
Entre gritos de “aleluia” e sílabas ditas a esmo como se formassem palavras, alertava sobre os perigos do belzebu que estava em todo lugar. O mesmo que criou o ódio. O mesmo que arruinou seu noivado com o Sérgio Antero. O mesmo que a persegue pela sua fé. O mesmo que… Quando a briga começou, Anelisete apressou-se a ordenar, aos berros estridentes e danças, que belzebu fosse embora.
Cancelaram o réveillon em família. Não tinha mais clima. Até mesmo dona Gertrudes perdeu o ânimo depois que sua travessa favorita acabou estilhaçada na frustrante ceia de natal. Alfredo antecipou sua ida para Brasília e a família só voltaria a vê-lo seis meses depois, quando voltou para casa com tornozeleira eletrônica.
Ainda na porta do presídio, postou um vídeo que demonstrava, entre uma e outra ofensa a ministros e outras autoridades, nenhum arrependimento. Como em todos os outros momentos de sua vida, era vítima. Aos seus próprios olhos, Alfredo nunca errou. O mundo é que sempre errou com ele.
Durou pouco em casa. Meses depois estava preso novamente. Agora, por invadir terras indígenas. Só por sorte a polícia não descobriu outros malfeitos de Alfredo neste período, que não fazia muita força para esconder. Afinal, estava sempre certo.
Quando perguntaram a Elizabete se não iria visitar seu pai preso, deu chilique. Até deixou de falar com o amigo que teve a audácia de lhe perguntar. Seu pai era a causa de toda sua tristeza e revolta. O pai e o resto da família, e o capitalismo, e o machismo, e o racismo, e a intolerância, e o sistema, e o… Toda tradição era seu belzebu. E sua marca estava em todas as pessoas e em todos os seus inadmitidos fracassos.
Anelisete foi a única da família que chegou perto de onde Alfredo estava preso. Colocou-se a jejuar, dançar e orar com palavras estranhas na porta do presídio. Só não foi levada para o hospital psiquiátrico porque Gertrudes garantiu ao pessoal da ambulância que cuidaria dela.
Levou a filha para casa prometendo a si mesma que fará de tudo e um pouco mais para que aquela família tenha uma ceia de natal este ano.
–
Ilustração: Mihai Cauli