Por Julio José Araujo Junior e Eliza Gomes Morais Akiyama*, na ANPR
A luta pela concretização dos direitos fundamentais de uma minoria invariavelmente reforça e, muitas vezes, promove os direitos da maioria. A premissa nos guia neste artigo para discutir a necessidade de implementação de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas alternativos a transfusões de sangue alogênico. Para além dos direitos fundamentais de uma minoria – as testemunhas de Jeová – que recusa as transfusões, tais protocolos são recomendados a todas as pessoas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
A história é cheia de exemplos de casos em que a luta das minorias fortaleceu direitos em favor de todas as pessoas, e as testemunhas de Jeová construíram um capítulo especial: a liberdade de expressão, como a conhecemos hoje, e o entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a primeira emenda da Constituição daquele país se consolidaram justamente após a luta dessa minoria religiosa. A possibilidade de pregação pública às portas e a recusa ao juramento à bandeira ajudaram a definir os contornos da liberdade de expressão naquele país[1], e esses julgamentos influenciaram diversas cortes no mundo[2].
No Brasil, chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) mais uma batalha jurídica que pode fazer jus a esse histórico. No RE 979.742, fixado como tema 952 de Repercussão Geral, o STF deverá analisar o eventual conflito entre a liberdade religiosa e o dever do Estado de assegurar prestações de saúde universais e igualitárias, tendo em vista que o tratamento alternativo à transfusão consiste em uma política pública recomendada pela Organização Mundial de Saúde, com diretrizes previstas no Sistema Único de Saúde.
Essa discussão ocorre paralelamente à ADPF 618, em que se discute a possibilidade de excluir a interpretação de que os médicos estão autorizados a realizar transfusão de sangue independentemente da vontade prévia ou atual de pacientes maiores e capazes que, por motivo de convicção pessoal, opõem-se ao tratamento.
Em outras instâncias do Judiciário, a discussão sobre a adoção de uma política pública permanente destinada ao tratamento alternativo já foi objeto de apreciação. O caso, trazido pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, continha as características típicas da recusa à transfusão: um paciente, testemunha de Jeová, adulto e capaz, recebeu transfusões de sangue contra o seu consentimento[3].
Ao longo da apuração, o MPF havia constatado que o Brasil se comprometeu, desde a 63ª Assembleia Mundial da OMS, em 2010, a implementar o gerenciamento de sangue do paciente (PBM, de acordo com a sigla em inglês), que consiste em uma abordagem multidisciplinar de estratégias clínicas e cirúrgicas, seguras e eficazes para tratar anemia e minimizar sangramento, com o objetivo de reduzir ou eliminar o uso de sangue alogênico (doado), melhorando assim os resultados para o paciente.
Em 2021, a OMS publicou diretriz mundial com o seguinte título: “A necessidade urgente de implementar o gerenciamento de sangue do paciente”[4]. Nessa diretriz, a OMS aponta que tal programa “tem potencial para melhorar significativamente saúde da população e os resultados clínicos de centenas de milhões de pacientes cirúrgicos, médicos e obstétricos e da população em geral, ao mesmo tempo em que reduz os custos nos cuidados de saúde em bilhões de dólares americanos” e que “é essencial que os sistemas de saúde de todo o mundo implementem o PBM como padrão de tratamento” (tradução livre).
A Justiça Federal no Rio de Janeiro acolheu parcialmente os pedidos do MPF e condenou neste ano a União a coordenar a implementação do programa de gerenciamento do sangue do paciente (PBM) nos hospitais federais do Rio de Janeiro e estabeleceu prazo para que os hospitais federais do Rio:
- a) adequassem seus protocolos para tratar os pacientes à luz do PBM no pré, intra e pós-operatório;
- b) viabilizassem a transferência do paciente quando não fosse possível fazer o tratamento no próprio hospital; e
- c) permitissem aos pacientes expressarem sua recusa terapêutica nos formulários e documentos hospitalares[5].
Na ocasião, a Justiça reconheceu que há uma política pública – a Política Nacional do Sangue, Componentes e Hemoderivados (PNSCH) -, que tem por objetivo estabelecer mecanismos que garantam reserva de sangue, componentes e hemoderivados (art. 16, XIII, da Lei nº 10.205/01). Assim, é necessária sua implementação no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Derivados – SINASAN (art. 8º e 9º da Lei nº 10.205/01).
Note-se que a recusa à transfusão, quando não vem acompanhada da garantia de uma política pública alternativa, gera risco de desrespeito aos direitos e insegurança jurídica. É nesse ponto que a ADPF 618 e o RE 979.742 se encontram: conquanto por trás do debate da ADPF esteja a defesa dos direitos de uma minoria, a implementação de uma política estabelecida pela OMS acarretará a promoção dos direitos de toda a coletividade.
Afinal o estabelecimento da autonomia do paciente adulto e capaz é um reforço para os direitos de todos nós que, cedo ou tarde, seremos pacientes e desejaremos ter o nosso direito ao consentimento informado respeitado pelos profissionais médicos que nos atenderão. Por outro lado, a incorporação nacional do PBM é um investimento na saúde pública, uma vez que a OMS afirma que esse tratamento é melhor para os pacientes, para os profissionais médicos, para as instituições hospitalares e para os cofres públicos.
Ademais, a implementação da política em questão está em sintonia com o tema de Segurança do Paciente escolhido pela OMS para o ano de 2023: “Elevar a voz do paciente”[6], celebrado mundialmente no dia 17 de setembro. Segundo a OMS, a escolha do tema desse ano levou em consideração que as evidências mostram que “quando os pacientes são tratados como parceiros em seus cuidados, ganhos significativos são obtidos em segurança, satisfação do paciente e resultados de saúde”.
Mais uma vez, os direitos de uma minoria podem transformar procedimentos, no interesse de toda a população. As testemunhas de Jeová estão mais uma vez no centro do debate constitucional. Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF).
Notas:
[1] Nesse sentido, são emblemáticos os julgamentos Cantwell v. Connecticut (20/05/1940) e West Virginia State Board Education v. Barnette (1943).
[2] Veja-se, por exemplo a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Kokkinakis v. Grécia: Minos Kokkinakis, cidadão grego testemunha de Jeová, foi preso mais de 60 vezes acusado de “proselitismo” (falar com outros sobre suas crenças). A Corte Europeia condenou o governo grego a indenizar Kokkinakis por ter violado a sua liberdade religiosa.
[3] Essa questão foi apurada no Inquérito Civil nº 1.30.001.003183/2012-62, tendo resultado na Ação civil pública nº º 5103690-53.2021.4.02.5101, que tramitou na 4ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro..
[4] World Health Organization. The urgent need to implement patient blood management: policy brief. Geneva: WHO; 2021. [ISBN: 978-92-4-003574-4] Available at: https://apps.who.int/iris/handle/10665/346655
[5]O caso segue em tramitação no Tribunal Regional Federal da 2ª Região para análise de apelação do MPF, que pede a ampliação dos efeitos da decisão para todo o país. O órgão defende que “a normativa atual da Política Nacional do Sangue, Componentes e Hemoderivados (PNSCH) não contempla o PBM em âmbito nacional, gerando uma situação anti-isonômica entre os estados da federação” e que “a ausência de diretrizes mínimas para o tratamento da matéria resulta em verdadeira balbúrdia regulamentar dentre os hospitais federais.”
[6] Tradução livre. Disponível em https://www.who.int/news-room/events/detail/2023/09/17/default-calendar/world-patient-safety-day-2023–engaging-patients-for-patient-safety
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Foto: Secretaria de Saúde do Estado do Ceará