Jornalista tem sua história de vida entrelaçada com a mina que hoje desaba e revela que, sempre, muito pouco se sabia sobre o que ocorria para dentro dos muros da empresa
Por: João Vitor Santos, em IHU
Hoje, todos ficam impressionados com o drama de moradores de Maceió, em Alagoas, e do iminente perigo de desabamento da mina de sal-gema explorada pela Braskem. Mas, até bem pouco atrás, muitas pessoas pelo Brasil nem sequer sabiam da existência deste empreendimento e nem mesmo a população local tinha clareza dos riscos que corria.
Para a jornalista Lenilda Luna, esta história começou aos dez anos de idade. O pai trabalhava na empresa que minerava. “Ele não falava muito do trabalho, mas algumas vezes lembro de vê-lo transtornado por conta de algum acidente envolvendo colegas de trabalho. Tem uma imagem clara na minha mente dele falando para minha mãe que ‘fulano derreteu como uma vela’. Aquilo me deixou muito impressionada”, recorda.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Lenilda conta que, apesar de ter sido marcada por esta história, nunca se falava muito dos riscos desta atividade. Foi só na década de 1990, quando já atuava como repórter, que a empresa começou a promover treinamentos à população. “O medo sempre foi de vazamento de substâncias químicas pelo ar, que provocassem intoxicação. A ideia de afundamento, pelo menos até onde eu acompanhei, só veio mesmo à tona em 2019”, diz.
A história da mineração de sal-gema em Alagoas é mesmo muito truncada e, como revela a jornalista, foi só a partir dos tremores de terra de 2018 que a população e as autoridades se deram conta dos riscos. Era só o início de um pesadelo, pois, além dos riscos, a população que é removida não se sente contemplada pelas indenizações e a área de risco aumenta cada vez mais, sendo necessário o deslocamento de mais gente. Para ela, uma história de descaso em que o interesse econômico andou de braços dados com o poder público, com pouca mudança desde que a Braskem assume a gestão da mina. “Pelos relatos que ouvi de moradores e de pesquisadores da UFAL, o que mudou foi uma ganância em aumentar a produção, sem calcular os riscos. Os poços foram escavados e o diâmetro expandido até acontecer a fusão de minas e o risco de um desabamento em cadeia”, lamenta.
Lenilda Luna é jornalista, foi repórter da TV de emissoras em Maceió de 1996 a 2014. É jornalista da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL e ativista dos movimentos sociais desde a década de 1980, atualmente estando na coordenação nacional e estadual do Movimento de Mulheres Olga Benario. Colabora com o Jornal A Verdade. É filha de trabalhador da mina de sal-gema da Braskem em Maceió e sua história de vida se cruza, em muitos momentos, com a própria história da mina.
Confira a entrevista.
IHU – Qual é o sentimento da população de Maceió com relação ao que acontece atualmente na cidade? Como o desabamento do último fim de semana impactou este sentimento?
Lenilda Luna – O sentimento de quem morava nas áreas atingidas é de muita indignação e perplexidade. Até o tremor do dia 3 de março de 2018, a população, de um modo geral, não tinha noção dos riscos da mineração no subsolo da cidade. Tanto que, até 2019, quando até a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais – CPRM, vinculada ao Ministério de Minas e Energias, apresentar o laudo e afirmar categoricamente que a mineração da Braskem era a causadora dos tremores, a empresa ainda tentava se isentar do problema.
Os engenheiros da Braskem chegaram a dizer que a cidade foi construída sobre um lago subterrâneo e por isso os tremores. Foram necessários os dados técnicos, felizmente fornecidos pelo serviço público, através da CPRM e de pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas – UFAL, para fundamentar a responsabilidade da Braskem e iniciar as negociações para reparação. Mas os moradores não foram ouvidos nesta negociação do Ministério Público Federal com a empresa, por isso constituíram um movimento, o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem – MUVB, para ser uma voz na sociedade.
Finalmente, furando a bolha
Também é importante relatar que só recentemente esse caso começou a furar a bolha. Em 2019, por mais que as vítimas da Braskem gritassem e ocupassem as redes sociais, o assunto não mobilizou a cidade. Em 2020, com a pandemia de Covid-19, esses moradores ficaram ainda mais isolados e foram removidos do Pinheiro em plena fase do distanciamento social, quando ainda não havia vacina. Cinco anos depois é que esse assunto e todo o sofrimento dessas famílias começam a ocupar espaço na mídia nacional e local com a ênfase que esse drama merece.
IHU – Que respostas vêm sendo dadas pelo poder público e pela empresa à população?
Lenilda Luna – As respostas são pontuais, ainda não alcançam toda a dimensão do problema, e faltam transparência e possibilidade de acompanhamento direto das vítimas. O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública em agosto de 2019, que possibilitou a formalização de um acordo socioambiental em dezembro de 2020. Este acordo obrigou a Braskem a criar um programa de compensação financeira, para negociar as indenizações com as pessoas que precisaram ser realocadas.
No entanto, os moradores têm muitas queixas. Eles não se sentiram ouvidos na formalização deste acordo e muitos relataram que se sentiram pressionados a aceitar a proposta da empresa, mesmo não cobrindo o valor do imóvel, ainda mais que a especulação imobiliária provocou uma alta de preços na cidade. Outra questão que não ficou clara e tem sido questionada é se a Braskem se torna dona destes imóveis precariamente indenizados.
As vítimas também cobram a abertura de uma investigação criminal para apurar responsabilidades pelo afundamento do solo e punir os culpados por esse crime socioambiental, o que nem mesmo é ventilado por enquanto, apesar das cobranças. As vítimas estão mais esperançosas que isso aconteça, agora que foi instaurada a CPI da Braskem.
IHU – Como a sua história se cruza com a mina de sal-gema da Braskem?
Lenilda Luna – Meu pai foi operário de indústrias químicas desde a juventude, quando saiu do interior de Alagoas para buscar emprego nas indústrias que foram instaladas no país a partir da década de 1960. Ele trabalhou no Cabo de Santo Agostinho (PE), onde eu nasci em 1966. Depois de ser vítima de uma enchente, foi para Cubatão (SP), onde trabalhou na Cosipa, e foi ainda para o polo de Camaçari (BA). A oportunidade de voltar para Alagoas aconteceu na década de 1970, com a instalação da Salgema, nome antigo da empresa Braskem.
Eu tinha 10 anos quando viemos para Maceió. Ele não falava muito do trabalho, mas algumas vezes lembro de vê-lo transtornado por conta de algum acidente envolvendo colegas de trabalho. Tem uma imagem clara na minha mente dele falando para minha mãe que “fulano derreteu como uma vela”. Aquilo me deixou muito impressionada.
Ainda na adolescência, com 15 ou 16 anos, em 1982 ou 1983 (não lembro bem), participei de uma caminhada do Movimento pela Vida, que denunciava os riscos ambientais da Salgema. Mais tarde, participei também das mobilizações estudantis de 1985, quando entrei no curso de Jornalismo da UFAL, contra a duplicação da Salgema. Meu pai se aposentou na empresa e nunca falou muito sobre o que acontecia ali, mas sei que ele presenciou acidentes e vazamentos.
Já como jornalista e repórter de TV local, a partir da década de 1990 cobri os treinamentos de prevenção de acidentes anuais que a empresa fazia com os moradores do Pontal da Barra, bairro turístico, de rendeiras e pescadores, mais próximo da sede da indústria. O medo sempre foi de vazamento de substâncias químicas pelo ar, que provocassem intoxicação. A ideia de afundamento, pelo menos até onde acompanhei, só veio mesmo à tona em 2019.
Esta fase do drama atual eu acompanhei enquanto assessora de comunicação da UFAL, já que os pesquisadores da universidade se dedicaram a investigar e apresentar dados para buscar a solução do problema, desde o início desta crise.
IHU – Pelo seu depoimento, podemos perceber momentos distintos na história das minas de exploração de sal-gema em Maceió. Pode contar a história desta mina e que momentos destaca como pontos de virada nesta história?
Lenilda Luna – Na década de 1970, os poucos que reagiram à implantação da Salgema foram perseguidos e até tiveram que sair de Alagoas, como o professor José Geraldo Marques. A partir dos anos 1980, as reações dos movimentos sociais começaram, mas não conseguiram mobilizar toda a sociedade. O ponto de virada mesmo, para alertar toda a sociedade, começou com o tremor de terra de março de 2018.
IHU – Como a população se relacionou com as empresas que geriam a mina ao longo de sua história?
Lenilda Luna – A antiga Salgema distribuía cadernos para as escolas municipais e financiava projetos. A Braskem aprofundou bastante essa relação social. Os patrocínios da empresa estavam em toda parte, inclusive no Prêmio Braskem de Jornalismo, que ofertava prêmios em dinheiro para as matérias selecionadas como melhores do ano.
IHU – Quando e como surgiram os movimentos de resistência à exploração de sal-gema?
Lenilda Luna – As primeiras mobilizações foram organizadas pelo Movimento pela Vida, liderado por Anivaldo Miranda, jornalista que havia retornado do exílio imposto pela ditadura militar, a partir de 1983. Na década de 1980, também aconteceram as mobilizações estudantis contra os riscos que a empresa significava para a cidade.
Igualmente é um marco o livro Daqui só saio pó, de Maria do Carmo Vieira, de 1997, que relatou os enfrentamentos da população do Pontal da Barra contra a empresa. Mas as maiores mobilizações começaram a partir de 2021, com o fim da pandemia, quando o Movimento Unificado da Braskem pôde chamar a população para as ruas.
IHU – A senhora também relata que se começou a falar mais em riscos da mina, inclusive promovendo treinamentos da população local. Por que isso não foi destaque?
Lenilda Luna – Eu acompanhei esses treinamentos a partir de 1996, quando me tornei repórter da TV local. Eram treinamentos de rotina, para orientar como alertar e seguir para as rotas de fuga. A impressão que eu tinha é que eram dias até divertidos. A comunidade se mobilizava, mas não existia um medo de que algum vazamento viesse realmente a acontecer. Eu percebia que a cidade se acostumou a conviver com a Salgema.
IHU – O que muda com a entrada da Braskem na gestão da mina?
Lenilda Luna – Pelos relatos que ouvi de moradores e pesquisadores da UFAL, o que mudou foi uma ganância em aumentar a produção, sem calcular os riscos. Os poços foram escavados e o diâmetro expandido até acontecer a fusão de minas e o risco de um desabamento em cadeia.
IHU – O ano de 2018 também é um marco nesta história da mina. Gostaria que a senhora recuperasse este momento, quando foram sentidos os primeiros tremores de terra.
Lenilda Luna – Na tarde de 3 de março, um tremor foi sentido no bairro do Pinheiro, que, segundo o Centro de Sismologia da Universidade de São Paulo – USP, atingiu 2.4 na escala Richter. Logo depois, moradores chamaram a imprensa para mostrar rachaduras que comprometiam as estruturas das casas.
Com o agravamento do problema e o surgimento de novas rachaduras, a CPRM foi convocada para investigar as causas e emitiu o laudo responsabilizando a Braskem.
IHU – Ao longo de anos, apesar dos riscos, órgãos ambientais de Alagoas livraram as operações da mina. Como compreender isso?
Lenilda Luna – Como está sendo colocado nas manifestações populares, todas as autoridades políticas e ambientais de Alagoas que não tiveram o cuidado de alertar para esses riscos de subsidência pecaram ou por omissão ou por cumplicidade.
IHU – A senhora diria que a Alagoas e Maceió acordoaram para os riscos deste tipo de operação?
Lenilda Luna – Sim, agora a sociedade está alerta para o que acontece em Maceió, mas ainda não são massivas as mobilizações, que deveriam envolver não só os diretamente vitimizados, mas toda a cidade que foi impactada.
IHU – Como a política se cruza com as operações da mina. Hoje, há a abertura da CPI no Congresso Nacional, mas, ao longo dos anos, como o poder político (local e nacional) se relacionou como o então chamado empreendimento?
Lenilda Luna – Desde a instalação da Salgema, no governo biônico (indicado pelo presidente Geisel) de Divaldo Suruagy, as autoridades políticas caminharam entrelaçadas com a expansão industrial de Alagoas.
IHU – O que esta história da mina da Braskem deixa de legado a Maceió e Alagoas?
Lenilda Luna – O principal legado é que setores estratégicos, como a mineração, não podem ficar na mão de empresas multinacionais privadas, sem compromisso real com a sociedade. O controle social e ambiental deve ser rigoroso sobre essas atividades econômicas, que deveriam estar sobre o controle social do Estado. Vale lembrar que, se não fosse o serviço especializado e público da CPRM, a Braskem provavelmente sairia tranquila dessa história e a culpa recairia sobre falhas geológicas naturais.
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Foto: Cibele Tenório | Agência Brasil