É preciso processar e prender os peixes graúdos do 8 de janeiro
Por Gilberto Maringoni, em A Terra é Redonda
É muito bom que o governo federal promova nesta segunda-feira o ato solene em defesa da “Democracia inabalada”. Ele acontecerá no Senado para marcar o primeiro aniversário da tentativa de golpe do 8 de janeiro e contará com a presença dos presidentes dos três Poderes, governadores, prefeitos, parlamentares e outras autoridades. Mas, pelo andar da carruagem, periga ser um acontecimento estridente na forma e pasteurizado no conteúdo. De outra parte, a extrema direita faz barulho para fazer valer sua visão dos fatos.
Comecemos pelo ato. A expectativa é que nos salões do Legislativo sejam tecidas loas a uma democracia abstrata e que sejam disparadas acusações aos responsáveis mais evidentes pela ação golpista. São eles o lumpesinato que botou pra quebrar – e que ameaçou explodir um caminhão na entrada do aeroporto de Brasília – e tenebrosas figuras de médio escalão, como o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, seu ex-secretário de Segurança, Anderson Torres, e o comandante da Policia Militar local. Jair Bolsonaro, claro, estará na ponta da língua de alguns dos oradores, entre os quais se destacarão o próprio Lula, os representantes da Câmara, do Senado e do STF.
É possível que a linha adotada seja a de que a tentativa de golpe teria sido obra de médios empresários do agro e donos de postos de gasolina, juntamente com a malta acampada nas portas dos quartéis desde o final de 2022. Seriam esses o que pretendiam enforcar o ministro Alexandre de Moraes, fechar o STF, derrubar o governo recém-eleito e instaurar uma ditadura, aos gritos de “Mito!”.
Se olharmos para as experiências de troca violenta de poder no Brasil e na vizinhança, logo salta aos olhos que golpe de verdade não se improvisa. É jogo de cachorro grande e não de baderneiros. No Brasil de 1964, no Chile de 1973, na Argentina de 1976 e na Venezuela de 2002, grupos sociais muito semelhantes, com variações locais, se articularam para emparedar sociedades, tomar o poder, mudar regimes e reprimir descontentes. Esses setores eram sempre as forças armadas, a embaixada dos EUA, o grande capital, a cúpula da Igreja católica e a mídia corporativa.
Difundir a ideia de que pés de chinelo movidos a picanha e cerveja de graça, mesmo que liderados por um genocida, dessem cabo de uma empreitada dessas significa fazer pouco caso da inteligência alheia. Parece haver uma operação cortina de fumaça para livrar a cara de gente mais qualificada. Supor, por exemplo, que os militares evitaram um golpe em 8 de janeiro de 2023 por sua arraigada fé democrática, como várias autoridades repetem, implica viajar de primeira classe na maionese.
Curioso é que esse tem sido o traço unificador do discurso de personagens distintos entre si, como o ministro Alexandre de Moraes e o titular da Defesa, José Múcio Monteiro. Parecem não lembrar que o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira se somou ao então presidente Jair Bolsonaro, pouco antes das eleições presidenciais, ao levantar a lebre de que haveria “risco relevante” nas urnas eletrônicas, sugerindo uma “investigação técnica” nos equipamentos. Ou que o acobertamento dos vândalos nas portas dos quartéis esteve a cargo de diversos comandantes militares. Vamos combinar: o que inviabilizou o golpe bolsonarista foi a falta de apoio externo – o governo Joe Biden deixou clara sua contrariedade – e a divisão do grande capital, cuja maior fração embarcara na candidatura Lula pouco antes das eleições de outubro.
É bem verdade que Moraes destacou, em entrevista recente, não ser “possível ter clemência com uma tentativa de golpe”. E prossegue ele: “Não é possível esquecer quem tentou subverter a democracia no Brasil. (…) Todas as pessoas civis ou militares, da reserva ou da ativa, políticos ou não, todos serão responsabilizados”. Espera-se que o ministro não recue.
Sempre vale puxar pela memória e verificar que a turma da farda não tem tradição na defesa da legalidade constitucional entre nós. Em todos – todos! – os ataques à democracia empreendidos desde o golpe republicano de1889, o tropel dos coturnos foi ouvido. Conspirando, colocando tropa na rua, montando ditaduras, aparatos repressivos e subordinando-se sempre à potência dominante, integrantes desse setor têm forte responsabilidade na construção de nossa sociedade desigual e injusta.
Dificilmente Lula em seu discurso do próximo dia 8 apontará o dedo contra membros de uma instituição de Estado que colheu imenso desgaste durante os anos Jair Bolsonaro, seja por denúncias de corrupção, pela direção irresponsável que imprimiu ao Ministério da Saúde, ou pela incessante busca de boquinhas governamentais. Além disso, é pouco provável que mencione os partidos políticos ligados ao genocida, agora aboletados em seus ministérios (PP, Republicanos, PSD e União Brasil). O líder petista construiu a administração com essa gente, por vários motivos, e não pode investir contra ela a quente. “Somos um só povo”, assinala um slogan preparado pela área de comunicação oficial.
Apesar da nítida mudança de ares no país, neste primeiro ano, o governo protagonizou recuos sem conta. Diz o lugar-comum: “não existe vácuo em política”. Aproveitando a deixa, a oposição de extrema-direita mais uma vez mete o pé na porta. Na sexta (5\01), trinta senadores, entre eles Rogério Marinho (PL), Ciro Nogueira (PP), Flávio Bolsonaro (PL), Tereza Cristina (PP), Damares Alves (Republicanos), Esperidião Amin (PP), Hamilton Mourão (Republicanos) e Sérgio Moro (União) lançaram a “Manifestação pública referente ao ato Democracia Inabalada, convocado pelos chefes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário”.
Em duras palavras, denunciam “falhas por parte do governo federal” na contenção da depredação de um ano atrás. O ataque é direto ao STF, que teria cometido “práticas abusivas” no inquérito das fake news e nas prisões da arraia miúda dos golpistas. Denunciam “omissões flagrantes de autoridades do governo do Presidente Lula” durante a arruaça de janeiro passado. E seguem: “Ao contrário do afirmado pelo Presidente Lula, a democracia, para nós, não é relativa”. Finalizam altissonantes: “Apelamos (…) aos chefes dos Poderes da República a voltarem a atuar dentro dos ditames constitucionais com a consequente volta à normalidade democrática”.
A ausência deliberada dos governadores de oposição no evento do Senado – com destaque para os do Sul-Sudeste e do DF – completará a risca de giz com que a extrema direita pretende delimitar os campos no Brasil. Ou seja, se Lula, como é de seu feitio, faz de tudo para conciliar opostos e evitar bolas divididas, o conservadorismo coloca a política no posto de comando e chama o governo para briga. Seguramente assim age por se sentir fortalecido diante dos já citados recuos oficiais, como os realizados frente à Faria Lima (com a adoção do novo arcabouço fiscal), ao centrão, aos militares, às igrejas neopentecostais, às ações da política externa em relação a Israel etc. Preocupante.
Para terminar, uma historinha. Entre 2002-13, durante os governos de Hugo Chávez, estive cerca de 15 vezes na Venezuela. Escrevi dois livros e inúmeros artigos e reportagens sobre o país. Hugo Chávez sofreu uma tentativa de golpe entre 11 e 13 de abril de 2002, como me referi no início. Forte resistência popular e um racha nas forças armadas desbarataram a mazorca. A partir daí, em toda oportunidade, em especial nos aniversários da intentona, ele fazia questão de denunciar o ataque à democracia e alardear alto e bom som quem eram os responsáveis. Agia assim em eventos solenes, em formidáveis manifestações de massa e em viagens internacionais. Tornou a memória do combate ao golpe algo vivo, fazendo dele uma fonte de legitimidade de sua gestão. Houve outras ameaças. Mas a demarcação politizada de campos em disputa tornou-se uma espécie de vacina contra aventuras rupturistas.
Vários analistas reclamam da intensa polarização existente no Brasil. O governo Lula faz de tudo para evitar bater de frente com o ultraconservadorismo. Entre os motivos há o fato de bolsonaristas ocuparem importantes cargos federais, assim como vários projetos neoliberais integrarem o atual leque de políticas públicas, como a austeridade fiscal.
A polarização faz parte da democracia. Não há como fugir dela. Seu oposto é o pensamento único. Mesmo que o governo Lula tente a todo custo evitar enfrentamentos, como provavelmente fará na segunda-feira, eles são inerentes à vida social. A extrema direita, ao contrário, faz da polarização seu elã vital. Ela trabalha para que suas orientações fiquem nítidas aos olhos da população. Com isso, politizam o enfrentamento.
Apesar de discordar frontalmente do mérito de suas propostas, é necessário reconhecer que no método de ação a extrema direita pode consolidar ainda mais sua base social, visando acentuar a defensiva do governo.
No caso dos militares, Lula fez um grande acordo para apaziguar suas relações com eles, nomeando um político da elite ultraconservadora de Pernambuco, formado na ditadura, para chefiar a Defesa, oferecendo-lhes mais autonomia política – suas ações muitas vezes são dissonantes à política externa, por exemplo – e voltando a aumentar o naco do orçamento público a eles destinado. A tais vantagens, soma-se a perspectiva de impunidade. Ao que tudo indica, o Ato de 8 de janeiro visa sacramentar mais uma vez esse pacto pelo alto, passando o pano para a atuação dos comandantes nos últimos anos.
Despolitizar a ação governamental e ceder sempre aos corpos armados são iniciativas que historicamente não tiveram desfechos positivos para a democracia. Que nunca é abstrata, diga-se de passagem.
*Gilberto Maringoni, é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).