Parte importante dos povos tradicionais amazônicos vive em áreas protegidas. Graças a eles, mostram estudos, o bioma se conserva. Mas como garantir seu acesso à Saúde? O conceito e as práticas de mobilidade espacial podem ser a chave
por Guilherme Arruda, em Outra Saúde
No Brasil, as áreas protegidas, espaços voltados para a preservação do patrimônio natural brasileiro, dividem-se entre as que preveem a ocupação humana – como as Terras Indígenas e os territórios quilombolas – e aquelas onde é proibida a permanência de nossa espécie, como a maior parte das chamadas unidades de conservação.
Recentemente, pesquisadores do meio ambiente têm identificado que as áreas protegidas onde há presença de populações tradicionais (categoria que também inclui ribeirinhos e outros povos) apresentam maiores índices de preservação e regeneração da vegetação nativa. Ou, como sintetizou um estudo recente do Instituto Socioambiental (ISA), “as florestas precisam das pessoas, assim como as pessoas precisam das florestas”. Em uma decisão tomada há 3 anos, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), órgão público que gere as áreas protegidas, passou a aceitar a permanência dos povos tradicionais nas unidades de conservação de proteção integral, onde antes ela era vetada.
Contudo, a opção por combinar a presença das populações tradicionais com a preservação impõe desafios ao Estado. Um deles remete à formulação de políticas públicas que garantam a cobertura desses povos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). São casos em que, na maioria das vezes, não é possível simplesmente abrir uma estrada até uma aldeia ou vila para permitir que uma Equipe de Saúde da Família a visite, por exemplo.
Um ensaio publicado no Espaço Temático Amazônia, do periódico científico Cadernos de Saúde Pública – parceiro editorial de Outra Saúde – acaba de propor um caminho. Foi produzido com base na experiência de cobertura da Saúde nas 11 unidades de conservação do Baixo Rio Negro, no Amazonas; É preciso, diz o trabalho, reduzir a necessidade de as populações se deslocarem das áreas protegidas para receber cuidados. Isso pode ser feito empregando ambulanchas e outros métodos. Além de desfrutarem de maior conforto, tais povos poderão permanecer ao máximo nos territórios. Lá, ao praticar atividades econômicas sazonais e de baixo impacto ambiental, com roçados, pesca, manejo florestal não madeireiro e madeireiro”, eles servem de “barreira para usos predatórios externos”.
“Levar saúde aos povos na floresta não é apenas uma questão humanitária”, argumenta o autor do estudo, Álvaro de Oliveira D’Antona, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É também a “garantia de permanência daqueles indivíduos que podem contribuir para a manutenção das condições de vida em escala planetária”.
Como vivem os tradicionais da Amazônia
O Espaço Temático Amazônia foi inaugurado no ano passado pelos Cadernos de Saúde Pública, publicados pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz). Trata-se de uma série de debates que “busca, por meio de diferentes olhares disciplinares, contribuir para uma análise conjuntural da Amazônia e pensar seu futuro a partir da perspectiva da saúde”.
Um conceito, explica D’Antona, é chave: a mobilidade espacial das populações daquele território, sempre cruzando rios e igarapés em busca de serviços como saúde e educação. Por um lado, ela emerge como “resposta à insuficiente cobertura de infraestruturas em áreas rurais da Amazônia”, uma lacuna do Estado, diz D’Antona. Por outro, essa familiaridade com o deslocamento cotidiano pode ser pensada como um recurso importante – uma “estratégia que permite que os comunitários mantenham suas casas nas unidades de conservação”, evitando a migração para as metrópoles.
Como já apresentou Outra Saúde em reportagem, a ocupação humana da Amazônia na atualidade desafia noções estanques de urbano e rural. Há, hoje, um continuum entre esses polos, que conecta, por exemplo, casas, roças, pomares e florestas em um mesmo gradiente. A mobilidade espacial faz parte desse processo.
O Mosaico do Baixo Rio Negro, que ocupa 8 milhões de hectares (o dobro do território da Holanda) em dez municípios do Amazonas e um de Roraima, é a base das reflexões do estudo. Agrupa 14 unidades de conservação. Ali, vivem cerca de 100 mil pessoas – 90% delas no quadrante que tem maior proximidade com Manaus. Os profissionais de saúde enfrentam condições bastante específicas para fazer o SUS chegar em contextos distintos, como reservas extrativistas, áreas protegidas e reservas de desenvolvimento sustentável.
Baseando-se nas experiências da região, D’Antona propõe que a oferta de serviços de saúde para as comunidades localizadas em áreas protegidas seja pensada a partir de “modelos de acesso à saúde de fato coerentes com os contextos locais”.
Saúde para os povos
Um fator essencial é o “deslocamento dos prestadores de serviço”, ele diz, quando “ambulanchas” – serviços fluviais móveis – permitem visitas de equipes de Saúde da Família e campanhas de vacinação às terras indígenas. Outro, é a formação de equipes multidisciplinares de saúde, que garantem o contato da população com diversos profissionais e especialistas em um mesmo momento.
Não menos importante, conta D’Antona, é a integração intersetorial das esferas de gestão. Em espaços tão extensos e de acesso nem sempre simples, é decisivo que autoridades federais, estaduais e municipais de cada local estejam sempre em contato e articulação para resolver problemas que exijam “planejamento regional e multissetorial na coordenação de esforços custosos”.
Por tudo isso, o pesquisador ressalta a importância de que o governo federal proponha “medidas que respeitem a baixa densidade e a distribuição populacional dispersa, garantindo aos moradores de áreas protegidas o acesso a infraestruturas e serviços nos locais onde vivem”.
Em especial nos últimos tempos, ficaram claros os riscos da ocupação desordenada da Amazônia e das áreas protegidas. O garimpo, predatório e destruidor do meio ambiente e do tecido social, desorganizou completamente a Terra Indígena Yanomami, resultando em nada menos que um risco de genocídio daquele povo originário.
Na crise yanomami, o Estado brasileiro, sob Bolsonaro, tomou o caminho da irresponsabilidade. Ao que tudo indica, militares e um governo de extrema-direita estimularam todo o processo criminoso de devastação. Para cumprir com sua promessa de reverter esse cenário valorizando e respeitando os povos tradicionais e a Amazônia, o novo governo deve se debruçar a sério sobre as políticas públicas que concernem às duas questões – inclusive na área da Saúde.
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Foto: Apib