Por HENRI ACSELRAD*, em A Terra é Redonda
Os usos da cartografia para uma apropriação da linguagem cartográfica por grupos não dominantes
A noção de território esteve, em sua origem, intimamente ligada aos modos de existência do Estado. Punha-se em pauta representações do espaço onde o Estado exerceria seu poder e sua soberania. Nas monarquias europeias, o conhecimento sobre o território servia ao Príncipe para dominar melhor o espaço. Este conhecimento era produzido de várias maneiras: por pesquisas para identificar o seu patrimônio; pela viagem do soberano, que afirmava sua presença nos lugares onde cobrava impostos; e também pelo mapa, que dava a ver o espaço do Reino. O conhecimento do território era, assim, inseparável do próprio exercício da soberania estatal.
A primeira descrição espacial de territórios listava nomes de rios e fronteiras. Em seguida, o mapa virou um meio de afirmação de ambições e vontades políticas. Passou a servir à guerra e à propaganda das glórias do Reino. Ter a informação geográfica significava afirmar a autoridade pela exibição de seus domínios, proteger as riquezas que ele continha e cuidar de que ninguém se apoderasse das informações sobre elas. Foi o que não ocorreu em 1502, por exemplo, quando foi roubado, em Lisboa, o único exemplar do planisfério real representando as Índias e o Brasil, a partir dos levantamentos de Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama.[i]
Mas é importante lembrar que os mapas não têm apenas uma função prática. Eles têm também uma função simbólica: eles disseminam esquemas de percepção do espaço, e estas percepções acabam ganhando realidade, se tornando um meio de produção do território. Exemplo recente disto foi a proibição, pelo governo indiano, de que delegações estrangeiras ao encontro do G20 em Nova Déli, em setembro de 2023, entrassem no país com mapas de origem chinesa situando o estado indiano de Arunachi Pradesh no interior de fronteiras da China.[ii]
Esta geografia subliminar das cartografias contém espaços, valores, crenças, mas também silêncios. Esses espaços vazios e silenciosos dos mapas são, na realidade, declarações afirmativas e não lacunas passivas da linguagem, pois toda cartografia implica afirmações de pertencimento e de exclusão. Entre as modalidades deste “silêncio”, destaca-se a forma como grupos étnicos não-dominantes são invisibilizados, quando se ignora seus monumentos, quando seus marcos culturais distintivos são “apagados do mapa” pela imposição do simbolismo de um grupo, cultura ou religião dominante.
A literatura sociológica sobre as práticas e usos da cartografia discute se seria possível uma apropriação da linguagem cartográfica por grupos não-dominantes. Brian Harley, autor que trabalhou as relações entre o saber e o poder cartográficos, era pessimista, afirmando a impossibilidade de uma cartografia popular. Para ele, “os mapas são essencialmente uma linguagem do poder e não de contestação”; “os processos de dominação pelos mapas são sutis”. E continuava: “a cartografia permanece um discurso que reifica o poder, reforçando o status quo e congelando as interações sociais no interior de limites bem traçados”.[iii]
Ora, há uma literatura mais recente que tem designado por “virada territorial” o processo de demarcação e titulação de terras envolvendo, a partir dos anos 1990, comunidades e povos tradicionais na América Latina. Esses processos estão frequentemente associados a experiências dos chamados mapeamentos participativos ou de cartografia social. Verificou-se, a partir dos anos 1990, uma quebra do monopólio estatal na produção de mapas, com a instauração de uma espécie de “insurreição de uso” dos mapas associada a reclamos por representação e produção de novos territórios.
A difusão da cartografia social na América Latina deu-se junto com três outros processos: (i) no campo jurídico – com a ratificação da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas em 1989 e sua incorporação a muitas reformas constitucionais na região a partir de 1990; (ii) por uma crescente dinâmica de auto-organização destes povos no seio de movimentos e alianças; (iii) com as possibilidades abertas pelas novas tecnologias geomáticas. Assim, novos mapas de povos indígenas e tradicionais vieram afirmando territorialidades e atribuindo poder. Os geógrafos confirmam que “muitos territórios indígenas foram recuperados através destes mapas”.[iv]
Cabe perguntar: Brian Harley estaria errado? Não propriamente. Apesar de seu pessimismo, ele próprio ressalvava que “os mecanismos de dominação operados pelo discurso cartográfico só poderiam ser entendidos em suas situações históricas particulares” e que disputas simbólicas e cognitivas poderiam perfeitamente emergir, como de fato emergiram, em torno ao saber cartográfico. As disputas territoriais podem, pois, se articular com disputas cartográficas.
Qual a situação concreta configurada com o surgimento das disputas simbólicas a partir dos anos 1990 com o surgimento da chamada “virada territorial”? No que diz respeito aos povos indígenas, a politização de suas lutas levou a que certos grupos passassem a se apropriar de instrumentos como os mapas. JoãoPacheco de Oliveira (2006) já havia ressaltado como, no caso da demarcação das terras indígenas no Brasil, dera-se um processo de politização das práticas de apropriação territorial.[v] O caráter político ao qual se subordinam as técnicas de representação do território para fins de delimitação e demarcação de terras indígenas fora obscurecido durante muito tempo, até 1995, quando demarcações ditas “participativas” foram avaliadas como capazes de fortalecer as organizações indígenas no processo de controle e apropriação social dos limites de suas terras. Construiu-se então, diz ele, “uma nova realidade socio-política na qual um sujeito histórico entrou em um processo de territorialização, passou a ser reconhecido sob uma modalidade própria de cidadania”.[vi]
Mac Chapin, antropólogo e ativista norte-americano que esteve presente no começo das experiências de automapeamento de terras indígenas no Canadá, reconheceu que seus colegas haviam desprezado “as profundas implicações políticas do mapeamento territorial”, e que os tomou de surpresa a forma tão acelerada em que os povos indígenas começaram a tirar proveitos do etnomapeamento. O que começara como um exercício acadêmico na cartografia ambientalista, rapidamente se metamorfoseou em uma forma de cartografia política.[vii]
Por outro lado, apesar da disseminação das práticas de mapeamento participativo e cartografia social, as teses de Brian Harley sobre as dificuldades de efetivação de uma cartografia popular ainda encontram eco. Por um lado, persiste, entre os próprios agentes do chamado “mapeamento participativo”, a percepção de que este consiste num oxímoro, dada a distância entre o universo simbólico dos povos indígenas e tradicionais e aquele acionado pelas tecnologias convencionais do mapeamento. Percebe-se também que em boa parte das experiências verifica-se um forte protagonismo por parte de mediadores e instituições financiadoras.
Coloca-se então a pergunta: quando poderíamos dizer que há de fato controle político do mapeamento por parte das próprias comunidades? Sob que condições o pessimismo de Brian Harley pode ser concretamente contestado? Nas experiências conhecidas, observa-se que o protagonismo dos próprios grupos tende a ocorrer quando o mapeamento aparece como extensão do repertório de ações já por eles previamente experimentadas e não através de uma simples possibilidade de “participação” oferecida por instâncias externas aos grupos.
Assim, em contextos de conflito real ou potencial, o mapa apareceria como um instrumento entre outros. E em cada contexto e situação, os grupos estariam a se perguntar se interessa de fato mapear ou não, o que mapear e para que mapear, que técnicas empregar, como controlar o resultado dos mapeamentos e como proteger os dados e conhecimentos tradicionais que eles contêm. Procurariam, assim, conhecer a cadeia de atores, detentores de tecnologias, mediadores e agências financiadoras envolvidos nos mapeamentos, de modo a, efetivamente, “se sentirem donos do mapa”, buscando deixar claro quem é o sujeito político do mapeamento e qual é o grau de sua autonomia. Se considerarmos o contexto conflitivo em que se situa boa parte das experiências de cartografia social indígena e de povos tradicionais, estes sujeitos são levados, com frequência, a responder a instigante pergunta: “quem mapeia quem”[viii]?
É evidente a distância entre as distintas linguagens de representação espacial. Turnbull destaca como os mapas indígenas escondem explicitamente o que não deve, na perspectiva indígena, ser mostrado.[ix] Os mapas ocidentais, por sua vez, apresentam-se como transparentes, mas escondem seus pressupostos. Martin Vidal Tróchez, liderança da etnia Nasa da Colômbia, aponta como “no mapa ocidental, o mensurável tende a deslocar o imensurável”,[x] admitindo que a inserção de povos indígenas nos espaços institucionais estatais levou-os a usar instrumentos “mais técnicos”, deixando de lado métodos próprios: “quando era necessário fazer mapas, os fazíamos com uma vara sobre a terra e, em seguida, o memorizávamos para não deixar provas”.
Na perspectiva da luta pelo reconhecimento de direitos territoriais a povos indígenas e tradicionais, Tróchez oferece uma resposta original ao dilema formulado por Harley, sustentando a pertinência de que os grupos indígenas recorram a mapas “ocidentais” para os fins de suas “políticas externas” de reivindicação de territórios, reservando seus mapas tradicionais para o que consideram suas “políticas internas” de afirmação e reprodução cultural[xi].
*Henri Acselrad é professor titular aposentado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).
[i] P. Rekacewicz, La cartographie, entre science, art et manipulation, Le Monde Diplomatique, février 2006.
[ii] M.C.Fernndes, Ucrânia e ausência de Xi Jiping desafiam G20, Valor econômico, 7-8/9/2023
[iii] B. Harley, Cartes, savoir, pouvoir, In: P. Gould. & A. Baully (Orgs.) Le Pouvoir des cartes – Brian Harley et la cartographie. Anthropos, Paris, 1995, 48, 49 4 51.
[iv] B. Nietschmann,“Defending the Miskito Reefs with Maps and GIS: Mapping With Sail, Scuba, and Satelite”. Cultural Survival Quarterly 18 (4), 1995.
[v] J. Pacheco de Oliveira, Hacia una Antropologia del Indigenismo, Rio de Janeiro : Contracapa, 2006, p. 86.
[vi] J. Pacheco de Oliveira. op. cit. P. 174-175
[vii] M Chapin e B. Threlkeld. Indigenous Landscapes. A Study in Ethnocartography. Arlington, VA: Center for the Support of Native Lands, 2001.
[viii] Offen. K. O mapeas o te mapean: Mapeo indígena y negro en América Latina, Cátedra Fulbright, Universidad del Norte, 10 y 11 de agosto de 2004, Barranquilla.
[ix] D. Turnbull, Masons, Tricksters and Cartographers. Routledge, London, N. York, 2000.
[x] M. V. Tróchez “Algunas reflexiones sobre la experiência em la aplicación de la cartografía social y los sistemas de información geográfica participativa em comunidades indígenas y campesinas em el Cauca – suroccidente de Colombia”, Seminário sobre Cartografia Social na América Latina. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2010.
[xi] M.V. Tróchez, op. cit.
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Imagem: Andrew Neel