Um ano da tragédia-crime no litoral norte de São Paulo

Toda a água que atingiu o litoral norte no carnaval de 2023 durou menos de 24 horas, mas a tragédia não terminou com as chuvas: ela ainda acontece, todos os dias, quando as pessoas sobem o morro encharcado e rezam para que ele não venha abaixo

por Fernanda Biasoli e Semíramis Biasoli, em Diplomatique Brasil

Para os moradores do litoral norte de São Paulo, a madrugada do dia 19 de fevereiro de 2023 ressoa em looping em suas memórias há quase um ano. Toda a água que atingiu o território naquele sábado de carnaval durou menos de 24 horas, mas a tragédia não terminou com as chuvas: ela ainda acontece, todos os dias, quando as pessoas sobem o morro encharcado e rezam para que ele não venha abaixo. Foram 683 milímetros registrados em poucas horas, segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Em 2024, um ano depois, os moradores da região ainda não puderam descansar em suas casas com a certeza de uma fundação firme abaixo de seus pés e um teto seguro sobre suas cabeças.

No carnaval do ano passado, as marchinhas deram lugar ao lamento por tudo aquilo que se foi: amores, amigos, familiares e o sonho de uma vida segura e digna. Mas, neste ano, o coro entoado tem o tom de luta, reivindicação e justiça. Nas cidades de São Sebastião e Ubatuba, as mais atingidas pelas chuvas, esse canto é puxado por dois movimentos sociais que atuam junto à população. Tanto a União dos Atingidos, quanto a Amovila (Associação de Moradores da Vila Sahy) são organizações territoriais que promovem a articulação dos moradores que, até hoje, buscam por justiça social, ambiental e climática.

Diante de um cenário de emergência, a cidade se organizou. Movimentos que já existiam, como a Amovila, se fortaleceram. Outros novos, como a União dos Atingidos, chegaram para somar. Juntos, mobilizaram a luta pelo direito básico da moradia digna. Incentivar e fortalecer as organizações de base, que atuam diretamente nos territórios, é uma peça fundamental do quebra-cabeça pela justiça social e climática.

Afinal, essa é uma história sem fim. Como se não bastasse o medo do morro descer e cobrir suas casas, a população de São Sebastião agora teme pela água que brota do chão. Isso porque um dos locais indicados pelo governo do Estado de São Paulo para desapropriação e construção de moradias para as famílias afetadas, no bairro de Cambury, não é um local indicado para construção de moradias: ele alaga. A “fazendinha”, como foi apelidada pela população, é um terreno de extrema importância para a drenagem natural do local, situado na franja do Parque Estadual da Serra do Mar. Essa é a última área de alagamento natural não ocupada da região, sendo fundamental para a regulação das enchentes na bacia hidrográfica do rio Camburi.

No bairro ao lado, a situação é parecida. O condomínio popular que está prestes a ser entregue na Vila Baleia Verde ainda nem ficou pronto e já é um retrato do descaso social e ambiental das autoridades municipais e estaduais no gerenciamento do caso. O local, quando ainda estava em construção, alagou após cerca de 100 milímetros de chuva atingirem a cidade, em junho de 2023.

No dia 19 de fevereiro de 2024, faz um ano que a tragédia anunciada em São Sebastião vitimou 65 pessoas e deixou rastros ambientais marcantes para qualquer um que visite o litoral norte de São Paulo. Um ano de insegurança para uma população que se estremece a cada chuva anunciada. Um ano em que a população se vê obrigada a deixar o medo no pé do morro e subir de cabeça erguida e mãos em preces. Em 19 de fevereiro de 2024, completa-se um ano de tragédia-crime e de mobilização popular contínua das comunidades locais. Eles seguem em luto, mas, sobretudo, na luta por seus direitos como cidadãos e trabalhadores brasileiros.

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