Brasil indígena precisa de outras Forças Armadas. Por Egydio Schwade

Um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário aponta: a história mostra o papel genocida dos militares na Amazônia – e negligência com os Yanomamis é mais uma página. Evitar novos crimes exige transformar centros de formação da caserna

em Outras Palavras

“…os militares se revelaram incapazes de instituir a paz dentro do território Yanomami. Que vergonha para a nona maior economia do mundo ter Forças Armadas que não conseguem lidar com o quê, dois ou três mil garimpeiros? Se os militares brasileiros não são páreos para esse pequeno contingente humano, imagina numa invasão estrangeira. Adeus, Brasil” – Rubens Valente

Tenho 88 anos. E faltava apenas um mês para completar meus 79, quando fui convidado a acompanhar 14 guerreiros Yanomami em uma ação de destruição de dois garimpos ilegais, instalados na terra Yanomami, em um afluente do rio Couto de Magalhães, próximo à fronteira da Venezuela. Durante a longa viagem de ônibus até Boa Vista, 45 minutos de avião, navegando pelos rios Mucajaí e Couto de Magalhães e, finalmente, caminhando pela floresta até o destino, me perguntava: por que convidaram a mim e não às Forças Armadas? Só tive condições de carregar algumas cartelas de ovos do espólio conquistado!

A história das Forças Armadas brasileiras é muito triste. Muitos povos indígenas massacrados por militares. Sempre senti que os militares se envergonham e procuram ocultar a realidade da sua participação nesses feitos necrófilos. Como da violência cometida na construção de rodovias genocidas: na BR-163, massacrando o povo Panará; na Transamazônica, o genocídio dos Parakanã, Diahui, Tenharim; e na BR-174, o genocídio dos Waimiri-Atroari. E quantas vidas e territórios indígenas foram soterrados nos lagos de hidrelétricas, como na Itaparica, no S. Francisco. A Ilha da Viúva era a nesga de terra, ou única “ovelhinha” que restava ao Povo Tuxá. Com a memória indelével do amigo Antônio Conselheiro, que compartilhou sua vida de sofrimento, organizou o cemitério e ali inspirou a fraternidade de Canudos, tudo foi ao fundo por ação das Forças Armadas.

Durante os 20 anos de Ditadura Militar, os povos indígenas e as populações ribeirinhas e seringueiras, sofreram muito: perda da terra, perda da sua autonomia e de muitas vidas. A sua missão principal na Amazônia foi esmagar os povos indígenas, com rodovias e hidrelétricas e despojar as populações ribeirinhas e seringueiras de seus direitos à terra, à saúde e à educação, forçando-as a conquistar espaço como ‘invasoras’ nas periferias urbanas.

Essa foi, é, e continua sendo o objetivo maior das Forças Armadas. São 523 anos prestando serviços equivocados às elites gananciosas que se apossam, insaciavelmente, do território brasileiro, reprimindo e massacrando a quem resiste e defende seus direitos. Não só os povos indígenas, mas também as lutas populares: a Revolta de Frei Caneca e a Confederação do Equador, no Pernambuco; a Balaiada, no Maranhão; a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul e o povo Guarani na Guerra do Paraguai… E a família Lima e Silva, pai e filho, este o patrono do Exército Brasileiro muito envolvidos. Neste mês, faz 268 anos em que os exércitos de Portugal e Espanha massacraram o povo Guarani do Rio Grande do Sul, em Caobaté.

Em novembro de 1974, o Comando Militar da Amazônia-CMA, com assinatura do Gal. Gentil Paes, então Comandante do 6º BEC, empenhado na construção da BR-174, assinou treze medidas repressivas contra os Waimiri-Atroari, entre as quais se lê: “Esse Comando, caso haja visita dos índios, realize pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite” (Of. 042-E2- 21-11-1974).

Creio que nenhuma instituição brasileira conseguiu manter por tanto tempo uma história de ódio contra os mais fracos do seu povo como as Forças Armadas brasileiras. Que diferença tem a ação dos generais da Ditadura Militar que, há meio século, invadiram o território Waimiri-Atroari, assassinando mais de 80% do seu povo, com a ação do Mem de Sá, há 524 anos, cuja covardia contra os Tupininkim, do Espírito Santo, ficou gravada na triste fundação da Vitória, no Espírito Santo? Quando defenderão o direito dos brasileiros ao seu chão?

Canudos, Cabanos, Balaiada… é hora de alguém ir ao encontro das Forças Armadas, ocupar os seus centros de formação para lhes ensinar uma nova lição. Ajudá-los a se transformarem em seres uteis à nação. Após tanta participação em ações iníquas, defendendo dinheiro, dinheiro das suas contas, da conta dos banqueiros e de empresários, acordem e, como o Rei Davi acordou, peçam um coração de carne que transforme o serviço de ódio contra os fracos em missão de solidariedade que lhes encha os corações de real orgulho.

Em 1959, fiz um estágio no Hospital Militar de Porto Alegre. Uma cena que me impactou foram os últimos momentos de vida de um militar que lutou na Guerra do Contestado. O fato de ter participado numa guerra suja a serviço de poderosos, contra pobres sertanejos, lhe doía no coração, naquele final da vida.

Vivi também momentos de esperança com militares. Em 1968, com auxílio da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul e do colega Thomaz Lisboa realizamos um Projeto Rondon local, nos Toldos indígenas daquele estado. Ali, testemunhei a alegria dos soldados, nossos motoristas envolvidos em uma ação solidária, diferente daquela a que são treinados no quartel.

Entre 1973 e 1980, como Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), fiz muitas viagens pela Amazônia. E me vali, algumas vezes, dos Serviços da Força Aérea Brasileira (FAB), em seus voos de Catalina e C-47 de controle da fronteira e apoio aos indígenas e ribeirinhos da região. Ali vivenciei momentos que mereciam mais incentivo dos comandantes das Forças Armadas. Nas paradas ao longo do Rio Negro: Tapuruquara, Sta. Izabel… Presenciei o carinho com que os militares eram recebidos pelas comunidades, pelo apoio que traziam àquela gente pobre. Em mesinhas improvisadas nos aeroportos, serviam café, suco, bolachinhas… o que, na sua pobreza, podiam oferecer. E aqueles soldados irradiavam pelo seu olhar uma satisfação interior real. Voltando do serviço prestado, voando sobre as fronteiras do Cucuí, do Pico da Neblina ou dos sinuosos afluentes do Solimões, comentavam com o coração eufórico os valores dessa gente humilde vivenciados, confortando e realizando suas vidas.

Entre 1974 e 1975, percorri o Goiás, Maranhão, Pará e Amazonas, visitando remanescentes dos povos originários, onde me ocorreu promover uma assembleia de lideranças desses povos, na aldeia Cururu dos índios Munduruku, no Alto Tapajós. Uma ideia louca. Fui manifestá-la a Dom Tomás Balduíno, presidente do CIMI. Dom Tomás, sem pestanejar, me retrucou: “Egydio, vamos amanhã a Belém falar com o Camarão, Comandante Militar da Amazônia” E lá fomos nós, no dia seguinte, voando no aviãozinho de Dom Tomás Balduíno, pilotado por ele mesmo, rumo a Belém.

O Comandante Camarão nos recebeu sem demora. Ouviu em silêncio o relato e o pedido de apoio da FAB para a realização da Assembleia de lideranças indígenas no Alto Tapajós. Ao final, batendo o punho na mesa, quebrou o silêncio: “É isto que estes índios ainda precisam! Podem contar com a FAB”. E o Camarão enviou aviões para todos os lados indicados por nós, recolhendo lideranças do Amapá: Galibi, Karipuna e Palikur; da Serra do Tumucumaque: Tiriyo e Kaxuiana; do Goiás: Xerente; e do Mato Grosso: Nanbikuara, Paresi, Rikbaktsa, Manoki, Kayabi, Apiaká, Bororo, Xavante e Tapirapé. E aquela assembleia na aldeia Munduruku, em maio de 1975, foi uma das maiores já feitas.

Muitos anos depois, o grande indigenista do CIMI, Egon Dionísio Heck, a propósito de estudo sobre a ação dos militares na Amazônia, foi entrevistar o Comandante Camarão, já aposentado, o qual recordava com muita satisfação aquele feito. Após ter tido o privilégio de presenciar esse maravilhoso evento na aldeia dos Munduruku, inverti a exclamação do Camarão: “É isto que os militares ainda precisam! Eis a sua missão! Podem contar com o povo brasileiro necessitado!”

Entretanto, no mesmo maio de 1975, outro General, Ismarth de A. Oliveira, presidente da Funai, nos enviou ofício proibindo a Dom Tomás e aos membros do Secretariado do CIMI, a entrada em todas as áreas indígenas do país. E a razão alegada foi o fato de não o ter convidado e avisado da Assembleia. Essa proibição foi mantida até o final da Ditadura Militar. O que não nos causou grande prejuízo. Foi o período em que visitei mais áreas indígenas no país. Sem a necessidade de pedir autorização, percorri o país livremente, em todas as direções. Embora controlado rigidamente, como revelam os arquivos da Ditadura Militar, fora das cidades, a gente entrava na penumbra dos remanescentes de povos indígenas que já não existiam mais para o Governo Militar, ficando o nosso principal refúgio e abrigo contra a repressão.

Tive também oportunidade de conhecer a trajetória de um oficial das Forças Armadas que atuou na construção da rodovia BR-174, o Gal. Altino Berthier Brasil, que me passou os originais do livro de suas memórias na construção da BR-174: “O Pajé da Beira da Estrada”(1986), dedicado “Ao anônimo irmão Waimiri-Atroari, cujo cadáver mal enterrado deparamos, muitas vezes, pela frente”. Ali faz seu “confiteor”: “…Na hora do angelus e mesmo depois, em plena cegueira daquelas noites equatoriais, comovido, eu cansei de ouvir gemidos pungentes e soluços anônimos, verdadeiros clamores de misericórdia daquela gente, que me parecia condenada a um triste e melancólico fim…”. E não foi no governo Lula que vimos pela primeira vez os garimpeiros sendo expulsos da Terra Yanomami. Lembram-se do Secretário do Meio Ambiente do governo Collor, José Lutzenberger? Seu assessor imediato foi Altino Berthier Brasil. Por ordem dos dois, em 1991, os aeroportos dos garimpeiros, na área Yanomami foram bombardeados e os garimpeiros retirados.

Imagina se o dinheiro investido no fracassado Projeto Calha Norte, dos militares, tivesse sido aplicado na proteção dos povos indígenas e de seus territórios?

Não desejo que os militares continuem sendo máquinas de ódio ou nem meros cumpridores de ordens. Infelizmente, desde 1500, o foram e são de governos e de gente que fez, faz, prescreve e determina o cumprimento de leis, para cuja elaboração os donos da terra nunca foram convocados.

Cada pessoa humana tem o direito e o dever de cumprir a Lei da Liberdade, a ciência congênita, inscrita desde sua concepção em seu coração e que a chama à solidariedade. Soldados e generais também são sujeitos desta Lei da Liberdade, sem o que não plenificam as suas vidas.

Foto: Marinha do Brasil

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